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Acessibilidade cultural não é opção, mas necessidade
“Não somente é possível, mas atualmente é urgente e prioritário pensar a cultura para todos. A acessibilidade às artes segue um forte movimento mundial em que vários países estão se mobilizando para gerar políticas públicas e ações concretas pensando a pessoa com deficiência como cidadão cultural” – Ney Wendell
A EOnline entrevistou o professor Ney Wendel, docente da Faculdade de Artes da Université du Québec à Montréal - UQAM (Canadá). Ele é especialista em mediação cultural inclusiva. Wendell foi consultor na FUNCEB – Fundação Cultural do Estado da Bahia na gestão cultural e mediação inclusiva, além de ser autor dos livros Direitos humanos no combate à violência: ações com adolescentes e jovens, publicado pela UNICEF em 2007; e Cuida bem de mim: teatro, afeto e violência nas escolas, pela EDITUS em 2010.
EOline: Como iniciou o seu envolvimento com o tema da acessibilidade cultural?
Ney Wendell: Sou artista e militante social e sempre lutei pela democratização da cultura nos diversos lugares que desenvolvi meus projetos e pesquisas. Segui uma carreira acadêmica passando pelo mestrado e doutorado com o estudo voltado para a mediação cultural e o desenvolvimento social. Em paralelo, sempre atuei em organismos culturais comunitários desenvolvendo ações de arte social e colocando em prática o acesso à cultura como direito do cidadão. Meu envolvimento com a acessibilidade se estabelece quando comecei a trabalhar mais numa perspectiva de cidadania cultural articulando três visões complementares que somam-se positivamente na minha carreira de artista, educador e mediador cultural. Um primeiro olhar foi científico, a partir do ensino em universidades no Brasil e no Canadá, verificando os impactos da pesquisa e da formação no desenvolvimento cultural da sociedade. Um segundo olhar foi comunitário, a partir da minha atuação em ONGs visualizando concretamente os efeitos transformadores da vivência artística com ênfase no cidadão que cria, vive e muda a cultura em seu bairro e cidade. E por último, minha visão norteada para a política pública, quando trabalhei na administração governamental como diretor do setor teatral no estado da Bahia. Em todas estas experiências de luta pela colocação do público como cidadão cultural eu pude ver as necessidades e dificuldades de ampliar o acesso à cultura. A ideia de acesso passa por diversas dimensões ligadas à inclusão, à linguagem e aos códigos culturais; a mobilidade física e financeira para ir e vivenciar as artes nos espaços culturais; a formação do ser público através de etapas de mediação cultural antes (preparação), durante (apropriação) e depois (reverberação) dos eventos; a equidade na consumação dos produtos culturais com procedimentos que facilitem o acesso de populações menos favorecidas; métodos criativos, inovadores e democráticos de mediação entre obra e o público com deficiência e tantas outras medidas que amplificam o sentido de acessar. Desta forma, considero que na minha especialidade em mediação cultural as ações que desenvolvo no Brasil e no Canadá respondem ao meu envolvimento político, social e acadêmico na luta diária para que cada público tenha seu direito à cultura garantido pelo Estado e pela sociedade.
EOline: Em muitos espetáculos observamos ações visando a acessibilidade e mediação. Um dos exemplos são peças de teatro com um intérprete de Libras. Esse tipo de adaptação torna a peça imersiva para o público com deficiência? Poderia nos contar seu ponto de vista?
