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Estranho estrangeiro
Texto: Noemi Jaffe*
* Escritora e doutora em literatura brasileira pela USP. É autora de diversos livros, sendo o mais recente o “Não está mais aqui quem falou” (Companhia das Letras, 2017).
O estrangeiro é um estranho. Na verdade, estas duas palavras são sinônimos. Ambas significam “aquele que vem de fora”, “aquele que não faz parte”. Nas placas de algumas propriedades privadas e condomínios residenciais, por exemplo, lê-se: “Proibida a entrada de estranhos”. É claro que essa frase não pretende impedir o acesso de eventuais pessoas esquisitas, embora possa até soar assim. O significado de estranho como “esquisito”, “excepcional”, firmou-se a partir da ideia de que aquele que não pertence a uma determinada comunidade não é normal. Com seus hábitos diferentes, é suspeito, e, quem sabe, não seja até louco. De uma definição supostamente objetiva, o termo adquiriu um sentido pejorativo.
O estrangeiro é mesmo estranho. Não sabe usar a palavra “corrimão”, por exemplo. Percebe que nela há referência a uma parte do corpo – “mão” – e, ao tentar se lembrar do apoio, acaba dizendo: “rodapé”. O nativo não entende, ri enrustido e pergunta “O quê?”. E repete, superior: “Rodapé para apoiar a mão?”. O nativo acha o estrangeiro ridículo.
O estrangeiro é mesmo um pouco ridículo. Sabe discorrer razoavelmente sobre uma teoria filosófica na língua que tenta aprender. Mas não sabe o que é rodapé. Num restaurante por quilo, não sabe pedir uma bandeja, um guardanapo, uma colher. Diz “garfo”, querendo uma colher, e quando percebe o engano fica constrangido e tem vergonha de pedir o talher certo. Vergonha de si mesmo e dos outros. Sente-se humilhado por quase nada. Tenta decifrar os códigos do país que o recebeu. Por que todo mundo começa as frases com “então”? Tinha aprendido que “então” era uma conjunção que dá sequência lógica às frases. Sai à rua e cruza com alguém que lhe cumprimenta com: “E então? Muito sol hoje, né?”. Ele fica perdido. Aprendeu, com esforço, que, em português, os plurais geralmente são feitos com o acréscimo de um simples “s” . Deduz então que a palavra “Rebouças” é plural. Entra num táxi e diz que precisa ir nas Rebouças”. O motorista ri. O estrangeiro, que estava orgulhoso de si, se sente envergonhado sem saber bem o porquê de haver graça no que disse.
O estrangeiro está quase sempre desnorteado: geográfica, histórica e linguisticamente. Quer se adaptar e, para isso, sorri em todas as frases, porque reparou que é assim que fazem os nativos. Mas, muitas vezes, o faz fora de hora, de um jeito equivocado. Seu sorriso é despropositado ou, no máximo, charmoso. “Tão bonitinho”, dizem. O estrangeiro detesta ser bonitinho.
Ele faz de tudo para que não o reconheçam de imediato como um estranho. Por isso, fala pouco ou disfarçadamente. Mas não adianta, basta soltar um “bom dia” discreto e, sem pestanejar, todos já o identificam como estrangeiro. Ele se revolta, silencioso, porque não sabe como demonstrar sua indignação de forma espontânea.
O estrangeiro vive em estado de constrangimento, desentendimento e solidão. Se demora a aprender a língua, consideram-no preguiçoso e inadaptado. “Em Roma como os romanos”, dizem. Se, entretanto, aprende rápido demais, seus poucos companheiros estrangeiros o olham entre desconfiados e invejosos. “Esquece fácil de seu país, pessoa sem identidade”.
A palavra “idioma” tem a mesma origem de “idiota”: “idio” significa peculiaridade ou particularidade. E assimilar as peculiaridades de uma cultura demora tempo demais, porque o aprendizado de uma língua e de hábitos novos se dá pelas generalidades e a absorção das nuances de um idioma é um processo altamente complexo. Na tentativa de assimilar estas sutilezas, o estrangeiro acaba soando, muitas vezes, artificial , inclusive para si mesmo, o que não raro o coloca em situação de baixa autoestima. Aquilo que soa tão natural para qualquer pessoa, desde crianças a motoristas de ônibus, na boca de um estrangeiro, – mesmo os que tiveram boa formação intelectual em seu país de origem, – soa absurdo, provoca risadas. Ele fica ensimesmado, desconfia de si mesmo e de todos. Não sabe se comportar no transporte público, no comércio, nem com desconhecidos e nem mesmo com os amigos próximos. Devo beijar, abraçar, apertar a mão, sorrir, perguntei algo íntimo demais, fui muito distante, indiscreto, posso perguntar o preço, a profissão, gesticulei demais ou de menos, ri na hora errada, por que me olham assim, o que sabem sobre mim, minha língua e meu país, acham que me considero superior, estão todos falando de mim? O estrangeiro desenvolve certa paranoia.
