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Tradição redescoberta
Durante encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, Arlene Clemesha, professora de história e cultura árabe, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde também é diretora do Centro de Estudos Árabes, discorreu sobre o trabalho na universidade e as peculiaridades da história árabe.
“Além da identificação quase automática e impensada entre islâmicos e terroristas, há uma fácil e equivocada identificação que iguala árabes a islâmicos”, explica a professora. “Mas os árabes não são todos islâmicos e vice-versa.”
Arlene Clemesha é autora, entre outros, de Marxismo e Judaísmo – História de uma Relação Difícil (Boitempo Editorial, 1998), Arab Immigration in Brazil (Doha: Al Jazeera Centre for Studies, em inglês e árabe), entre outros livros e artigos relacionados à história árabe, e 25 de Outubro de 1917 – A Revolução Russa (IBEP Nacional, 2005). Abaixo, alguns trechos da conversa.
estudos árabes
Não existe nas universidades brasileiras uma verdadeira tradição em estudos árabes, incluindo aí uma formação multidisciplinar que combine a língua e a literatura árabes com outros campos dos estudos humanistas, como a história, a filosofia, a sociologia, e assim por diante. Dentre todas as universidades do Brasil, apenas a USP e a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] possuem departamentos de língua árabe, sendo que os cursos de humanidade país afora tradicionalmente não incluíram os estudos árabes.
Não se tratava de uma escolha calcada no preconceito ou falta de interesse pela história árabe, mas sim no fato de ser extremamente difícil, demorado e oneroso formar, por exemplo, pesquisadores da história árabe, que fossem ao mesmo tempo formados em história, conhecedores da literatura histórica de sua época e formados e língua árabe, com um conhecimento do idioma que lhes permitisse especializar-se em aspectos da história dos povos árabes, através de seus documentos originais e eventualmente pesquisando em arquivos nos países árabes. Nosso sistema universitário, por mais que dissesse valorizar a multidisciplinaridade, nunca chegou a se preparar adequadamente para garantir tal formação.
O quadro, no entanto, começa a mudar, com o Curso de Língua, Literatura e Cultura Árabe da USP oferecendo uma linha de pesquisa em história árabe contemporânea e outra em filosofia árabe. Ao mesmo tempo, devido ao interesse crescente pelos temas árabes, principalmente a partir do 11 de Setembro de 2001, cada vez mais alunos dos cursos de relações internacionais, geografia e história, entre outros, procuram cursar as disciplinas básicas de língua árabe como complemento ao seu próprio currículo. Temos assim um contexto em que crescem os estereótipos ao mesmo tempo em que cresce o interesse pelo estudo.
estereótipos
Além da identificação quase automática e impensada entre islâmicos e terroristas, há uma fácil e equivocada identificação que iguala árabes a islâmicos. Mas os árabes não são todos islâmicos e vice-versa. Existe aproximadamente 1,5 bilhão de islâmicos no mundo, mas apenas 300 milhões de árabes.
Desses últimos, cerca de 90% são islâmicos (de famílias islâmicas), sendo os 10% restantes cristãos ou integrantes de grupos religiosos menores ou mesmo ateus. O maior país islâmico do mundo é a Indonésia, que não é árabe. Dos 22 países árabes, o maior deles em termos populacionais é o Egito, com 85 milhões de habitantes.
Ou seja, árabe é uma classificação étnica, refere-se a quem mora em um país de língua majoritariamente árabe, fala a língua árabe, tem em comum uma história e uma cultura. Os povos árabes tiveram um papel especial dentro da histórica islâmica, na medida em que Mohammad [Maomé], o fundador do islamismo, era árabe, vivia em Meca na península árabe e a revelação que anuncia receber de Deus se destina aos povos árabes. Era, enfatizava Mohammad, a mesma revelação que Deus (Allah, em árabe) transmitira a judeus e cristãos, mas dessa vez em língua árabe, para que pudesse chegar aos pagãos que habitavam a região da atual Arábia Saudita e crescente fértil.
