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Arte sem fronteiras
O século 20 representou para o Ocidente uma explosão criativa, de avanços tecnológicos e outras “maravilhas” que encheram os olhos da civilização. Entre as áreas do conhecimento invadidas por novos conceitos e quebras de paradigmas, a arte talvez tenha sido a que menos limites conheceu para multiplicar suas possibilidades ao infinito.
É o que relata a pesquisadora Lígia Luciene Rodrigues, na introdução de sua dissertação “A perspectiva no trabalho de Regina Silveira: Uma investigação sobre a utilização da perspectiva na arte contemporânea” (Unicamp, 2008): “No século 20, com a arte moderna, iniciou-se a ruptura do espaço organizado. Os artistas experimentavam diversas maneiras de representar o espaço, muitas vezes distorcendo os códigos da perspectiva.” A especialista cita o exemplo da pintura, que, segundo escreve, “deixou de ser mimética, ou seja, recusou a função de copiar e reproduzir a realidade, da maneira como era feita nos moldes clássicos e naturalistas”.
Mas a pintura não foi a única a ver seus formalismos subvertidos com o decorrer das décadas. Outros passos foram dados numa trajetória que trouxe a arte à contemporaneidade. “Desde os anos de 1960 todos os gêneros artísticos vêm experimentando o que muitos teóricos chamam de ‘virada performativa’”, explica a performer e teórica da performance Eleonora Fabião.
“Algumas das principais características deste movimento, e da arte da performance especificamente, são: a valorização do evento aberto em detrimento da obra fechada, o interesse em investigar relações horizontais entre artista e público, e uma tendência ampla, geral e irrestrita ao hibridismo.”
De acordo com Eleonora, o hibridismo tem se manifestado, obra a obra, artista a artista, por meio da flexibilização das fronteiras e da circulação, por todas as áreas artísticas, de materiais, mídias e metodologias de trabalho antes impensáveis. E aponta os lugares aonde essa jornada pode levar as manifestações artísticas. “São duas as possíveis consequências, tão opostas quanto extremas, diante dessa tendência”, analisa.
“Ou a diluição total das fronteiras e o fim da ideia de gêneros ou o acirramento das diferenças e o fechamento dos campos para que se mantenham puros.” E acrescenta: “Ambas radicais e empobrecedoras diante da riqueza que estamos vivendo. A fricção e o diálogo vêm permitindo renovação de possibilidades e de vontades.”
Mais que a realidade
O fotógrafo, pesquisador, historiador e professor Boris Kossoy analisa como essas transformações atingiram o seu campo de produção. “A fotografia, desde seu advento, teve um forte suporte científico”, afirma. “Ela era pensada como instrumento de registro e controle – e, como tal, permaneceu até os dias de hoje.” O professor aprofunda a abordagem histórica de usos da linguagem.
“Contudo, desde muito cedo, os fotógrafos perceberam o potencial estético da imagem fotográfica como forma de expressão. E também como ganha-pão, basta para isso lembrarmos dos estúdios de retratos, espaços de criação e ilusão. Por outra via, ela também quebrava paradigmas em relação ao seu pretenso uso (objetivo) pré-destinado na medida em que a imprensa, o poder econômico e os governos perceberam, gradativamente, o alcance da fotografia como ferramenta de propaganda e, portanto, instrumento de manipulação da opinião pública.”
No que diz respeito a quebrar os próprios paradigmas, Kossoy prefere não utilizar termos como “quebra” ou mesmo “subversão”. “Não se trata de subversão, mas sim de ficção, componente intrínseco da representação fotográfica. Falo de uma ficção documental.” No entanto, concorda que expressar a “verdade” não é o objetivo da fotografia. “É um engano pensar-se que a fotografia é ‘transparente’. Também é outro engano insistir que a imagem fotográfica é a expressão da ‘verdade’. Ela é fruto de um complexo processo de criação/construção. Com a fotografia criamos realidades – e, portanto, ficções. E o famoso registro não passa de um documento expressivo.
O registro fotográfico não é ‘objetivo’, nem poderá jamais ser. É uma representação elaborada de acordo com a visão de mundo de seu autor. Os paradigmas não sobreviveram.”