Julia Kristeva, no livro Estrangeiros para nós mesmos, pergunta se existem estrangeiros felizes. E responde que sua “felicidade estranha é a de manter a eternidade em fuga ou o transitório perpétuo”. Para o estrangeiro, na realidade, uma grande satisfação devem ser os momentos em que os nativos, em contato com ele, se dão conta da inconsistência do apego ao enraizamento e sentem certa inveja de seu estado de passagem. É o momento em que o anfitrião se identifica com o hóspede; quando quem recebe se dá conta de que algum dia ele também pedirá abrigo. De que sua necessidade de raízes é o que pode levá-lo a atitudes chauvinistas, autoritárias e radicais. Porque estrangeiros ou estranhos, se pensarmos bem, somos todos, e o mais absurdamente desconhecido é justamente aquele que habita dentro de cada um de nós. Como mostrou Freud com o conceito de “unheimliche”, ou o “estranhamente familiar”, aquele que ainda não estranhou o próprio rosto no espelho, que não duvidou da própria voz, que não se questionou sobre o que disse ou sobre como agiu, esse dificilmente vai chegar a se conhecer. É no contato com o estrangeiro, com seu deslocamento evidente, que o nativo identifica suas mesquinhas vaidades, suas fixações obsessivas e idiossincrasias.
Dentre outras coisas, é por essa razão – pela possiblidade que o estrangeiro oferece de vermos nossa própria “estrangeiridade” – que a prática da hospitalidade é, desde sempre, uma das mais sagradas em todas as sociedades. “Hôte”, de onde vem a palavra “hospital” e “hospitalidade”, significa, na origem, tanto anfitrião quanto hóspede.
A etimologia parece já saber aquilo que muitas nações ainda não aprenderam: que ambos são, com efeito, a mesma coisa. Receber o outro de forma aberta e sem discriminação, acolhê-lo, é receber a si mesmo. O filósofo Emmanuel Lévinas diz que Deus é “a face desconhecida do outro”. Nunca chegaremos a conhecer verdadeiramente quem está do nosso lado, seus mistérios e sua presença. Acolhê-lo sem muitas perguntas nem exigências é colocar-se em estado de prontidão para a circularidade do tempo e da história. Aceitar o mistério da face do outro, sem tentar decifrá-lo, codificá-lo para que ele se assimile aos nossos hábitos, é, no fundo, aceitarmos o mistério que habita em cada um de nós. Resistir à inércia do hábito – esse roedor da novidade e do deleite – é um dos mais importantes deveres éticos de cada indivíduo.
Certamente, o problema mais grave que o mundo enfrenta atualmente – maior do que as crises econômicas, mas diretamente ligado a elas – são os fluxos migratórios espalhados pelo planeta. Guerras, fome, abandono, ditaduras, escravidão, são inúmeros os problemas que, numa época totalmente globalizada e tecnológica, estão levando hordas de populações a buscarem abrigo e refúgio em outro país. Da mesma forma, são também inúmeros os países que dificultam e barram a entrada dessas pessoas. Sem pensar nos efeitos circulares da história individual e coletiva, líderes políticos agem como se o tempo fosse estático. Mal sabem eles que, se estão hoje em um momento de optar por receber ou não os refugiados, amanhã serão eles a pedir. Tampouco parecem se lembrar que, ontem mesmo, foram eles os invasores das casas cujos antigos proprietários vêm hoje reclamar guarida.
Em várias culturas indígenas há uma prática chamada “potlach”, sobre a qual o antropólogo Marcel Mauss escreveu, aliás, o “Ensaio sobre a Dádiva”. O potlach é um ritual de doação e de troca, em que o homenageado doa todos os seus bens para quem o celebra, quando nossa cultura esperaria o contrário. Ali, a honra consiste em despojar-se de todas as posses, sabendo que, no futuro, outro homenageado fará o mesmo.
Da próxima vez que der uma vontade irresistível de ridicularizar os erros de um estrangeiro, faça como aconselhou Rubem Braga: pique bastante papel dobrado em centenas de quadradinhos. Se não servir para alguma coisa, ao menos servirá para que você desista da tentação e, certamente, para passar o tempo.