A história islâmica começa no ano de 622, o marco zero do seu calendário, data em que Mohammad migrou de Meca para a cidade de Yathrib, que passou a se chamar Medina (a migração ficou conhecida como a hégira). Mohammad dizia ser um mensageiro de Deus, jamais um semiDeus ou filho de Deus. As mensagens da revelação divina a ele transmitida eram registradas por seus companheiros mais próximos, já que ele mesmo era analfabeto, e a compilação delas formou o Corão.
Não é raro surgirem confusões acerca do islamismo, sendo uma das mais frequentes aquela que vê Allah como o “Deus dos islâmicos”, ignorando que a palavra Allah significa Deus em árabe. Inclusive, o islamismo enfatiza que o Deus dos islâmicos é o mesmo Deus dos cristãos e dos judeus.
Mas, por trás da ideia equivocada de que os islâmicos possuem um Deus diferente e exclusivo, está a crença na existência de uma divisão, quase um fosso, entre a chamada civilização ocidental e aquela islâmica, o que não passa de uma construção ideológica para justificar, a partir de meados da década de 1990, a doutrina de “choque de civilizações” e, após o 11 de Setembro, a “guerra ao terror” de George Bush Filho.
a europa e o islã na história
Entre os primeiros relatos cristãos a respeito dos muçulmanos, encontramos menções a certa ameaça vinda do Leste, de um povo não cristão, guerreiro e saqueador, do qual pouco se sabia. Na medida em que o Islã se encontrava em franca expansão territorial, conquistando não apenas reinos periféricos da Europa mas também importantes porções do Mediterrâneo e da Península Ibérica, a Europa medieval embarcava na construção da concepção de um grande inimigo.
Durante as cruzadas, os autores latinos tentaram elaborar uma visão abrangente do adversário islâmico, concentraram seus esforços sobre a vida de Mohammad, sem muita exatidão e dando livre curso, como diriam alguns, à “ignorância da imaginação triunfante”. Desde o nascimento do Islã, Maomé aparece para os autores cristãos como um mago que destruíra a Igreja na África e no Oriente através de magias e falsificações e que confirmara seu sucesso autorizando a promiscuidade sexual.
No século 16 começava a se manifestar um novo tipo de interesse pelo chamado “Oriente”, menos marcado pela religião. As relações políticas estreitas com o Império Otomano, as relações econômicas aumentadas, o número crescente de viajantes e missionários percorrendo a África e a Ásia favoreceram o estudo acadêmico do “oriente islâmico”.
Já no século 19, quando avança, a passos largos, a conquista europeia, militar e direta, de várias regiões do Islã, o islâmico era visto ainda como um inimigo, mas um inimigo vencido de antemão. Os eventos o confirmam: refluxo turco nos Bálcãs, a independência da Grécia, a tomada da Argélia a partir de 1830, o início da colonização europeia de regiões centrais do império e a instalação dos ingleses em Aden em 1839.
Tão importante quanto a dominação direta pela força militar foi a longa construção ideológica que precedeu, justificou e tornou aceitável a colonização europeia de terras árabes, construindo a ideia de que árabes e islâmicos seriam, além do mais, incapazes de se modernizar por conta própria e precisariam receber a “civilização” das mãos dos europeus.
Finalmente, no século 20, os choques oriundos das revoltas de libertação nacional entre os árabes encorajaram o surgimento de descrições agressivas do Islã, resgatando acusações medievais, devidamente atualizadas. Mesmo quando os políticos falam em promover a convivência entre os povos, entre as religiões, e resgatar o multiculturalismo, seguem com a política do avestruz, pois continuam ignorando, quase obstinadamente, as verdadeiras causas, políticas e concretas, de um grave problema.
“Não existe nas universidades brasileiras uma verdadeira tradição em estudos árabes, incluindo aí uma formação multidisciplinar que combine a língua e a literatura árabes com outros campos dos estudos humanistas”