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Estéticas da periferia

Os estudos culturais têm ressaltado a importância das periferias como locais de proliferação de manifestações artísticas diversas e estimulantes, geradas, entre outras razões, pela mistura de referências culturais de populações migrantes das mais diversas origens. O rap e o hip-hop brasileiros talvez sejam as expressões mais marcantes desse movimento, que não pretende se restringir aos limites dessas regiões – mesmo porque os conceitos de centro e periferia se tornam cada vez mais nebulosos –, mas circular nos diversos âmbitos e influenciar outros processos artísticos. Em artigos inéditos, o coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU-USP), José Guilherme Magnani, e a integrante da Kult Afro, rede de empreendedores, artistas e produtores de cultura negra do Estado de São Paulo, Liliane Braga, analisam a questão.

 

África em toda parte: cultura negra é o coração das estéticas das periferias
por Liliane Braga

As expressões artísticas produzidas nas periferias provêm de manifestações culturais que integram a vida cotidiana. Teatro, música, dança e pintura interligam-se a autos populares e festejos sagrados e de rua, contações de histórias e à arte de cantadores- vendedores ambulantes ou seus pregões. As “artes periféricas”, que acabam por ocupar os palcos, as ondas do rádio, a TV ou a internet, vêm, antes de tudo, da presença no dia a dia, da espontaneidade, da quase indissociação entre a vida diária e a vivência artística.

Isso se passou e se passa no Brasil, mas também nos países em que a presença da população negra se deu a partir da escravidão, ou seja, em diferentes lugares das Américas e nas ilhas localizadas no mar do Caribe, todos integrantes da diáspora africana. Nas sociedades em que negros e negras participaram de seu desenvolvimento, além do aporte na economia durante a escravidão (lavoura, mineração, pecuária, metalurgia, tarefas domésticas...), cidadãos e cidadãs oriundos da parte ao sul do deserto do Saara africano e seus descendentes traçaram a espinha dorsal das estéticas que conferem identidade a esses países, mantendo a tradição de se expressarem culturalmente na rotina diária, diferentemente da divisão estabelecida por povos europeus que entendiam as expressões culturais e artísticas apartadas do dia a dia, devendo ser desenvolvidas em ambientes próprios, tais quais museus, conservatórios, anfiteatros etc. Foi pelo olhar e pelo fazer da população negra que se deram as misturas de manifestações culturais e artísticas de diferentes etnias de africanos, europeus e nativos (povos naturais das Américas chamados pelos europeus de indígenas), resultando em elaborações estéticas presentes nas ruas e nos quintais das regiões que passaram a se chamar “periferias”.

Sem os folguedos populares como maracatu, reisado e bumba meu boi (surgidos nessa “periferia do Brasil” que é o Nordeste e que ocupou as periferias da cidade de São Paulo, com a migração), sem a congada, sem o jongo ou a capoeira ou o candomblé, ou seja, sem as manifestações culturais negras das periferias simbólicas – porque à margem das elites autocentradas – e reais –, às margens dos riscos cartográficos que delimitam as cidades –, hoje, periferias-cêntricas (lá e cá, em todo lugar), não veríamos surgir repente, embolada, literatura de cordel ou a rica dramaturgia de grupos ativos atualmente, como Teatro Popular Solano Trindade (continuado pela família do poeta e dramaturgo na cidade que o escritor “adotou”, Embu das Artes), Nós do Morro, Cia. Os Crespos, Capulanas e outros que, aos poucos, vão ocupando palcos teatrais em produções cênicas que enchem os olhos, os ouvidos e outros sentidos para além dos espaços periféricos (ambos com igual importância de serem ocupados!).

