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Em cena, o povo brasileiro

Foto: Valerio Trabanco / Cedoc - Gentilmente cedida por Mariana Guarnieri
Foto: Valerio Trabanco / Cedoc - Gentilmente cedida por Mariana Guarnieri

Em cena, o povo brasileiro

Autor de textos emblemáticos e personagens inesquecíveis, Gianfrancesco Guarnieri retratou a política e as camadas populares da sociedade no teatro

Gianfrancesco Guarnieri entrou para a história do teatro brasileiro como grande dramaturgo, ator e diretor. Com peças que emocionaram (e ainda emocionam) plateias diversas, é lembrado por ter levado aos palcos, já na década de 1950, a luta de classes e os conflitos sociais do proletariado. “Após o terceiro sinal, permitiu que as cortinas se abrissem para exibir a realidade de um tipo de herói até aquele momento pouco afeito às encenações: o homem do povo”, diz o autor da biografia Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar (Imprensa Oficial, 2004), Sérgio Roveri. Dono de talento incomum, nunca foi simplista ao criar seus tipos. Cabiam nesses heróis as contradições e os descaminhos de todos.

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Marinenghi de Guarnieri nasceu em Milão, Itália, no ano de 1934 – e não em Veneza, cidade onde moravam os pais. Tudo ocorreu devido à vida profissional movimentada do pai maestro e da mãe harpista.

Com o menino ainda bem pequeno, a mãe recebeu convite para se apresentar com a Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro e, sob o governo fascista de Benito Mussolini, aceitou a proposta, mas veio sozinha, em 1936, deixando marido e filho na Itália. Pouco tempo depois, exatos seis meses, o pai de Guarnieri foi autorizado pelo regime a reger uma orquestra no Brasil. A mudança completa se deu em 1937.

Do lado de cá, a simpatia do então presidente Getúlio Vargas pelo modelo político de Mussolini assustou os artistas imigrantes, que chegaram a pensar em fugir para outro país. O plano de fuga não se concretizou, e a família se instalou em um apartamento na Praia do Russel, na capital fluminense.
 

Menino da ópera

Os pais, de formação erudita, apresentaram o universo cultural ao filho. Aos 3 anos o menino já os acompanhava nas matinês de óperas, nas quais assistia ao trabalho dos músicos, ora sentado na caixa do contrabaixo, ora na do violoncelo. Em depoimento publicado no livro de Roveri, Guarnieri potencializa essa experiência ao afirmar que a ópera foi a grande influência de sua carreira, devido à dramaturgia ali contida. Narrativa linear, a ópera apresentava enredos com começo, meio e fim.

Veia política

Devido à origem italiana, o dramaturgo e ator enfrentou problemas na escola no convívio com alunos e professores. O gosto pelo futebol, pelo teatro e o afinco com o qual se dedicava à atividade política foi a trinca que o sustentou. Aos 14 anos foi expulso do colégio de padres onde estudava, mas o local não deixou apenas lembranças ruins, pois foi onde começou a estudar teatro, juntando-se ao grupo de alunos que se organizaram para encenar peças.

Sua primeira tarefa foi ser o “ponto”, menino que ajudava os outros a não se esquecerem das falas, repetindo-as. Daí foi um pulo para conseguir um papel de destaque e, em seguida, escrever a peça chamada Sombras do Passado, sobre um tema nada corriqueiro para um garoto dessa idade: a venda de uma casa que estava ocupada por outras pessoas. Na peça havia um personagem inspirado em um dos padres da escola, chamado Amir, que era gago. Logo após a encenação, Guarnieri foi expulso do colégio e se dedicou a outros interesses, nos quais a escola não estava incluída.

Juventude politizada

Adolescente, exerceu a paixão pelo futebol por meio da crônica e saciou a sede política colaborando com o jornal Novos Rumos (produzido pela Juventude Comunista). Aos 15 anos continuou os estudos matriculando-se no supletivo. Sem deixar de lado as atividades políticas, reservava à educação formal o segundo plano. Envolveu-se com o Movimento Estudantil Secundarista, chegando a ser presidente da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes Secundários.

Nesse período, seus pais se mudaram para São Paulo, decisão que não fez a cabeça de Guarnieri. Ele preferiu continuar no Rio de Janeiro, pois não queria abandonar a namorada. A vontade durou pouco, já que a vida de ativista não era compatível com a autonomia financeira. Desse modo, juntou-se aos pais na capital paulista.
 

Vida adulta

Em 1953, com 18 anos, dizia ter mais entusiasmo pelo trabalho na Juventude Comunista do pelo o teatro. Entre as suas funções no partido estava a organização da agenda cultural para os estudantes, buscando ingressos para distribuir gratuitamente a esses jovens. “Sua ligação com o Partido Comunista não deve ser esquecida, pois mostra que sua preocupação por temas políticos e sociais não se limitava ao plano artístico”, observa a dramaturga, atriz e professora de história do teatro brasileiro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-Unesp) Mariana Mayor.

Segundo a pesquisadora, mesmo cercado de bons temas, um dramaturgo precisa saber contar as histórias. “Guarnieri tinha muito conhecimento sobre as formas e gêneros teatrais, e se aprofundou na linguagem do drama”, enfatiza.

