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Lapidar uma existência

Adriana Vichi
Adriana Vichi

ESCULTOR, ESCRITOR E CURADOR APURA OFÍCIO E VIDA

COM AS FERRAMENTAS DO CONHECIMENTO E DA SENSIBILIDADE

 

Emanoel Araújo nasceu em 1940, em uma tradicional família de ourives em Santo Amaro da Purificação, Bahia. Na terra natal, aprendeu marcenaria, linotipia e estudou composição gráfica até realizar, em 1959, sua primeira exposição individual. No ano seguinte, já em Salvador, estudou gravura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Da Bahia para São Paulo e travessias pelo mundo, vem buscando novas cores, objetos e temas a lapidar uma carreira como artista plástico, escritor, professor, curador e diretor de importantes instituições culturais, como o Museu de Arte da Bahia (1981-1983), a Pinacoteca do Estado de São Paulo (1992-2002) e o Museu Afro Brasil (2004), do qual também é fundador. Localizado no Parque Ibirapuera, na capital paulista, o Museu Afro Brasil reúne um acervo de mais de 6 mil obras – pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e outros objetos – de artistas brasileiros e estrangeiros, produzidas desde o século 18 até hoje. Peças que preservam universos culturais africanos e afro-brasileiros. Temas que dialogam com a religião, o trabalho, a arte e a escravidão. “O Museu Afro Brasil é um museu de história, arte e memória. Acontece que somos uma fala ainda muito pálida. Porque a história do Brasil é mal contada, é mal inventada, é mal historiografada. Quem fala em artistas negros no Brasil? Ninguém. Falam no máximo da escravidão, do navio negreiro. E o resto? E quem mergulha aí? Nesse caso, esse museu é pioneiro”, aponta. Nesta entrevista, Emanoel Araújo reflete sobre arte, existência e preconceitos.

 

Hoje se fala muito em arte negra brasileira. O que determina essa estética?

Acho uma discriminação. Arte negra é arte africana. A questão não é a arte negra, mas a arte de artistas negros. Entende? O que me parece que tem de ser dito é que a arte feita por artistas negros do Brasil não é, absolutamente, arte negra. Por exemplo, artistas negros como Aleijadinho [Antônio Francisco Lisboa, 1738-1814], Mestre Valentim [Valentim da Fonseca e Silva, 1745-1813], Teófilo de Jesus [1758-1847], Manuel da Cunha [1737-1809] e outros dos séculos 18 e 19, como os irmãos pré-modernistas Arthur Timótheo [1882-1922] e João Timótheo [1879-1930], são artistas que estavam criando obras dentro de dogmas eurocêntricos. Eles eram negros e nem por isso estavam fazendo uma arte negra. Agora, o Brasil tem esse preconceito, esse racismo estrutural que está arraigado no inconsciente dos brasileiros. Então, quando falo de artistas afro-brasileiros, estou falando da pessoa, não estou falando da arte criada por eles.

 

Ou seja, essa configuração estética da arte não existe?

O Barroco, o Neoclássico são europeus. Um artista afro-brasileiro não poderia criar uma arte que fugisse daqueles dogmas, isso faz parte do nosso consciente e inconsciente eurocêntrico ocidental. A arte africana, com seus próprios dogmas, não perpassa por isso. Arte africana fica lá. Isso porque a África é um enorme continente, com diferentes criadores, com representações artísticas de cada um dos países. O Benin, antigo reino Dahomé, e a Nigéria, de língua iorubá e fon, têm seus deuses muito parecidos com os nossos do candomblé, da Bahia, do Recife. Portanto, seus artistas produzem obras referentes aos seus deuses (orixás) da religião de matriz africana. Ou, ainda, cada país africano tem suas devoções, seus ritos, suas danças, suas criações artísticas para celebrar suas manifestações culturais. Isso quer dizer que eles estão fazendo arte africana, com seus próprios conceitos ou dogmas.

 

Como essa matriz africana é representada no Brasil?

