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Guardião de memórias
Como ajustar o foco e experimentar tempo para viver e contar uma história
Os dias e as noites se dilatam aos olhos de Sebastião Salgado. Para o fotógrafo nascido em Aimorés (MG) – onde as horas também passavam rasteiras para o menino que sonhava viajar o mundo –, é nesta expansão do tempo que se constroem narrativas. Histórias sobre a humanidade e a natureza, como Trabalhadores (1993), Êxodos (2000), Gênesis (2013) e Gold – Mina de Ouro Serra Pelada, em exposição no Sesc Guarulhos, feitas em parceria com a curadora e esposa, Lélia Wanick Salgado. “Só faço projetos que sinta grande identificação para conseguir ter uma permanência no tempo”, disse em entrevista à Revista E, na véspera da abertura mundial de Gold, em julho de 2019, no Sesc Avenida Paulista. Seu mais recente projeto, na Amazônia, também passou por uma espiral de meses e anos, e deve ser apresentado ao público em 2021. Neste Depoimento, Salgado fala sobre este e outros trabalhos realizados em mais de quatro décadas dedicadas à fotografia.
Serra Pelada
Fiz essas fotografias da Serra Pelada e, depois, continuei a série de fotografias Trabalhadores, que me tomou seis anos para realizar. Eu passava de uma história para outra, mas sabia que essa [de Serra Pelada] era forte. Na época [em 1986], tirei um número de fotografias que foi para o livro Trabalhadores, mas sabia que não tinha realmente editado em profundidade aquela história. Como não tive tempo, terminei Trabalhadores e fui fazer Êxodos. Terminei Êxodos e fui fazer Gênesis. Então, falei: “Antes da minha morte, vou editar com profundidade essas fotografias [de Serra Pelada]”. Até que, trabalhando nesse último projeto na Amazônia, em 2016, quebrei o joelho ao saltar um pequeno igarapé. Fiquei parado por seis meses e falei: “Agora eu vou editar”. Tomei as cópias que tinha feito naquela época e revi o trabalho inteiro.
Ouro na alma
Temos a impressão de que histórias como essa [dos garimpeiros em Serra Pelada] aconteceram há 300 anos. Mas essa história é contemporânea e ainda acontece nos garimpos da Amazônia. Acho importante mostrar às pessoas a realidade deste país.
A Serra Pelada é um capítulo importante da história, e foi de grande impacto no Brasil nos anos 1980. Mas, quando você pergunta para jovens de 20 anos, muitos nunca escutaram. Eu tinha perfeita consciência do que era Serra Pelada, mas no primeiro momento em que eu cheguei, vi na beira daquela cratera mais de 50 mil trabalhadores sem nenhuma máquina, só o barulho das ferramentas cavando a terra, o murmúrio das pessoas. Tive a impressão de que escutava o barulho do ouro na alma das pessoas.
Rios voadores
Fiz uma nova apresentação da Amazônia. Temos montanhas fenomenais, mais do que nos Alpes. Também fotografei os rios aéreos. O rio aéreo amazônico é maior que o rio Amazonas. A quantidade de evaporação que aquelas árvores projetam a cada dia forma um sistema de umidade que vai garantir as chuvas e a distribuição de umidade no planeta inteiro. Fotografei isso e as chuvas: elas são tão impactantes que se tem a impressão de que são bombas atômicas de água. Coisas fenomenais. Então, esse corpo de trabalho vai ser do calibre do Gênesis. E espero que traga uma união nacional no sentido de proteger esse ecossistema para gerações futuras, para o mundo inteiro.
Passado no presente
Trabalhar em uma comunidade indígena é voltar no tempo. Somos nós há muito tempo, os primeiros que chegaram à América. Fotografei 12 comunidades, vivi e trabalhei com elas durante esses anos. Levei um grande estúdio para a Amazônia: seis metros de largura por nove metros de comprimento, que eu montava debaixo de uma árvore. Depois de um acampamento de caça ou de pesca, montava o estúdio e quem quisesse ser fotografado vinha. Então, tenho uma coleção de retratos incríveis. É um conjunto de tudo isso que estou mostrando, uma Amazônia brasileira. Fiz 30 viagens para lá ou talvez mais. É maravilhoso viver com a comunidade indígena. Você vive outra vida.
Por uma Pentax
Quando comprei a primeira câmera, na realidade, comprei para Lélia. Ela estava fazendo arquitetura na Escola de Belas Artes de Paris e precisou de uma câmera. Nós estávamos de férias – isso foi em julho de 1970 – na fronteira da França com a Suíça. Fomos até a Suíça, que era o local onde se compravam câmeras mais em conta na época. Compramos uma Assai Pentax e a primeira fotografia que fiz foi um retrato da Lélia sentada na janela. Lembro perfeitamente esse momento e os momentos depois com essa câmera lá, ainda de férias. Porque eu tinha a possibilidade de fixar em imagem tudo aquilo que via. Para mim, aquilo era uma mágica.
Imagem em movimento
A fotografia não mudou nada nesses últimos anos, exceto a base da fixação da imagem. Nós passamos de uma imagem fixada em um suporte de plástico para um suporte eletrônico: a fotografia digital. Mas a forma de fotografar, o resultado, a imagem, isso não mudou. O fato de as pessoas utilizarem um celular e fazerem imagens, isso não é fotografia. Isso não tem nada, absolutamente nada, a ver com a fotografia. Isso é uma linguagem de comunicação. As pessoas se comunicam por meio dessas imagens que fazem e enviam para outros. Fotografia é uma coisa tangível. Você vê, pega a fotografia, ela tem uma função de memória. A fotografia é um espelho da sociedade em que vivemos. Aqui não tem manipulação: ela é o que é.