Ney Wendell: Quando descobri a experiência da companhia Cie Danse des Signes, de Toulouse na França com a montagem da Ópera Carmem completamente em Libras, fiquei extasiado com a riqueza estética, social e emocional que este tipo de renovação artística proporciona. Há nesta característica de espetáculo a humanização que toca rapidamente o coração, despertando uma reflexão sobre o artista e o público com deficiência que se mantém ainda excluído de muitas experiências de criação. Várias companhias de teatro no mundo vem inserindo artistas com deficiência em seus espetáculos, ampliando sua relação/mediação com a pluralidade de públicos. Hoje devemos olhar o público como cidadão cultural que também vive as artes como criador em seu diálogo participativo e seu envolvimento com a obra, as quais vem se tornando cada vez mais inclusivas. Considero que é necessário haver uma diversidade de métodos de acessibilidade que os fazedores culturais devem proporcionar ao público com deficiência que facilitem seu ver, fazer e pensar a arte como direito. Esta mudança de produzir cultura pela via da democratização do acesso, implica governos, espaços culturais, grupos artísticos, artistas, produtores e o público em geral para pensarem juntos medidas que respondam a este direito à cultura para todos e com todos. Neste sentido, um espetáculo de teatro com interpretação em Libras é apenas um exemplo que deve ser cada vez mais comum na mediação a ser desenvolvida pelas companhias. Outras propostas são apresentações com horários específicos para este público ou integrá-los de outras formas; parcerias entre organismos sociais e espaços culturais para criar métodos criativos de acesso para o público; pensar nas diversas tecnologias que são de fácil manipulação atualmente para que as obras sejam acessíveis em larga escala; incluir artistas com deficiências para que os produtos e espaços de arte potencializem seu contato com públicos diversificados. Podemos fazer uma imensa lista aqui para fortalecer este sentido positivo, necessário e impactante do uso de métodos inovadores de acesso. Mas um dos pontos fundamentais é a escuta do público que precisa ter seu espaço garantido de opinião. Por isso, penso que é imprescindível desenvolver pesquisas com o público com deficiência que frequentam ou não espaços culturais para analisarem sobre as soluções necessárias. A inclusão de uma diversidade de públicos vai além do pensar e agir, mas principalmente pelo sentir, pelo coração que nos move a humanizar, a integrar todos na magia da experiência estética, na beleza de sorrir, emocionar-se e viver a fundo uma obra artística.
EOline: É possível pensar espetáculos e ações artísticas que utilizem Libras, audiodescrição, legendas, entre outras ferramentas acessíveis, como parte integrante da obra artística e não como um acessório?
Ney Wendell: Não somente é possível, mas atualmente é urgente e prioritário pensar a cultura para todos. A acessibilidade às artes segue um forte movimento mundial em que vários países estão se mobilizando para gerar politicas públicas e ações concretas pensando a pessoa com deficiência como cidadão cultural. Temos um bom exemplo no Brasil, neste ano, com a criação do Dia Nacional do Teatro, comemorado em 19 de setembro, criado pela lei sancionada 13.442/2017. É resultado de lutas culturais, principalmente do grupo Os Inclusos e os Sisos - Teatro de Mobilização pela Diversidade, mantido pela ONG Escola da Gente. Este grupo vem desenvolvendo espetáculos que proporcionam a acessibilidade através de uma multiplicidade de métodos e ações antes, durante e depois dos espetáculos. Para que as ferramentas de acessibilidade não sejam somente acessórios é essencial pensar no público desde do início da concepção da obra, incluí-lo como parte integrante de um processo criativo. É neste sentido que entra a mediação cultural como elemento chave de um grupo artístico, pois o seu projeto deve incluir metodologias artístico-pedagógicas voltada para formação do público autônomo, criador e participativo. Num exemplo de um espetáculo teatral, a dramaturgia, a concepção cênica, o cenário, iluminação, etc., podem ser pensados desde o início para se atender a uma diversidade de públicos. É neste planejar para a diversidade que se inclui o público com deficiência e como ele deve ser de forma humanizada integrado como pessoa criadora e não somente como um espectador contabilizado em números. É nesse sentido que a mediação cultural é considerada um elo pela construção de uma relação de empatia criativa entre público, artistas e obra. Pode-se pensar na etapa do antes do evento cultural com atividades preparatórias através de oficinas, visitas ao teatro, ao cenário, encontros com artistas, participação ativa em etapas da criação da obra, etc. Na etapa “durante”, o evento pode incluir medidas inovadoras e criativas de audiodescrição com utilização de tecnologias, a exemplo dos aplicativos Sennheiser MobileConnect e MovieReading; presença de intérpretes de libras envolvidos na estética da obra sem separá-lo como acessório externo; legendas que alimentem ludicamente a imersão do público; utilizacão de programas do evento em braile ou letras ampliadas; setores e assentos reservados para pessoas com mobilidade reduzidas. Ao falarmos da diversidade do público, temos também que pensar na diversidade de artistas para que a mudança inclua e se efetive em diversas dimensões. É nesta perspectiva que devemos pensar na formação e inserção cultural de artistas com deficiências. Um bom exemplo que tive oportunidade de conhecer é o grupo Theatre Of the Silence (TOS) fundado por deficientes auditivos em 2000, em Hong Kong (China). Seu trabalho e ativismo social busca sensibilizar as pessoas para a inclusão do artista. Sabemos que existem atualmente no Brasil e em outros países muitos grupos de dança, teatro, música, artes visuais, cinemas, performances, etc., formados por artistas com diferentes tipos de deficiência visual, motora, mental e auditiva com excelentes qualidades estéticas. Devemos hoje desfazer estas fronteiras que enquadram artistas em divisões discriminatórias e integrá-los numa perspectiva estética plural e profissional que valorize a diversidade. Acredito muito neste viver coletivo e solidário de públicos e artistas nas suas diferenças ou pluralidades humanas que enriquecem a diversidade das artes.
