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Para que um código de ética?
texto Renato Janine Ribeiro *
Um código de ética está entre a lei e a ética. Códigos são leis: exigem obediência. Mas a ética é diferente da lei. A lei ordena as relações humanas, de fora – enquanto a ética se interessa pelo valor intrínseco das ações das pessoas. Um exemplo simples: se você cumpre a lei, para a sociedade isso basta. Mas para a ética o que conta é por que você cumpriu (ou violou) a lei. Para sabermos se você, além de cidadão, é um sujeito ético precisamos saber por que obedeceu aos mandamentos legais. Se os cumpriu por medo, não há ética. Não quer dizer que seja antiético; apenas, não é ético. Há várias razões éticas diferentes para obedecer à lei. As principais são:
(1) considerar justo o conteúdo de uma lei,
(2) entender que, como foram votadas pelos representantes do povo, obrigam a todos.
Vejam o problema: desde que a obediência à lei passe pelo crivo da consciência individual, pode ser que alguém, eticamente, decida desobedecer a ela. É o que vemos no primeiro grande texto ético de nossa tradição, a tragédia de Sófocles, Antígona, encenada em 442 antes de Cristo. A heroína enterra o irmão morto, apesar da proibição do rei seu tio. Nega-se a pedir desculpas, diz que seguiu leis superiores às dos homens. Prefere morrer. A ética assim nasce, no Ocidente, de uma violação da lei iníqua. Mas vejam que descumprir a lei não é brincadeira. Nenhum defensor da desobediência civil, nem Thoreau nem Mohatma Gandhi, disse que o desobediente deve se esconder. Ele deve aparecer, assumir seu ato, suas duras consequências. Ser ético não é para fracos.
Códigos de ética são uma forma de lei. Só que a lei é baixada pelo Estado e prevê penas de multa ou prisão, enquanto os códigos emanam de empresas, sindicatos, associações profissionais – e não preveem penalidades. Além disso, claro, têm inspiração diretamente ética. O Código de Ética do Turismo, por exemplo, procura fazer que o turismo não prejudique – ao contrário, valorize – as populações autóctones, assim como os viajantes. Reconhece direitos e dita obrigações a todos, para que o turista não seja explorado nem a população local seja esbulhada de sua cultura e de seus bens.
O código determina claramente o que cada um pode e não pode fazer. Neste sentido, é uma lei, mesmo que não estatal e sem penalidades pecuniárias ou restrição à liberdade. Se a pessoa obedecer a tudo, estará agindo bem (provavelmente), mas não sabemos se o fará por convicção real ou por medo de perder o emprego. Por isso, o código não basta para tornar éticas as pessoas que trabalham com turismo. Mesmo assim, a importância desse código está em colocar uma atividade econômica no diapasão ético – e também de educar quem trabalha com turismo para o respeito aos clientes e às populações. Essa pedagogia é um ponto crucial. O código é pedagógico. Pode contribuir para que as pessoas não apenas ajam corretamente, mas se tornem pessoas éticas.
O que é mais importante, no código ético do turismo? Há cláusulas que exigem do agente que trate bem seu cliente. Ele não pode ser enganado. Essa regra não é trivial, porque o turista sempre está algo desprotegido. Dependendo de seu destino, pode não ter saída se tiver sido enganado sobre a qualidade do alojamento, os horários dos passeios, o atendimento prometido.
Porém, o que mais me chama a atenção no código ético do setor é a exigência de respeito às populações locais. Elas podem ser vítimas de um afluxo turístico excessivo, por vezes predatório. Ou pode chegar riqueza à região, mas ser apropriada por empresas de fora ou pelos ricos locais, ficando o custo para os mais vulneráveis. Assim acontece em regiões pobres que se tornam destinos paradisíacos, sem que necessariamente isso beneficie os mais pobres. Isso ocorre no Brasil e no mundo todo. Mas também sucede em lugares do mundo rico.
