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Transgressão em escalas

De acasos é feita a trajetória de Daniela Thomas. Mesmo tendo cursado os primeiros anos de História na faculdade, foi pelo caminho do cinema, do teatro e da cenografia que a diretora de Mãe Coragem (peça que esteve em cartaz no Sesc Pompeia até o final de julho) e de Vazante (longa-metragem de 2017) enveredou. A partir dos anos 1980, enquanto esteve casada com o diretor Gerald Thomas, dedicou-se à cenografia de várias produções teatrais, como Quatro Vezes Beckett (1985) e Tempestade e Fúria (1991), com Fernanda Montenegro e Fernanda Torres nos papéis centrais. Mas apenas em 1994 é que se multiplicou para além do tablado. No cinema, foi convidada por Walter Salles para compartilhar a direção e o roteiro de Terra Estrangeira. Desde então, a sétima arte e o teatro refletem seu olhar crítico sobre narrativas e conflitos sociais. Um olhar lapidado pela curiosidade que a acompanha desde criança, ao observar o trabalho do pai, o cartunista Ziraldo, num processo de criação sem hora para começar ou terminar.  Da mesma forma, o tempo de Daniela Thomas derruba fronteiras. Afinal, como ela disse à Revista E: “Fui criada para criar”.

De onde eu vim

Fui educada no meio da confusão da vida de adultos, guardadas as devidas proporções. Vivi uma vida muito livre em casa. Eu vi, senti e ouvi tudo que estava acontecendo ali – o processo de criação, as questões da ditadura e como ela foi impactante na vida da minha família. Tive uma educação para a vida adulta que não distingue nem tem essa coisa condescendente com a criança. Fui criada para criar. Mas em grande parte da minha vida achei que não tivesse o tal “fogo da criação” porque sou filha do Ziraldo, um cara cuja capacidade criativa é um negócio louco. Ele desenha e pensa sem fim. Um especialista em generalidades, ele é capaz de convencer o irmão de que sabe mais do que ele sobre algo do qual não tem a menor ideia. Mas é uma pessoa extraordinária. Então, eu fui criada nesta casa, com minha mãe tentando dar ordem à família e meu pai, que nem se dava conta de que a gente estava ali, e a única coisa que fazia era pedir que a gente trocasse a água e lavasse os pincéis. Fui criada num lugar idílico, na praia, em Copacabana, era feliz igual passarinho.

 

Acho que a mágica está

em conseguir criar algo

que seja uno e que tenha

impacto como objeto completo
 

Ser no plural

Quando eu tinha 10 anos, meu pai foi preso três vezes. Fui mandada para um lugar chamado São Paulo, e na época foi um trauma. Depois disso, por causa da ditadura, tomei a decisão de fazer História. Abandonei as artes porque achava supérfluo. A questão era a revolução. Eu que desenhava, que era dramaturga, que adorava escrever peças, fazer cenas com minhas irmãs e primas. Fiquei só dois anos na universidade e a pulga da arte não me deixava. Eu sempre tive uma esquizofrenia entre essas diferentes possibilidades de criar. Sou mil e uma utilidades: faço teatro, cenários, exposições, conceitos. Tenho muito preconceito quando leio críticas que falam da cenografia, da iluminação, do figurino como se fosse para não esquecer ninguém ou uma ficha técnica. Mas acho que a mágica está em conseguir criar algo que seja uno e que tenha impacto como objeto completo. Como ao ver um quadro, uma escultura, ou quando se lê um livro: você não pensa nas partes, mas no todo.
 

Vozes da coxia

Da Gaivota, em 2007, foi realmente minha primeira direção e foi por nocaute. Lembro que tentamos outras pessoas e sobrou para mim. Fiquei bem traumatizada, especialmente pelo [Antonio] Abujamra. Ele me deixou louca [risos]. Pensei que era um pouco pesado dirigir.

Tenho dificuldade com ator, em geral. E para conseguir o que deseja, você tem que estar num jogo de muita doação. Não é de graça que eles fazem o que fazem, tem um custo. E para mim é complicado estar nesse jogo. Sou muito impaciente. A Bete, por exemplo: não se dirige a Bete Coelho. Pode ter certeza que ela dirigiu a diretora.

Foi a Bete que me colocou nessa Mãe Coragem, um projeto de encomenda. Eu a conheci quando ela tinha 23 anos. Estava muito envolvida com teatro, fazia uns cinco ou seis anos que respirava teatro. Gerald [Thomas] era muito obsessivo. A gente viajava pelo mundo para ver Patrice Chéreau, Peter Brook, Eugenio Barba, Jerzy Grotowski. Era final dos anos 1970, começo dos 1980, o teatro era de uma potência. Quando saio de Nova York e chego ao Brasil em 1986, quem passa no teste para Carmem com Filtro, a primeira peça que o Gerald faz em São Paulo, é a Bete Coelho, uma menina. No ensaio, percebo que estou diante do maior ator que já tinha visto e ainda hoje acho isso.
 

Assista aos vídeos deste Encontro:


 

Sobre Felipe(s)

Não pode existir melhor parceria que essa [com o dramaturgo e diretor Felipe Hirsch] porque ela pressupõe absoluta liberdade. Trabalho direto com meu marido, outro Felipe [Tassara] e estamos juntos há 33 anos. Fazemos praticamente tudo juntos: cenografias, exposições... Só direção de cinema que faço sozinha. Quando eu e Felipe recebemos uma ligação do Felipe Hirsch para um trabalho já sabemos que será “férias na praia”. Porque vem felicidade e uma troca incrível. Agora estreamos Lazarus, no Teatro Unimed, uma ópera musical do David Bowie, que está sendo uma viagem maravilhosa como todas as outras. O Felipe Hirsch é um ser obsessivo, que não para de inventar coisas. Já fizemos dezenas de trabalhos desde 2001. Quando o Felipe falou de Selvageria, por exemplo, textos históricos de viajantes que falam da invasão do Brasil, imaginei essa montanha de saco de lixo [no palco]. A civilização é a grande produtora do seu próprio fim, ela produz a própria morte criando um lixo que uma hora vai afundá-la. Hirsch gostou da ideia. Ele monta o espetáculo a partir de um lugar que a gente oferece para ele. Quando você trabalha com esse tipo de parceiro é assim: você devolve um cavalo e o cara te dá um cavalo alado que vai a lugares que você não podia imaginar.
 

Daniela Thomas esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 14 de agosto de 2019.

 

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