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EDUARDO COUTINHO APROXIMOU O
DOCUMENTÁRIO DO PÚBLICO AO DAR VOZ A ANÔNIMOS
Durante uma retrospectiva promovida pelo Museu Reina Sofia, em fevereiro de 2013, em Madri, Eduardo Coutinho declarou ao jornal El País que fazia cinema sobre as pessoas que não apareciam no Google. Graças a seus documentários, os entrevistados e suas histórias saíram do anonimato e passaram a existir nas telonas e no mundo digital. Fumante inveterado, não se sentia à vontade em viajar de avião se aquelas horas significassem um intervalo sem seus cigarros. Contudo, naquela ocasião, a exibição de dez filmes e o convite para uma masterclass o fizeram concordar com a abstinência e encarar o percurso até a capital da Espanha.
A voz de Coutinho também viajou o mundo. No ano de sua morte, em 2014, a comoção se estendeu para além dos amigos e admiradores. Com um final trágico, que contrariava o modo direto e sem pompa de sua filmografia, morreu após ser agredido pelo filho, que sofria de transtornos mentais. A repercussão mundial refletiu o carinho e respeito pelo cineasta, reverenciado em vida pelo público e pela crítica. Em 2013, foi o homenageado da 37ª Edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Eduardo Coutinho me falava para não trabalhar com roteiro. Só que eu não conseguia. Acontece que ele tinha uma erudição, uma vivência, referências... Ele não precisava de roteiro. Na cabeça dele já estava tudo pronto. Já estava roteirizado”, relembra Isa Grinspum Ferraz, socióloga e documentarista convidada da seção Encontros desta edição.
Foto: Bacco Andrade
O dobro ou nada
Nascido em São Paulo em 1933, aos 12 anos participou de programas de rádio nos tradicionais jogos de perguntas e respostas sobre conhecimentos gerais. Já adulto, no fim dos anos 1950, ganhou um prêmio de 2 mil dólares no programa O Dobro ou Nada, da TV Record, ao acertar as respostas sobre Charles Chaplin. O conhecimento se transformou em viagem para a Europa. Nesse período, foi recomendado para uma bolsa de estudos no Institut des Hautes Études Cinématographiques (Idhec), na França. Inspirado pela ópera de Gian Carlo Menotti, produziu o curta-metragem Telefone. Em 1960, graduou-se em direção e montagem, retornando ao Brasil, onde exerceu atividades variadas: assistente do diretor Amir Haddad no Teatro de Arena e no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Mudou-se para o Rio de Janeiro em dezembro do mesmo ano.
Câmera na mão
A transferência para o Rio coincidiu com sua inserção mais direta no cinema. Aceitou convite de Leon Hirszman para liderar a produção do longa-metragem Cinco Vezes Favela (1962), composto de episódios dirigidos por Carlos Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges e Marcos Farias. Foi durante as gravações do episódio Pedreira São Diogo (Leon Hirszman) que decidiu se unir à caravana da UNE Volante, com o objetivo de documentar o cotidiano da população pobre do país. Nessa viagem conheceu Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado na Paraíba. A colaboração com Hirszman foi adiante, e passou a se dedicar a um documentário autoral sobre João Pedro Teixeira, o que envolve muita pesquisa e a necessidade de captar recursos financeiros.
Antes e depois
“Coutinho dizia que, antes de Cabra Marcado, não existia como cineasta”, pontua Milton Ohata, organizador do livro Eduardo Coutinho (Edições Sesc São Paulo e Editora Cosac Naify, 2013). As gravações começaram em 1964, em locações originais de Sapé, cidade da Paraíba. O golpe militar de março daquele ano interrompeu as filmagens. Os equipamentos foram apreendidos, o cineasta chegou a ser preso, mas retornou ao Rio de Janeiro na sequência, impossibilitado de continuar o filme. Os aproximados 60 minutos de negativos em 35 mm, por sorte, foram enviados a um laboratório no Rio de Janeiro pouco antes do ocorrido. Após a pré-montagem, o arquivo ficou guardado por David Neves na casa do pai, general do exército.
As gravações são retomadas em 1981, quando Coutinho dá um tempo no trabalho que desenvolvia no programa jornalístico Globo Repórter, no qual escreveu, pesquisou, editou e dirigiu seis documentários. A experiência o fez retornar à Paraíba e encontrar a família de Elizabeth Teixeira e os camponeses de Galileia, 20 anos depois de conhecê-los. A segunda etapa de Cabra e sua finalização levaram quatro anos até a estreia, em 1984, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Uma das belezas do filme é, segundo Ohata, retratar o “ressurgimento de uma líder popular – Elizabeth Teixeira – depois de anos de ditadura, além de documentar, ao mesmo tempo, o ressurgimento do próprio Coutinho. Os dois renascem juntos ao longo do filme, mostrando que o documentário podia ter a mesma força de uma grande obra de ficção”.
