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Balneário sem mar

Todo domingo de verão é a mesma coisa. Depois do café da manhã, a família se prepara para aproveitar o dia. Os meninos vestem as sungas, a mãe põe um biquíni bem cavado para deixar aquela marquinha e o pai um bermudão. Enquanto ela prepara o isopor com bebidas e sanduíches cantarolando Rihanna, o pai carrega o carro com cadeiras e guarda-sol, os meninos caminham pela casa juntando brinquedos como se fossem ímãs humanos, seus corpos cobertos com bola, pistola d’água, carrinhos, boné, raquetes de frescobol. Quem dirige o carro é a mãe, porque gosta de estar no controle de tudo, especialmente das rádios, que muda com frequência, procurando letras que conheça para em algum momento dizer, ela sempre diz isso, se eu quisesse poderia ter sido cantora.

Uns oito hits de FM depois, a família chega no Largo de Santa Cecília, onde o relógio de rua marca 32 graus e a família já começa a suar para conseguir uma vaga. Acabam estacionando o carro na rua de baixo, não tão concorrida por estar sempre cheia de fumadores de crack, e logo estão desviando das pernas magras e sujas estiradas na calçada com o colorido de seus acessórios de verão. Em seguida sobem a rampa, por onde os meninos correm livres para a imensidão do elevado, também conhecido como Minhocão, duas pistas de asfalto que cortam o mar de prédios de São Paulo na altura dos primeiros andares, fechadas para os carros e abertas para o lazer nos fins de semana.

A mãe olha o relógio de pulso e calcula qual o melhor ponto da orla naquele momento, um recorte entre dois prédios recuados da Alameda Glete, onde o sol bate generoso. Lá vai o marido para a tarefa inglória de fincar o guarda-sol no concreto. A única forma de fazê-lo é colocando o cabo no vão entre as muretas que separam as pistas, de forma que logo a família se vê apartada por uma pequena bancada de meio metro, a mãe sentada na cadeira reclinável de um lado, o pai do outro, os meninos saltando da proa do navio imaginário para atacar com as pistolas d’água os piratas que flutuam nas águas cinzas da pista esquerda.

Como todo domingo, em algum momento o morador do 212 da Alameda Glete, cuja varanda abre-se para o Minhocão, resolve faxinar a casa ouvindo um som. Dessa vez, bolero, ritmo que a mãe não curte muito, mas acaba engolindo com uma cervejinha para ver se desce melhor. Quando ela está relaxando a ponto de cantar um verso em portunhol, os filhos, que agora são dois policiais, aparecem com suas pistolas contando que um cachorro morreu. A mãe acha que é parte do faz de conta, mas logo avista o cadáver esticado no chão, o pequinês que teve insolação por caminhar com as patas sobre aquela frigideira de asfalto. A dona do bicho chora, os quatro se aproximam para observar a cena, o pai pensa que Besame Mucho está bem adequado, e quando a mãe olha para trás, o guarda-sol deles está sendo levado por um gatuno, que pula do elevado para dentro de um prédio abandonado da Rua Martim Francisco. O pai fica perplexo, roubar celular ali é normal, mas um trambolho verde-limão estampado com melancias? Os quatro debruçam-se na borda do Minhocão, volta aqui, sem-vergonha, mas logo são afugentados por uma nuvem de CO2 que sobe de um caminhão trafegando na pista de baixo.

O filho mais velho tosse, a mãe lembra que precisa hidratá-los, dar o lanche, já passa das duas da tarde, e então percebe que se esqueceu de tampar o isopor, as águas e as cervejas estão mornas, a maionese dos sanduíches azeda, o único vendedor ambulante que encara trabalhar naquele calor é um de algodão-doce, talvez pela leveza do produto, talvez pela sombra que o leque de tufos produz sobre ele. Os meninos comemoram: o almoço hoje é algodão-doce, e a família rumina a anilina, enquanto a mãe comenta que é melhor saírem do sol ou vão acabar como o pequinês, mas agora as abas de sombra estão concorridas, apinhadas de outros veranistas, de adolescentes ensaiando coreografias, de garotos tocando violão, de ciclistas, skatistas e maratonistas trespassando esses aglomerados. O marido acalma a mulher, daqui a pouco o sol some atrás dessas antenas, e sugere que ela beba para relaxar, a cerveja nem está assim tão quente. Ela aceita, os dois batem papo, os meninos vão jogar frescobol, uma turma de novos amigos em fila esperando para jogar também.

Às seis da tarde, a mãe está bêbada, os meninos estão com a pele ardendo, o pai está disléxico de fome. Resolvem ir embora, não sem antes assistir ao pôr do sol, que não aparece em carne e raios naquele horizonte fragmentado, mas pode ser visto em toda a sua laranjitude refletido na fachada espelhada de um conjunto comercial. Os quatro sentam lado a lado. A mãe canta Here Comes the Sun enrolando a língua, o pai vaia, o irmão mais novo encosta no ombro do mais velho, que grita de dor. Um dia os meninos irão lembrar desse verão como um dos melhores de suas vidas.
 

GIOVANA MADALOSSO é redatora de roteiros para televisão e autora de

A Teta Racional (Grua, 2016), livro de contos finalista do Prêmio

 Literário Biblioteca Nacional, e do romance Tudo Pode Ser Roubado (Todavia, 2018).

 

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