Chorinho, samba e suas vertentes (samba-choro ou choro de gafieira, samba de breque, samba-enredo, samba de partido-alto, samba-soul, samba-reggae, samba-de-roda, samba-rock), axé music, mangue-beat, baião, xote, xaxado, rap, funk original, funk carioca... Todos esses são gêneros musicais elaborados a partir da vivência do cotidiano nas periferias. Todos gêneros que trazem consigo passos da dança, tornando o espetáculo ao vivo uma experiência para além da fruição, para além da apreciação, uma experiência sensorial, em que o movimento do corpo é permitido, requerido até – seja dançando em pé ou embalando-se na cadeira –, prática antes desaprovada durante as apresentações artísticas de matriz europeia praticadas no Brasil e nas Américas.

A forma de organização social trazida pelos portugueses ao Brasil foi a que prevaleceu por muito tempo. Hoje as manifestações culturais realizadas no ambiente cotidiano das pessoas que as fazem estão mais valorizadas do que eram antigamente. Ainda temos os espaços reservados para a fruição artística, mas já não mais intocável como outrora, quando não havia participação da audiência a não ser nos momentos finais, com aplausos comedidos. Arte produzida para o entretenimento, com a qual não se interagia. Até aquele período, meados do século passado, as artes dividiam-se entre “eruditas” e “populares”. 

Com o passar do tempo, às vezes as elites foram trazendo para os espaços cêntricos obras populares sem, contudo, apresentar seus autores. Quando seus autores e suas autoras puderam apresentar-se, saindo dos bastidores, algo geralmente não apontado se fez presente: em grande número, tais obras eram de autoria de representantes da população afrodescendente (que inclui negros e mestiços de negros). Depois, com os gêneros populares integrando a indústria do entretenimento, criaram-se nichos para atuação artística de vertente popularesca, independente das classes sociais das quais provinham. A partir daí, artistas afrodescendentes das periferias perderam a evidência como representantes das artes populares.

Foi assim até o surgimento do hip-hop nos anos de 1980, que voltou a retroalimentar a autoestima das periferias com realizações culturais próprias e efervescentes protagonizadas pela juventude negra e que fez reverberar na proliferação de saraus literários intergeracionais, grupos teatrais e manifestações variadas da cultura afro que têm produzido obras de grande valor estético e que aparecem com maior força para o restante da sociedade em eventos como o Estéticas das Periferias, que teve em 2012 sua segunda edição.

Por ser uma arte de maior alcance via meios de comunicação de massa, a música permite exemplos rápidos sobre a participação fundamental da cultura negra das periferias nos grandes gêneros e com relação aos grandes expoentes surgidos entre os séculos 20 e 21. Essa participação diz respeito a artistas como Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Beth Carvalho, Jorge Ben Jor, Tim Maia, Elba Ramalho, chegando às gerações pós-anos 1990: Chico Science, Zeca Baleiro, Chico César, Paula Lima, Fabiana Cozza, Emicida, Criolo... Representantes de gêneros musicais criados a partir da atividade cotidiana das camadas populares periféricas, formadas predominantemente por negros(as) e suas tradições vindas da África. Gêneros criados a partir dos ritmos da liturgia sagrada de orixás e inquices; dos cantos de trabalho de lavadeiras, agricultores e ferreiros; dos ritmos produzidos nos fazeres dessas atividades; dos versos dos pregões dos vendedores ambulantes; do vissungo ou jogo de pergunta e resposta entre a voz solo e o coro; da ladainha das rodas de capoeira...

Foi com o reconhecimento da qualidade estética das artes das periferias que as manifestações populares passaram a ser estudadas sem o peso do preconceito social e também aprendidas em escolas de artes, tendo seus(suas) representantes reconhecidos(as) oficialmente e contratados como educadores(as) para além dos empreendimentos educativos, muitas vezes mantidos por eles(as) próprios(as) em seus bairros ou comunidades. Mas um obstáculo, no entanto, ainda é muito presente. E ele integra as razões da criação da Rede Kult Afro, a qual represento. Trata-se da ausência da abordagem racial a partir da contribuição negra nas discussões públicas sobre as culturas e as estéticas das periferias.