Cinema não linear
Ainda que muito do que se veja sejam as produções lineares e que seguem a mesma receita, tanto a película quanto o suporte digital podem ser matéria-prima para experimentos no cinema. “Penso que em termos gerais existe certa timidez do cinema na quebra desses paradigmas”, afirma o cineasta Kiko Goifman. “Como tendência, temos narrativas lineares e o cinema visto exclusivamente como uma ‘máquina de contar histórias’.” Para Goifman, no entanto, esse enredo apresenta furos. “Felizmente, existem cineastas dispostos a experimentar novos caminhos, tanto de forma quanto de conteúdo.”
Esse foi o esforço de Goifman em FilmeFobia, seu último trabalho. “A possibilidade de experimentar algo além do preestabelecido”, afirma. “Ter esse elenco múltiplo (fóbicos reais, atores e também atores fóbicos) era um dos dados nesse sentido, mas também a intenção de misturar elementos reais da biografia do Jean-Claude Bernardet [ator principal do filme] com aspectos completamente inventados para a construção do personagem vivido por ele.”
Nas letras
Arte narrativa por “natureza”, a literatura tem nos mostrado que a palavra escrita é uma seara de experimentações e rompimentos de parâmetros – que, sobretudo, o sucesso comercial parece impor às obras. Ainda que, para o poeta, tradutor e jornalista Nelson Ascher, essa não seja a preocupação daqueles que realmente realizam o novo universo dos livros. “Os autores que de fato inovam em geral estão tentando fazer o melhor possível dentro do paradigma de sua época”, analisa.
“Mas, ao levá-lo ao seu ápice ou culminação, eles acabam também levando a seus limites as contradições inerentes a tal paradigma.” Ascher cita como exemplos o espanhol Miguel de Cervantes, autor do clássico Dom Quixote, o norte-americano Edgar Allan Poe, grande poeta, contista e crítico, e o poeta brasileiro Manuel Bandeira.
“É fácil ver, nos primeiros livros de Bandeira, como ele, operando de dentro do simbolismo, vai chegando por conta própria a uma estética que pode ser chamada de modernista”, avalia o especialista. Entre outros nomes apontados na análise de Ascher estão Guimarães Rosa – “não creio estar dizendo nada de novo ao lembrar seu nome”, acrescenta –, e os também brasileiros Sousândrade e “o grande tradutor oitocentista” Manuel Odorico Mendes.
Ação em rede
A mostra Sesc de Artes é uma programação que além de ocupar todas as unidades da instituição na capital, leva trabalhos para espaços públicos da cidade. Haverá, ainda, atividades nas instalações das unidades que serão inauguradas em breve.
C´Est Du Chinois (Holanda). De Edit Kaldor. No palco, cinco cidadãos chineses, determinados a desabafar com o público, contam histórias em mandarim, convictos de que a língua não constitui um obstáculo para a comunicação.
World of Interiors (Portugal). De Ana Boralho e João Galante. Os performers deitados no chão sussurram textos, obrigando o público que os queira entender a aproximar-se.
Percursos Urbanos (Brasil). Do interior de um ônibus, os artistas Julio Lira, Thaís Monteiro e convidados conduzem um roteiro de visitas pela cidade, discutindo com o público desafios e possibilidades dos centros urbanos.
Projeto Coleções (Brasil). Com Intrépida Trupe. Direção Valéria Martins. Com obras dos artistas plásticos Raul Mourão, Marta Jourdan, Guga Ferraz e Pedro Bernardes. A obra de arte deixa de ser um objeto de contemplação e se torna o suporte para a representação e movimentação dos performers.
Metal Machine Trio (EUA). Com Lou Reed (guitarra e eletrônica), Ulrich Krieger (sax tenor e eletrônica em tempo real) e Sarth Calhoun (processamento ao vivo). Projeto de Lou Reed baseado em seu controverso Metal Machine Music, LP lançado em 1975. O trabalho é centrado na sonoridade da guitarra, misturada a ruídos e distorções.
Te farei invencível com minha derrota (Espanha) – Com Angélica Liddell. Inspirado na vida da violoncelista britânica Jacqueline Du Pré, que morreu aos 42 anos vítima de esclerose múltipla, a obra trata de temas como a saudade, a morte, o terror, a desconfiança, a ansiedade e a compaixão.
Ateliê de [Ciber]Costura (diversas nacionalidades). Exposição e produção de roupas e objetos vestíveis integrados a sistemas eletrônicos. O projeto inclui perfomances, oficinas e um ponto de encontro na Rua Augusta para interessados em arte, design e tecnologia digital.