EOline: Você acredita que com a arte é possível conscientizar as pessoas a respeito das pessoas com deficiência? Por quê?
Ney Wendell: Com certeza. A arte transforma com o seu impacto criativo e sensível no coração do ser humano. É a partir deste ser humano capaz de sentir, refletir e agir que a arte se faz transformadora em suas dimensões locais e globais. Quando uma criança vivencia uma obra artística gerando memórias de prazer e bem estar, há um sentido maior da vida e de sua beleza que se instala em seu coração. Quando um público com deficiência experimenta pela primeira vez um contato sensível com uma obra artística, ele se vê como cidadão de direito cultural e como ser humano que quer viver a profundeza das emoções numa criação artística. Pensar na conscientização é um primeiro passo para gerar novos comportamento e atitudes em relação às pessoas com deficiência, mas é preciso entender que a consciência necessita gerar ações concretas. Estas ações permeiam dimensões fundamentais na nossa sociedade que modificam a cidadania cultural voltada para públicos e artistas com deficiências. Uma destas dimensões é a formação que passa pela escola, com seus programas priorizando as artes com e para todos, seguindo pela profissionalização de artistas com seus diferentes níveis de deficiência e também criações de programas educativos em espaços culturais para uma diversidade de públicos. Outra dimensão fundamental é a constituição de políticas públicas que vão desde o bairro, cidade, território cultural, estado, região e país. Em cada instância deve haver políticas que afirmem o direito à cultura para as pessoas com deficiência, buscando resoluções para a mobilidade urbana; adaptações de espaços culturais; inclusão de mediadores culturais preparados para desenvolver programa com o público com deficiência; organizações de editais de incentivo a cultura voltados para públicos e artistas com deficiência; aprovações de leis que garantam verbas e programas específicos para esta clientela, etc. Uma terceira dimensão é a mudança da forma de conceber, realizar e avaliar a produção cultural pensando na inclusão de públicos diversos. Para isso precisa-se conscientizar com maior esforço os artistas e produtores para que repensem as obras numa perspectiva inclusiva tanto no processo de criação, exibição e circulação. Os projetos culturais devem ser acrescidos de ações de mediação cultural que facilitem a participação de artistas e o acesso do público com deficiência. A ideia de produzir e vivenciar a cultura não deve estar restrita aos espaços culturais, refletindo as orientações atuais de descentralização da prática artística e da visão do lugar onde vivemos como bairro ou cidade cultural onde ruas, casas, instituições diversas formam um amplo e múltiplo viver das diferenças culturais. Para refletir sobre esta cidadania é necessário ver e questionar o mundo num olhar dialético que problematize questões do elitismo cultural que ganha força pela desigualdade econômica alarmante; da retomada de censuras artísticas através de pensamentos e políticas extremistas; da depredação dos espaços públicos de cultura e educação; da precarização do trabalho profissional de artistas e grupos sem recurso para suas criações; entre tantos outros elementos que nos obrigam a questionar e a reivindicar exaustivamente direitos já garantidos. Uma quarta dimensão entre tantas outras possíveis é a educação das pessoas em geral que deve conscientizar-se da necessidade urgente da acessibilidade do público com deficiência que continua aumentando em sua quantidade no mundo inteiro. A população precisa ser informada por meios de comunicação diversos; formada desde a escola a viver junto e respeitar o acesso cultural dos diferentes públicos; de participar como sociedade civil organizada na luta pela garantida do direito e do cumprimento do dever do estado para com a acessibilidade cultural e a autonomia do público com deficiência na fruição das artes; e principalmente estar solidariamente disponível a viver numa integração cultural harmoniosa. Permanece na esperança de que públicos e artistas com e sem deficiências unam-se por uma cultura que integre a diversidade pela solidariedade.