No Brasil, eu diria, por exemplo, que Rubem Valentim [1922-1991], Agnaldo Manoel dos Santos [1926-1962] e Mestre Didi [Deoscóredes Maximiliano dos Santos, 1917-2013] são artistas de uma corrente própria, fazendo uso da ancestralidade africana, da Bahia, dos índios e mesmo da umbanda do Rio de Janeiro. No caso do Rubem Valentim, em suas obras aparecem esses símbolos sincréticos, como o machado duplo de Xangô, ou o arco e flecha de Oxóssi, as formas redondas dos abbés de Oxum ou de Iemanjá. Nesse sentido, ele é mesmo um artista com largas referências baianas nas suas esculturas, pinturas e gravuras. Isso para dizer que a Bahia é de fato uma invenção própria. Rubem Valentim e outros são artistas sincréticos brasileiros – são negros, mas não fazem arte negra.

 

Rubem Valentim, sem dúvida, tem uma característica particular na arte brasileira. No entanto, em vida, ele foi pouco reconhecido.

Rubem Valentim fazia parte da renovação da arte moderna da Bahia, com Carlos Bastos [1925-2004], Genaro de Carvalho [1926-1971] e Mario Cravo [1923-2018] – que eram filhos da oligarquia baiana. Depois vieram [para o grupo] Jenner Augusto [1924-2003], de Sergipe, e Carybé [1911-1997], da Argentina via Rio de Janeiro. Rubem Valentim era um baiano, mestiço, que abandonou a carreira de dentista pelas artes plásticas e deve ter sofrido discriminação na sua terra, onde apesar de ter maioria negra o preconceito corria solto. Havia nele certo desconforto da origem humilde, mas com seu grande talento foi primeiramente para o Rio de Janeiro e depois para Brasília, onde foi professor da Universidade de Brasília (UnB). Acho que, devido a tudo isso, ele era uma pessoa difícil e lutou até o último momento da vida para fazer valer sua criação artística, com seus símbolos afro-brasileiros. Chegou a escrever um texto com os princípios da sua arte. Por isso, o Nelson Rodrigues [1912-1980] tem razão ao falar do complexo de vira-lata. Nós não nos olhamos, temos uma elite que não reconhece o viver no país. Daí vem a grande dificuldade de cidadania.

 

Você acredita que, quando se fala em arte negra brasileira, esse termo reduz o impacto estético do trabalho de Rubem Valentim e de tantos outros artistas negros?

Não sei se a intenção é outra, é reduzir o artista negro a um lugar determinado dentro desse preconceito estrutural que se vive no Brasil. A arte não deveria ser rotulada assim, sem um conceito estético, ao sabor da definição se o indivíduo é negro ou não. Os franceses, que foram colonizadores em muitos países africanos, até hoje não conseguem estabelecer critérios para determinar o que é uma arte africana, colonial da África e Oceania. Eles nunca tiveram uma definição que saísse do velho conceito eurocêntrico. Toda vez que algum curador propõe uma revisão desse conceito, ela é naturalmente abortada. Por exemplo: quando o Centro Georges Pompidou [em Paris] fez a exposição Les Magiciens de la Terre [em 1989], o curador perdeu o cargo. Mais recentemente, com a criação do Museu do Quai Branly [inaugurado em 2006 em Paris], um novo conceito foi armado, mas logo desfeito, o das artes primeiras. E o Museu do Quai Branly virou o Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas.

 

O que isso quer dizer?

Na verdade, eles estabeleceram o museu no molde francês do museu colonial. Ou seja, volta tudo à estaca zero. Onde foi parar esta arte primeira? Não existe isso. Quer dizer, ela foi uma invenção para tentar fazer uma aproximação estética com dogmas não eurocêntricos. No fim, ficamos nessa história sempre: o certo é que arte africana é arte africana, arte francesa é arte francesa, arte brasileira é arte brasileira.

 

Em séculos passados, encontramos uma série de artistas negros contundentes no Brasil. O que favoreceu esse cenário?