Aprendemos com a África que canto, música, dança e artes plásticas não se separam. Performance, em qualquer um dessas manifestações artísticas no século 21, é sinônimo da presença de todas as outras em cena. Aprendemos com a África que riso, lágrima, suor, aroma, odor, ofegância e langor, os sentidos todos, integram a vida cotidiana e, por sua vez, conferem vida às estéticas das periferias presentes em toda parte.

O que historicamente é feito nas periferias das Américas, onde a presença maciça é a presença negra, é a manifestação artística espontânea que, obviamente, fica muito melhor quando apoiada – logística, financeiramente e com incentivos de toda ordem. Apoio para realçar suas qualidades, beneficiar a todos e todas, estimulando artista e público, promovendo a criatividade de crianças, adultos e idosos de todas as raças e classes sociais que, sem os espaços conquistados por onde as estéticas das periferias circulam, talvez não dessem continuidade ao seu potencial artístico.

Sem a presença negra nas periferias, as estéticas que se têm hoje nos centros e nas bordas certamente seriam outras... A música não seria tão rítmica; as artes visuais e cênicas, não tão coloridas e proverbiais quanto nos legou a África na diáspora, a África nas periferias presentes em toda parte.

Liliane Braga é fundadora do Quisqueya Brasil – Projetos afro-diaspóricos de cultura e educação e membro da Rede Kult Afro de empreendedores, artistas e produtores de cultura negra do estado de São Paulo

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A periferia e a descoberta de uma nova estética
por José Guilherme Magnani

“Estéticas das periferias: arte e cultura nas bordas da metrópole”: afinal, o que representa o evento que leva esse nome, já em sua segunda edição, patrocinado por uma dezena de instituições e que reúne acadêmicos, produtores culturais e gestores, durante uma semana em exposições e debates, em diferentes espaços e equipamentos culturais da cidade? Para responder a essa questão é preciso começar pela análise do próprio título, levando em conta cada um dos termos da expressão: estética e periferia.

Comecemos por periferia: historicamente, tem uma conotação geográfica e também sociológica, pois designa não apenas a área de expansão urbana em oposição ao centro histórico, mas aponta para a carência de equipamentos básicos a que estão sujeitos seus moradores, considerados de baixa renda, pouca qualificação e de inserção precária no mercado de trabalho.

Atualmente, o conceito está sendo revisado, pois nem sempre essas características se mantêm: há condomínios residenciais fechados, de luxo, em áreas da periferia, assim como bolsões de pobreza em zonas centrais. Por outro lado, mesmo no sentido convencional não tem uma significação homogênea: já se fala, por exemplo, em “hiperperiferia”, para diferenciar graus mais extremos de falta de recursos e serviços básicos em zonas recentes de expansão.

Mas a mudança mais significativa com relação a esse conceito é de ordem simbólica. Em determinados contextos ligados a movimentos sociais ou culturais, periferia, e alguns de seus correlatos, como “quebrada”, são empregados em sentido afirmativo. Como mostra Alexandre Barbosa em sua pesquisa Pichando a cidade: apropriações “impróprias” do espaço urbano, é comum escutar que “ser da quebrada não é para qualquer um”, no sentido de que se reconhece, sim, que lá as condições de vida são difíceis, há violência etc., mas é preciso saber como estar preparado para enfrentá-las. Dessa forma, o termo adquire um sentido positivo, passa de estigma a marca de pertencimento.

O segundo elemento da expressão é a estética. O termo aponta para outro campo de reflexão, o da cultura. E nesse sentido há que reconhecer que nos bairros populares de São Paulo, destino de uma população de origem migrante, sempre existiu um rico leque de manifestações classificadas como cultura popular: circo-teatro, festas da cultura caipira, tradições nordestinas, manifestações religiosas da vertente afro-brasileira e do chamado catolicismo rústico etc.