Tomemos Veneza. Em vinte anos, o número de residentes nessa cidade ímpar no mundo despencou de 200 mil para 60 mil. Uma medida recente da prefeitura – a criação de filas especiais para os moradores, no acesso aos encantadores vaporetos que são o transporte usual na Laguna – reduziu os danos: muitos residentes são parte idosos; antes disso, tinham de esperar muito tempo quando levavam sacolas de mercado para casa. Mas navios de cruzeiro continuam desembarcando milhares de turistas na piazza San Marco, para uma permanência de poucas horas, às vezes com lanche trazido de bordo, que invadem a cidade e eventualmente não gastam nada nela. É até possível que esses enormes navios ameacem as estruturas frágeis de algumas construções.
Isso, no plano macro. No micro, os moradores não aguentam tanto turista fechando as estreitas calçadas e pontes para tirar selfies. Isso cria um conflito nem sempre apenas latente. Daí propostas como a de cobrar uma taxa de cada turista que não se hospede na cidade. O fato é que há um problema aí, e que Veneza como local de residência pode desaparecer, tornando-se quase que só um museu, já nem tão vivo. Recentemente passei duas semanas no sestiere (uma ex-ilha que se tornou um bairro) Santa Croce, em casa de amigos, e vivenciei essa situação, que obviamente tem de ser resolvida para não prejudicar nem os moradores nem os que desejam conhecer um dos mais incríveis Patrimônios da Humanidade.
O que pretendi com esse exemplo? Dar a pensar um pouco. Ética é bom para isso: fazer pensar. Em nosso tempo consumista, pensar nos efeitos gerados pelo que consumimos é importante. Não basta comprar a passagem, a hospedagem, os passeios. É importante que o lazer de uns não prejudique a qualidade de vida de outros. Isso não se mede só em dinheiro. Os venezianos têm cada vez menos o direito de circular em sua cidade. Veneza, aliás, acaba de baixar uma lei limitando a oferta de fast food em seu centro. É justo, porque a cozinha da Laguna se vê ameaçada. Se alguns pratos típicos, como o fígado à veneziana, constam em muitos cardápios, o afluxo excessivo pode liquidar com a sua boa elaboração e até com a existência de vários deles.
E se pensarmos desta forma sobre os destinos turísticos em nosso País? Alguns de nossos lugares mais belos estão em regiões pobres. Bem conduzido, o turismo pode melhorar a economia dessas partes do País e produzir um jogo de soma positivo, um ganha-ganha em que visitantes e moradores se beneficiem todos.
Dou um exemplo meio do turismo, meio fora, que foi o depoimento que vi uma vez, em Fernando de Noronha, de um antigo caçador de tartarugas que agora trabalhava no Projeto Tamar. Ele aprendeu que as tartarugas marinhas não são para matar e comer, mas para cuidar. Ganham as tartarugas, agora respeitadas, nós, que as vemos e nos encantamos com elas, e os moradores da região, que conseguem empregos melhores para si e para o meio ambiente.
E termino com um ponto essencial da ética, que poucos conhecem. Por alguma razão, talvez devido aos Dez Mandamentos, estamos acostumados a pensar a ética como um rol de proibições. Isso é parecido com os códigos, em especial como o penal, que lista o que não podemos fazer, ou sejam, os crimes e contravenções – não as coisas boas a fazer. Eu costumo dizer que estamos saindo de uma ética do “não” (não matarás, não roubarás...) para uma ética do “sim”: vais melhorar a vida dos outros, lutar para que o mundo seja um lugar melhor para todos...
Pois bem, toda vez que discutimos ética, a dica é: não se limite a dizer o que é mau, proibido. Pense que só proibimos uma coisa para melhorar, não piorar, a qualidade da vida em geral. Se não posso fumar em lugares fechados, é para melhorar a saúde de todos, fumantes e não-fumantes. Se não devemos ferir, furtar e matar, é para dar mais tranquilidade a todos. Pense, a cada proibição, no bem que ela traz, mesmo que não seja para você. Quero dizer que o turismo deve trazer coisas boas, mais do que só evitar as más. Não é só impedir que polua, aumente desigualdades, gere turismo sexual: não é só evitar. É dar um upgrade no lazer de quem viaja, promover o conhecimento de outras pessoas e culturas, é melhorar a qualidade da vida do viajante e dos moradores. Ética é isso, é promover a vida boa. Boa eticamente.