Acho que esse movimento vem desde o século 17, das organizações de artes e ofícios, a partir do conceito da tradição portuguesa de artistas, pintores, escultores, douradores, entalhadores, marceneiros, construtores e pedreiros, que começavam como aprendizes até chegarem ao posto de mestres. Foi assim que escravos e negros forros entraram nessa tradição, e assim temos grandes nomes da pintura, da escultura e até da arquitetura, como o Tebas [Joaquim Pinto de Oliveira, artista e arquiteto que foi escravizado, nascido em Santos, 1721-1811]. Ele veio da tradição portuguesa e construiu a antiga Sé de São Paulo, assim como o clã dos Dutras, da cidade de Itu. Outro grande exemplo é o pintor, construtor e músico Jesuíno do Monte Carmelo [Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, 1764-1819], cuja biografia Mário de Andrade escreveu. Portanto, no Brasil desse tempo os artistas eram negros ou mestiços.

 

De que forma, naquele momento, os artistas negros conseguiram uma projeção?

Artistas negros perpassam toda a cultura brasileira. Não é à toa que tivemos duas bulas portuguesas proibindo que índio e negro fossem ourives, que trabalhassem com ouro. No século 18, mandaram quebrar todas as bancas de ourives do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. Há histórias sobre muitos militares que administravam fortes onde no subsolo havia negros trabalhando escondidos por causa dessa bula portuguesa. Assim, o trabalho das igrejas e das ordens terceiras [ordens religiosas leigas], as pinturas parietais e dos tetos, muito em voga nas cidades coloniais, garantiam a esses artistas até enriquecimento. As orquestras eram de negros, e eles iam tocar nas ordens de brancos, onde pretos não entravam.

 

Depois dessa fase, o que aconteceu?

Com a chegada da academia [Academia Imperial de Belas Artes, inaugurada em novembro de 1826, no Rio de Janeiro], tudo vai se modificar. Portanto, o século 19 será muito difícil para artistas. Por exemplo, José Maurício Nunes Garcia [1767-1830], o grande músico negro da Capela Imperial, no tempo de dom João VI [quando ocorreu a transferência da família real portuguesa para o Brasil, entre 1808 e 1822] sofreu muito por causa de seu concorrente português. Por outro lado, exceções ocorreram, como é caso da grande amizade entre o vice-rei Luiz de Vasconcellos e o Mestre Valentim da Fonseca e Silva, escultor e arquiteto que construiu defronte ao Paço Imperial os Jardins e a Fonte dos Amores no Passeio Público. Vale ainda falar da Academia Imperial de Belas Artes e do fracasso dos artistas negros daqueles tempos por preconceito e por falta de apoio ou encomendas que lhes garantissem a sobrevivência. Falo, por exemplo, de Estevão Silva [1845-1891], punido por recusar o segundo lugar do Prêmio da Academia diante do Imperador dom Pedro II. Essas são as mudanças pelas quais se vai construindo uma sociedade que expurga o artista negro, e de certa maneira também fracassa a corporação de ofícios. Os mecenas agora serão outros, não mais a Igreja e as ordens terceiras do século 18.

 

A partir de então, o preconceito passou a pesar mais para os artistas?

Não tenho dúvida. O Arthur Timótheo morreu louco em um hospício; depois, seu irmão, o também artista João Timótheo, morreu louco no mesmo hospício. Não é estranho? Isso depois de ganharem um prêmio de viagem para a Europa e fazerem a grande façanha de decorar a sede do Fluminense Futebol Clube. Esse sempre foi um país ambíguo. O que era o Brasil no século 19? Era um vazio. E os artistas enfrentavam o preconceito nesse enorme vazio. Depois da abolição da escravatura, em 1888, todos os africanos que voltaram para a África levaram com eles o que aprenderam no Brasil. E o resultado se pode ver na cidade de Porto Novo, capital administrativa do Benin, na catedral, assim como na grande mesquita, e ainda se pode ver nos sobrados ao estilo do século 19. Ali se constituiu uma sociedade dos agudás [descendentes de escravos e comerciantes baianos que emigraram para a região] com sobrenomes brasileiros dos retornados, como os Sousas, os Oliveiras, os Almeidas, os Pereiras. Ali também se comemoram as Festas do Bonfim, nas quais dançam a “burrinha”, similar ao bumba meu boi.