Fluir e influenciar
Reconhecidamente o maior documentarista do país, construiu uma filmografia que não se resume ao gênero de não ficção. Dirigiu O Pacto – Episódio ABC do Amor (1966), O Homem Que Comprou o Mundo (1968), Faustão (1971) e atuou como roteirista em A Falecida (1965) e Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976). Também se desdobrou em trabalhos para a televisão, até chegar ao cinema de antropologia selvagem – assim definido por ele.
As Canções, de 2011, foi o último dos 17 documentários lançados em vida. O póstumo Últimas Conversas (2015) foi concluído pela montadora Joana Berg e pelo documentarista e produtor João Moreira Salles. Aos 80 anos de idade, vemos Coutinho conversar com jovens num cenário econômico, como na maioria de seus documentários, nos quais a entrevista e a palavra se destacavam.
A cineasta Fernanda Pessoa, diretora do documentário Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017), explica que viu nos primeiros anos da faculdade Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000) e Edifício Master (2002), que a impactaram tanto pela forma de produção quanto pelo olhar do cineasta para os personagens retratados, colocando-os como “essenciais para se pensar o formato de documentário com entrevista e a relação entre diretor e personagem”.
Segundo ela, a influência pode ser vista nos primeiros curtas documentais que produziu, especialmente Femmes de Ménage (2014), no qual são entrevistadas três mulheres imigrantes que trabalham como empregadas domésticas em seus novos países. Mesmo não tendo Cabra Marcado para Morrer como influência direta para seu filme mais recente, a relação conceitual entre ambos é clara para ela, sendo referência para o documentário metalinguístico: “Coutinho usa o resgate de um filme interrompido para falar sobre a história e situação política, evidenciando a importância do cinema e a perseguição que a arte em geral sofre em contextos autoritários. Cabra apresenta recursos formais que seguem influenciando documentaristas”.
Jogo de mestre
Entre ficção e realidade,
o cinema de Coutinho
circula entre os dois
Cabra Marcado para Morrer (1984)
Considerado um divisor de águas no documentário brasileiro, completa 35 anos de seu lançamento em 2019. Após a estreia brasileira, participa de festivais internacionais, acumulando
12 prêmios. The New York Times, Le Monde e
El País saúdam o filme em críticas elogiosas.
Santo Forte (1999)
Gravado na comunidade Vila Parque da Cidade, na Gávea (RJ), foi o primeiro longa-metragem produzido por uma ONG no Brasil, a Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular). Nele um morador faz as vezes de personagem e guia, até se tornar um tipo de assistente da equipe.
Edifício Master (2002)
Nasceu de Consuelo Lins, documentarista e colaboradora de Coutinho, a ideia de fazer um filme sobre um prédio em Copacabana. Definido pelo cineasta como um filme sobre a solidão, não há um assunto orientador e a ausência de tema dá abertura para as pessoas construírem seu diálogo com o cineasta.
Jogo de Cena (2007)
Com a participação de Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra, foi encenado no espaço de um teatro, com atrizes profissionais e amadoras. O teatro é o cenário do filme, um marco conceitual nesse cinema que abandona o registro temático para se fixar na depuração da forma em investigações que mergulham em aventuras quase abstratas na fronteira do teatro com o cinema.
*Fonte: Eduardo Coutinho
(Edições Sesc São Paulo |
Editora Cosac Naify, 2013)
Em imagens e palavras
Livro e DVD desvendam a filmografia do cineasta
O DVD de 7 de Outubro (Carlos Nader, Selo Sesc São Paulo, 2015) e o livro Eduardo Coutinho (Edições Sesc São Paulo e Editora Cosac Naify, 2013) levam ao mesmo caminho: o universo do documentarista Eduardo Coutinho. O documentário inverte os papéis e coloca o cineasta diante da equipe para uma entrevista feita por Carlos Nader. O livro reúne dois ensaios e dez entrevistas, além de 39 textos de crítica escritos por Coutinho para o Jornal do Brasil, entre 1973 e 1974. Na segunda parte, depoimentos de colaboradores contam como era filmar com o diretor. Na sequência, resenhas de época e textos inéditos sobre sua filmografia.
Assista à entrevista com Eduardo Coutinho no programa Sala de Cinema do SescTV