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Do livre ao proprietário: tecnologias e oportunidades para todos os gostos
Muito utilizadas no Brasil no campo das artes, da cultura e da educação, as tecnologias livres e, em especial, os softwares livres não habitam um mundo à parte dos negócios e dos intercâmbios comerciais. Pelo contrário, seus princípios de colaboração e de compartilhamento podem oferecer também oportunidades que são, sim, lucrativas e economicamente saudáveis.
Com graduações em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e Ciência da Informação, pela Universidade de São Paulo (USP), a hoje doutora em Ciência da Informação pela USP Ana Carolina Silva Biscalchin estuda há quase dez anos os caminhos da cultura e da comunicação na era das tecnologias digitais. Em sua tese de doutoramento, abordou as políticas públicas nacionais voltadas ao estímulo do uso do software livre no período de 2003 a 2014 e os legados dessas iniciativas. A EOnline conversou com Ana Carolina para entender como as tecnologias livres se inserem nos fluxos atuais de trocas de saberes e mercadorias.
EOnline: Do que estamos falando quando procuramos identificar diferenças entre tecnologias livres e tecnologias proprietárias?
Ana Carolina: A gente está falando em licenciamento – e não [necessariamente] de lucro, dinheiro ou comercialização. As tecnologias são escritas em passo a passo. Quando a gente fala de tecnologia, a gente pode estar falando de um modo de cultivo de alguma planta, por exemplo, o passo a passo de como se faz o cultivo dela. No caso de um software, é um código que descreve quais ações um computador deve realizar. O código pode ser livre [disponível para conhecimento de todos]. A tecnologia pode ser proprietária [ter uma distribuição comercial]. Mas pode-se expor o código [publicamente] para que você ajude aquela determinada empresa a modificá-la. Isso está acontecendo, por exemplo, com grandes empresas hoje, como Google, Adobe e Oracle. Elas todas expõem essas tecnologias de maneira aberta, com o código aberto, mas elas estabelecem que depois que aquela modificação for inserida no código delas, aquilo vai ser comercializado de uma maneira privada, proprietária. Já alguns produtos da Microsoft – que oferece grandes exemplos de softwares proprietários, que deram muito certo comercialmente – são feitos de maneira completamente fechada: os desenvolvedores constroem o código e vira segredo. E aí, você não compartilha esse código com ninguém e você encaixota ele e vende como solução. No outro extremo, você tem um código totalmente aberto que atende às quatro liberdades essenciais da Free Software Foundation (FSF).
Fonte: Site mantido pela Free Software Foundation (FSF) para o sistema operacional GNU. A página está licenciada sob uma licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
EOnline: Então, entre uma interpretação mais estrita, digamos, da filosofia da FSF e as práticas proprietárias completamente fechadas, há muitas variações.
Ana Carolina: Exatamente. Dentro dessas duas possibilidades [tecnologias totalmente livres e tecnologias totalmente proprietárias], você tem um espectro de possibilidades. Você tem licenças criativas, você tem direitos de licenciamento abertos e fechados, você tem direitos de comercialização combinados com códigos abertos. Então, há um espectro. Por isso, quando a gente fala [de uma eventual situação em] que o software proprietário se apropria do software livre ou que as grandes empresas se apropriam do software livre, a gente pode estar incorrendo em um erro de conceituação, porque o software pode estar disponível para essas negociações. Tudo depende do modelo de licenciamento.
EOnline: Mas há questões de visão de mundo e até de valores morais na escolha desses diferentes tipos de licenciamento, não?
Ana Carolina: Sim, por isso que a ética hacker, que vem lá dos anos 70, é tão importante nessa conversa. Porque ela vem de uma mentalidade de que conhecimento não se faz sozinho, conhecimento se faz de maneira compartilhada. Conhecimento se faz muito mais rápido quando várias cabeças pensam juntas. E aí, quando você junta essa mentalidade a um processo emergente – que era o computador pessoal nos anos 70 e 80 – e diz: 'Olha só, eu quero ter a liberdade de poder mexer e ter autonomia sobre o meu produto, sobre aquilo que eu compro, sobre o meu hardware. Para ter autonomia sobre o meu hardware, eu preciso conversar com ele a partir de um software, eu preciso ter autonomia em cima do meu software. Então, aprender a programar, pra mim, é uma liberdade. Aprender a manipular o meu software é uma liberdade. Ter direito a manipular o meu software é uma liberdade.' Essa liberdades fundam a Free Software Foundation. Mais tarde, nos anos 90, você tem a fundação do movimento Open Source, que é o movimento do Código Aberto, que diz: 'Ok, você pode ter essas liberdades, mas a gente queria um 'mistão', um lugar que ficasse entre o [software] proprietário e o completamente livre, que a gente pudesse contribuir, mas que, ao mesmo tempo a gente pudesse comercializar, fazer um processo lucrativo em cima.' Então, discutir as coisas de uma forma dicotômica [...] não dá. A gente tem que ver que há nuances.
EOnline: Você poderia dar mais alguns exemplos de iniciativas que utilizam software livre e estão inseridas no mercado?
Ana Carolina: Hoje, a maioria dos servidores roda softwares de código aberto. Você tem muitas empresas que trabalham com softwares de código aberto. Você tem modelos de negócio de software livre que funcionam muito bem. Você tem grandes empresas, como a Red Hat, que trabalha somente fornecendo serviços para softwares livres. Todos os softwares da empresa são livres. Ela oferece o serviço qualificado dos seus profissionais para dar manutenção para aquilo que você precisa. Porque a qualificação de quem vai mexer no software também é muito importante. Então, você tem modelos de negócio diferentes e é uma biosfera de tecnologia que funciona muito bem, que, em alguns momentos, precisa ser mais livre e, em alguns momentos, pode ser mais proprietária.
Ana Carolina Silva Biscalchin segue pesquisando sobre educação, autoria, informação, tecnologia, políticas públicas, software livre, produção cultural e cibercultura. Atualmente, ela está se aventurando também pelo universo das linguagens de programação, como aluna em uma iniciativa de ensino de programação para mulheres, o Laboratória.
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