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ABC das economias comuns

Na minha infância, não pensava sobre o que significava ser da minha cidade, região ou território. Nasci em Santo André, cidade do Grande ABC, e a região para mim se restringia à casa onde eu morava, à rua na qual eu jogava bola com os amigos, ao trajeto com construções abandonadas até a casa da minha tia.

Aos poucos, porém, fui descobrindo que o ABC não era apenas um local ou uma paisagem, mas também história e comunidade. Naquele estádio onde assisti ao meu terceiro jogo de futebol, ocorreu, durante a greve de 1980, uma importante assembleia com 60 mil trabalhadores que foi parar nos livros de Geografia. Nas aulas de Sociologia, descobri que até o meu gosto musical tinha um significado: o apreço de muitas regiões fabris pelo rock vinha de uma mesma raiz contestatória e, de alguma forma, aquelas chaminés industriais me aproximavam um pouco do Black Sabbath que eu escutava.

Na graduação em Ciências Sociais e em Economia, tive a felicidade de conhecer teorias que me fizeram enxergar a economia como uma ciência social e ter outros olhares para os territórios. Se a história de um território é feita de pessoas, sua economia também é. O historiador inglês E. P. Thompson desenvolveu essa ideia por meio do conceito de economia moral. Isto é, a vida econômica de uma região não pode ser reduzida à oferta e demanda de produtos e aos serviços disponíveis em um mercado.

A vida econômica é também pautada por valores morais e culturais comunitários. Em tempos de crise, quando nem o “grande” mercado nem o Estado conseguem dar conta da situação, é a economia da comunidade que funciona.

São ações que partem não do interesse privado ou da gestão estatal, mas do que há em comum entre as pessoas, constituindo o tecido social do território.

No ABC, temos muitos exemplos dessa economia funcionando por meio de iniciativas de cooperativas, associações, redes produtivas e fóruns de encontros que têm sua história pautada pelo enfrentamento às crises. É o caso da Uniforja, cooperativa dos trabalhadores da indústria metalúrgica de Diadema, com mais de 300 funcionários reunidos, que foi erguida durante a crise econômica dos anos 1990. Após a falência da fábrica existente, os trabalhadores retomaram suas atividades por meio da organização em autogestão cooperativa, pagando todas as dívidas trabalhistas do modelo anterior.

Outro exemplo dentro desse contexto é a rede de artesanato de São Bernardo do Campo, que reúne mais de 50 artesãs que mantêm seus trabalhos individuais, mas também se organizaram coletivamente para construir um ponto de venda em um shopping da região. Além dessa rede, há a Associação Padre Léo, de base católica, que construiu no Montanhão (bairro periférico de São Bernardo) uma rede produtiva que conta com marcenaria, sorveteria, comércio de produtos de limpeza e banco comunitário, promovendo a inclusão produtiva e a circulação de renda na própria comunidade. Além disso, o Fórum Regional de Economia Solidária do ABCDMRR (sigla que inclui, ainda, municípios de Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra) atualmente organiza a plataforma de vendas online que surgiu em uma oficina do Sesc São Caetano em 2020, como enfrentamento aos efeitos da pandemia. Por meio desse sistema, são realizadas feiras que comercializam alimentos orgânicos de agricultores da região, há inclusão produtiva de centros de assistência psicossocial, redes de artesãos, entre outras iniciativas.

Ao perceberem que a geração de renda depende das possibilidades de sua própria comunidade, essas e outras propostas semelhantes têm promovido a autonomia local, valorizando suas próprias identidades mesmo em períodos de crise. Ter autonomia, nesse caso, não significa promover o isolamento de um grupo ou de um território em relação ao restante do mundo, mas ressignificar os termos dessa relação: não se trabalha mais com o conceito de “falta” ou “escassez”, mas de produção coletiva que descentra e descoloniza a identidade e renda das pessoas, quebrando a hierarquia econômica e cultural do centro sobre a periferia e também a hierarquia entre economia e cultura. Isso porque a economia também é determinada pela cultura, e por conta disso podem existir muitos “centros”.

Nessa minha ainda curta trajetória, sinto que fui ressignificando minha relação com o ABC, em conjunto com as próprias concepções que eu já tinha sobre território. Por meio de iniciativas como essas que mencionei, hoje sinto que a vida de um território é muito mais intensa por conta das relações em que estamos inseridos, que estão sendo produzidas, e que nos são, de fato, comuns.

 

CARLOS SEIZEM IRAMINA é graduado em Ciências Sociais e em Economia, mestre em Desenvolvimento Econômico (Unicamp) e animador cultural no Sesc São Caetano.

 

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