No palco

Seja no teatro, seja na televisão, seja na vida política, Guarnieri era original e foi responsável por capítulos memoráveis da cultura brasileira. A densidade dramática de sua estreia como autor foi vista no Teatro de Arena em 1958, com Eles Não Usam Black-Tie, texto em que expressa seu olhar crítico sobre a realidade nacional. “O ano de 1958 seria inesquecível para o teatro brasileiro e para o Teatro de Arena (São Paulo), em particular”, diz o autor do livro Teatro de Arena (Editora Boitempo, 2004), Izaías Almada. O local se transformaria em um dos centros de resistência cultural e de conscientização popular durante a ditadura militar, iniciada em 1964. Já a peça de Guarnieri foi adaptada para o cinema pelo diretor Leon Hirszman. Em 1981, o filme ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza.

Almada acrescenta que, em 1958, além da encenação da peça de Guarnieri, foi realizado o Seminário de Dramaturgia, também no Teatro de Arena, que “angariou o conceito de críticos, ensaístas e historiadores como fundamental para mudar os rumos da dramaturgia brasileira”.

Eles Não Usam Black-Tie ficou mais de um ano em exibição em São Paulo, reverberando na cena cultural da cidade, e foi responsável pela renovação da produção teatral brasileira. Guarnieri voltou-se para o teatro com mais força a partir da chegada de Augusto Boal ao Teatro de Arena. Amigos na arte, foi Boal quem dirigiu o último trabalho de Guarnieri como ator para o Arena, A Resistível Ascensão de Arturo Ui (Bertolt Brecht), em 1968, pouco antes de o teatro encerrar as atividades, em 1970.

 

Produção e pausa

Com uma vida de intensa produtividade, Guarnieri passou sua última década em uma casa na Serra da Cantareira, em São Paulo. Escreveu mais de 20 peças e atuou no dobro de produções teatrais, além da presença marcante na teledramaturgia e de várias parcerias que se tornaram sucesso da música popular brasileira (como Upa Neguinho, com Edu Lobo, e Um Grito Parado no Ar, com Toquinho).

Sem fazer distinção entre o suporte, encarnava o homem do palco, seja no tablado ou na tela da TV. Com o mesmo brilho, interpretou a primeira versão de Tonho da Lua, personagem no folhetim Mulheres de Areia, exibido na TV Tupi, em 1973, e dividiu a cena, em 1986, com Fernanda Montenegro em Cambalacho, novela da Rede Globo. Fez parte da infância de muitos como Orlando Silva, o avô de Lucas Silva e Silva, na série de TV Mundo da Lua, exibida pela TV Cultura, nos anos 1990.

Muito ativo cultural e politicamente, Guarnieri – que também foi secretário de Cultura de São Paulo entre 1984 e 1986 – é considerado um dos maiores dramaturgos do teatro brasileiro. “Todas as suas peças estão conectadas com seu tempo histórico e conseguiram concentrar discussões e temas de muita força – até hoje”, contextualiza Mariana.

O dramaturgo faleceu há pouco mais de dez anos, em agosto de 2006.

 

Companheiros de viagem

Gianfrancesco Guarnieri  não economizava no carinho para  falar dos amigos de jornada

Segundo o autor da biografia Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar (Imprensa Oficial, 2004), Sérgio Roveri, que conversou longamente com Guarnieri para a pesquisa de seu livro, o dramaturgo não economizava no carinho para falar de companheiros que o ajudaram a escrever a história do moderno teatro brasileiro. Demonstrava uma gratidão e uma grande admiração especialmente por dois amigos. Em depoimento para Roveri, o dramaturgo falou sobre cada um deles. Veja a seguir.

José Renato: Em 1958 foi diretor da primeira montagem de Eles Não Usam Black-Tie, no Teatro Arena, texto que revelou o talento do jovem Guarnieri para a cena do país. “O papel do Zé Renato foi decisivo no sucesso da peça. Foi ele quem nos ensinou a dar os primeiros passos concretos, a tirar os vícios de interpretação que eu tinha, a mostrar que eu não podia ficar tenso em cena, com os ombros encolhidos.”

Augusto Boal: “Comecei a escrever para teatro após a chegada do Augusto Boal ao Arena. Eu estava muito entusiasmado com esta descoberta e este estudo da dramaturgia brasileira. A primeira peça que o Boal dirigiu no Arena foi Ratos e Homens, do John Steinbeck, em 1957. Ganhei o prêmio de ator revelação por este trabalho”.


Dramaturgia na veia

Leitura dramática retoma texto emblemático do teatro brasileiro

Escrito em 1965 por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, Arena Conta Zumbi é um dos textos emblemáticos da dramaturgia nacional e foi relembrado em leitura dramática no mês de dezembro no Sesc Vila Mariana.

Participaram da leitura cênica atores e músicos ligados a grupos atuantes na cidade de São Paulo, como a Cia. do Latão, Coletivo Negro, Pessoal do Faroeste e Sambadas. A direção foi feita pela dramaturga, atriz e professora de história do teatro brasileiro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-Unesp) Mariana Mayor. Para ela, a oportunidade foi “uma forma de realizar conexões históricas entre a produção teatral do Arena logo após o golpe de 1964 com os nossos tempos”.

Mariana destaca que essa foi uma das primeiras peças a dar destaque a personagens negros, “colocando-os como protagonistas de sua própria história – num país dominado por 300 anos de escravidão. E, como contraponto a essa realidade brutal, a peça nos faz sonhar com novas formas de viver no mundo, evocando o ideal de liberdade”, explica.

Os atores que realizaram a leitura foram Carol Nascimento, Bruno Caetano, Érika Rocha, Jé Oliveira, Luciano Mendes de Jesus, Sara Mello Neiva e Paloma Franca Amorim, acompanhados dos músicos Júlio Oliveira e Paulinho Tó, responsáveis por executar as canções de Edu Lobo.