A novidade, porém, é o florescimento mais recente de práticas ligadas ao segmento jovem, em diálogo com o processo de globalização, mas com acento, tema e cor locais. É o caso do hip-hop e do movimento rap, por exemplo, que justamente celebram, de forma mais explicitamente politizada, o que foi dito acima sobre periferia como espaço e condição de afirmação. A disseminação dessas práticas e sua diferenciação – inclusive com o emprego de uma tecnologia digital que viabiliza a produção e a faz mais acessível – tornam visível e público algo que sempre existiu, sob diferentes formas.

Público e visível: essas são, precisamente, as chaves para que se possa falar de uma “estética” particular, pois é preciso que experimentos individuais e localizados entrem em contato, façam trocas, comuniquem-se e se influenciem mutuamente: ou seja, que constituam um circuito [mais informações no artigo De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana, disponível em http://n-a-u.org/novo/wp-content/uploads/2011/11/de_perto_de_dentro.pdf]. E não só no campo da música, mas na literatura – ficção e poesia –, vídeo, artes plásticas, cinema, teatro, culinária, moda. Cada um desses gêneros e modalidades de expressão, à sua maneira, com sua linguagem própria, desenvolve pontos e temas comuns, o que então termina por constituir uma estética reconhecível, entendida como um conjunto compartilhado de valores, modos de fazer e usufruir – neste caso, de periferia, no sentido definido mais acima.

É principalmente nos “saraus da periferia” – há quem contabilize mais de 60 núcleos espalhados pela cidade – que se dá esse processo. É em torno deles que transitam pessoas, ideias, textos, equipamentos, com propostas originais, alguns de afirmação étnica explícita, outros de renovação estética, outros ainda de gênero. E não se trata de um movimento tão recente assim: o Samba da Vela e a Cooperifa, dois dos mais conhecidos pontos de referência dessa rede, acabam de completar, respectivamente, 12 e 11 anos de existência.

E se algumas dessas iniciativas ocorrem utilizando equipamentos públicos, como é o caso do Samba da Vela, na Casa de Cultura de Santo Amaro, a maioria, a exemplo da Cooperifa, se instala e funciona em espaços pouco afeitos a práticas consideradas culturais, como botecos, lajes, becos e esquinas. A escolha do termo “sarau” para atividades nesse tipo de espaço não deixa de constituir, com ironia, uma referência às sofisticadas reuniões da elite, em ambientes refinados e exclusivos.

E para concluir essa rápida análise, cabe uma observação final sobre o alcance da expressão “estética da periferia”. No encerramento das atividades do último encontro do seminário Estéticas das periferias: arte e cultura nas bordas da metrópole, no Sesc Belenzinho, no dia 20 de agosto de 2012 – note-se o uso do plural, para evitar qualquer conotação homogeneizadora –, ficou claro que a alusão à periferia não acarreta necessariamente improvisação, precariedade. Há um cuidado cada vez maior com o apuro técnico e formal, com a incorporação de novas tecnologias, a busca de parcerias, a concorrência a editais.

Se de um lado há desconfiança com o mainstream da indústria cultural, por outro se percebe a consolidação de um espaço próprio de produção, circulação e consumo. Até quando e até que ponto vai se manter a autonomia ante o mercado, sempre antenado para cooptar o que pode gerar lucro, só o tempo dirá.

Por enquanto, como se pode apreciar nas páginas da Agenda Cultural da Periferia, editada e distribuída pela Ação Educativa, todo esse movimento demonstra vitalidade, criação de padrões estéticos inovadores e uma identidade própria, em meio à multiplicidade que o caracteriza. Na busca dessa originalidade, a estratégia não é o isolamento, a “guetificação”, mas a troca, no interior do próprio circuito e com o diferente, fora dele. No limite, como acontece em qualquer movimento cultural vivo, não há fronteiras intransponíveis, não há centro, não há periferia – no sentido de posições isoladas e excludentes.

José Guilherme Magnani é coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU-USP) e professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.