 

Além de ter escrito mais de dez livros e ter uma sólida produção como artista, você fundou, em 2004, o Museu Afro Brasil, do qual é diretor curador. Qual é o papel dessa instituição?

O Museu Afro Brasil é um museu de história, arte e memória. Nele, a gente tem a história e a memória juntas, além da arte. Acontece que somos uma fala ainda muito pálida. Porque a história do Brasil é mal contada, é mal inventada, é mal historiografada. Quem fala em artistas negros no Brasil? Ninguém. Falam no máximo da escravidão, do navio negreiro. E o resto? E quem mergulha aí? Nesse caso, esse museu é pioneiro. Nele se fala da vida e de quem o negro foi, e de como o negro contribuiu para a formação da cultura e da identidade nacional. Nele se fala do primeiro editor negro brasileiro, o Paula Brito [1809-1861], o grande poeta simbolista Cruz e Sousa [1861-1898], o engenheiro, historiador e criador da Escola Politécnica de São Paulo, o grande Teodoro Sampaio [1855-1937]. Esse museu é para elevar a autoestima de milhares de crianças negras e brancas que o visitam com os nossos educadores. A nossa esperança é que eles sejam os novos brasileiros, destituídos de racismo e preconceito. O Museu Afro Brasil não é um museu de tesouros, mas é um tesouro de museu, que conta a nossa história de verdade.

 

Como é seu trabalho como curador, que se destaca por uma atuação executiva?

A minha curadoria vai além de simplesmente fazer uma exposição. Ela vai além do espaço, deve ser a condutora de emoções. Por isso a geografia, os espaços e outros elementos devem reforçar essas emoções.

 

Em 1993, na exposição sobre Mário Andrade, você incluiu recortes de jornal, fotos de fundo de gaveta, música… Havia até uma “neblina”. Para uma exposição, deve-se lançar mão de qualquer tipo de recurso, a fim de contextualizá-la?

Não há dúvida. É por isso que o curador do Museu do Louvre, em Paris, Jean Galard, disse em um jornal de São Paulo que, se tivesse que fazer uma exposição sobre o modernismo no Brasil, ele faria igual à que ele viu na Pinacoteca. Já nesta exposição de arte indígena [Heranças de um Brasil Profundo, que apresenta a arte e a cultura indígenas no Museu Afro Brasil até o fim do ano], há uma celebração da beleza desse povo que resiste às intempéries de um país que não o vê. Isso é possível graças aos fotógrafos e fotógrafas que por muito tempo registraram esses povos, suas festas, suas artes e seu respeito a tudo que lhes envolve nas florestas. Graças a Berta Ribeiro [antropóloga, etnóloga e museóloga, 1924-1997], aos irmãos Villas-Bôas [Orlando, 1914-2002; Cláudio, 1916-1998; e Leonardo, 1918-1961] e ainda aos viajantes que souberam ver esses povos com olhares sensíveis, como o Marechal Rondon [1865-1958], e outros brasileiros e estrangeiros que desde o século 18 correram pelos ásperos e dolorosos caminhos até chegar a esses povos tão distantes de nós mesmos.

 

E por que uma exposição de arte indígena no Museu Afro Brasil?

Essa exposição faz parte de uma trilogia: africanos, portugueses e índios. Os formadores da nossa brasilidade de cristãos, de índios e negros, como disse o poeta Jorge de Lima [1893-1953]. Vale lembrar que os negros consideram os índios os orixás da terra e também incorporam os índios aos afoxés de caboclos e o culto deles aos candomblés de caboclos. Assim, os índios aparecem nos maracatus de baque virado e nos caboclinhos, no carnaval de Recife e nas representações dos festejos do bumba meu boi do Maranhão. Por tudo isso, o Museu Afro Brasil tem como mister mostrar o que é afro-brasil e o que é brasileiro. Vale lembrar nossos encontros na construção de um país múltiplo, entre lusos, afros e brasileiros – tudo junto e tudo misturado. O Brasil ainda vai encontrar seu ideal.

 

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