Rumos da expressão
Mostra Sesc de Artes 2010 avança na discussão acerca da produção contemporânea
Em suas últimas edições, a Mostra Sesc de Artes enfatizou a postura de evento que pretende discutir os rumos da arte contemporânea. Em 2007, com o tema Circulações, a programação abordou tanto a relação entre obra, espaço e público, quanto os processos criativos dos artistas. No ano seguinte, a curadoria agregou mais um elemento a essa discussão. O fio condutor entre as obras propunha ainda um olhar para os deslocamentos de percepção do público, diante de expressões artísticas que se manifestam em diferentes lugares e em diferentes escalas.
Em 2010, a Mostra – que acontece de 18 a 28 deste mês em todas as unidades do Sesc da capital – avança ainda mais no campo das investigações da arte contemporânea, agregando abordagens e propondo novos prismas. “Nós consideramos que, para comunicar bem essa intenção, podemos nos utilizar de um histórico que vem de 2007 e 2008”, explica Cássio Quitério, técnico do Sesc São Paulo e um dos coordenadores da Mostra. “E a temática deste ano partiu da expansão do termo performance”, complementa Simone Avancini, também técnica da instituição e coordenadora do projeto.
“Mas ela não está vinculada ao formato nem à linguagem [da performance]. Tem a ver com a questão de não encaixar as obras numa definição.” Segundo Cássio, o pensamento por trás desta edição da Mostra procurou, então, tomar a performance como bancada para analisar outros “projetos difíceis de definir”. “Dessa forma, chega-se a três eixos iniciais”, informa.
“O primeiro é explicitar a dúvida sobre quem é o sujeito da obra, de quem depende a ação da obra. O segundo eixo seria a própria arte enquanto ação, que relaciona corpo, estética e política. E por último a proposição de zonas de desconforto, questionando as próprias classificações das artes, mas também o cotidiano do indivíduo.”
A teoria exposta por Cássio vem da pesquisa da performer e teórica da performance Eleonora Fabião, cuja abordagem norteia a Mostra Sesc de Artes 2010. “A performance desmonta a doxa, isto é, a lógica do bom senso e as certezas consensuais do senso comum. Ela é exatamente esse o conceito que a Mostra quer apresentar em sua edição de 2010”.
Eleonora cita o artista plástico norte-americano Allan Kaprow, criador do happening – grosso modo, uma forma de expressão oriunda das artes visuais e que mistura improvisação com elementos das artes cênicas –, para ilustrar como a arte contemporânea rompe com “antigos regimes de atenção e de relação com o mundo”, em suas palavras. “Já em 1958, Kaprow dizia mais ou menos assim: a nova geração de artistas utilizará materiais e procedimentos que nos revelarão como ignoramos o mundo no qual sempre estivemos”, relata. “Não [por meio de] uma arte-janela, ilusionista, que nos atrai para fora do espaço em que estamos, mas, ao contrário, uma arte que nos faz ver, com olhar renovado, o espaço estético, social e político que habitamos.”
As relações entre essas três esferas – a artística, a social e a política – são mais um ponto que a Mostra Sesc de Artes 2010 irá abordar. “Tem a ver com buscar novamente a produção de sentido para a vida, de estar ligado a aspectos que não são canonizados e cristalizados no universo artístico, para trazer novos contatos entre arte e vida”, afirma Cássio. “A performance é muito no limiar entre arte e vida, tanto que as pessoas se perguntam: “mas isso é arte?’.”
Pergunta essa que, talvez, torne-se recorrente durante os dias da Mostra. Um exemplo que pode gerar polêmica é um inclusive um dos destaques do evento (veja quadro Ação em rede): chama-se C´est du Chinois (foto), da Holanda, e que mostra uma família de chineses em constante “conversa”, em mandarim, com o público. “É uma obra que aborda a questão de conseguir criar uma interlocução, mesmo não conhecendo a língua. Outro exemplo é Percursos Urbanos, de Júlio Lira.
O projeto consiste na realização de roteiros em ônibus urbanos, com o objetivo de apresentar e discutir os desafios e as possibilidades da urbe, articulando como mediadores pessoas de saberes acadêmicos e de saberes populares. O objetivo: trocar idéias, (re)descobrir espaços e pessoas da cidade, propor ações criativas e novos usos da cidade. Se você ficou na dúvida sobre o valor artístico dos exemplos citados, aqui vai uma dica: “Cabe a nós respondermos, a cada dia, essa pergunta”, sugere Eleonora. “Por meio do nosso trabalho como artistas, como produtores culturais, como críticos, como espectadores, como cidadãos. O sentido é um trabalho processual de criação.”