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Evandro Carlos Jardim

O gravador, desenhista e pintor Evandro Carlos Jardim ingressou na Escola de Belas Artes de São Paulo em 1953, onde estudou modelagem, escultura e pintura. Especialista em gravura em metal e na técnica da água-forte, atuou paralelamente no campo acadêmico como professor da Escola de Belas Artes, da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), na qual também fez parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais.

Vencedor de prêmios como o de melhor gravador do ano (1974 e 1992), pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), de melhor exposição individual (2005), pelo Prêmio Bravo! Prime de Cultura e Prêmio Canson de Artes Plásticas (1989), Jardim acredita que não importa a plataforma utilizada pelo artista, mas sim sua finalidade e necessidade de expressão: “A obra de arte é uma sucessão de experiências, de relações com o mundo, com as pessoas etc. Não vamos confundir isso com artesanato industrial”.

Seu suporte principal é o papel. Nesses anos todos de atuação, você tem visto alguma modificação do mercado em relação ao status do papel, haja vista que a pintura e a escultura, dentro das artes visuais, geralmente são mais valorizadas?

Eu acho que é uma questão de cultura. A gravura no Brasil é uma coisa recente. Nós temos um passado colonial no qual a gravura não era permitida. Até a chegada de dom João VI (1808), quando a imprensa foi finalmente legalizada.

Antes disso, a prática da gravura era uma atividade clandestina ou então as estampas eram importadas. Acho que isso deixa uma lacuna em relação ao entendimento e essa nossa convivência com o papel impresso. Quando a gravura passa a ser livre no Brasil, ela continua atendendo a praticamente todas as áreas do conhecimento. Ela não é exclusivamente da área artística e tem um vínculo profundo com os artesanatos de alto nível. Se você pensa em arte e artesanato do ponto de vista de comportamento, o assunto gravura nos abre um espaço extraordinário para muitas reflexões.

Houve difusão da gravura entre as classes populares por conta de sua facilidade de feitura e baixo custo, como no caso do cordel?

O cordel foi uma produção relativamente barata e de acordo com o material e instrumental disponível. Usando uma faca e uma madeira fácil de ser cortada, você poderia talhar uma imagem e imprimi-la numa tipografia simples, sem máquinas, até à mão mesmo, com a pressão de uma colher. Mas as imagens poderiam ser levadas a uma tipografia.

A imagem do cordel é muito diferente de uma imagem de natureza mais erudita, pois os recursos e os operadores eram outros. Hoje, o cordel é um pouco diferente, mas ele é muito próximo da primeira gravura medieval e, de certa forma, tem a mesma função.

Quando a gravura entra clandestinamente no burgo medieval, ela põe em xeque a iluminura e o livro manuscrito – que era caríssimo e para poucos. Para você ter uma ideia, um livro de manuscritos valia mais que um rebanho de carneiros, pois aquilo era feito sobre pergaminhos de animais natimortos.

Você sacrificava duas criaturas para aproveitar a parte da pele mais fina e adequada para a construção de uma folha. Também temos que associar essa história ao papel de trapo chinês [feito a partir de fibras de algodão extraídas de roupas velhas, panos e trapos], que nasce na China (por volta de 500 d.C.) e faz vários percursos – vai para a Coreia, para o Japão, para a Rússia, para o norte da África e, por lá, ele entra no Ocidente (1200 d.C.).

A xilogravura só pôde ser multiplicada pela presença do papel de trapo. As primeiras xilogravuras foram impressas em couro! Nem era no pergaminho, era no couro mais grosseiro mesmo. Então, toda essa história é interessante para não se perder esse hábito de fazer distinção entre papel e tela – o que não tem sentido. Você está trabalhando com a matéria, e toda a matéria dura se for zelada.

O cordel passa a integrar a cultura brasileira por meio da penetração popular. Cria-se, portanto, uma linguagem que deixa de ser apenas elitista?

Esse processo foi muito interessante, mas isso aconteceu também com todos os outros tipos de expressão, como a pintura, a escultura, com a talha, com a mesma intensidade da xilogravura. Nós não podemos esquecer que, no período colonial, muitas imagens eram importadas e passaram a ser modelos.

Elas foram absorvidas de acordo com o recurso de quem operava aquela poética. Na minha maneira de ver, não existe uma diferença quanto à produção da gravura, da pintura, do desenho, da talha, da escultura etc. Cultura, ao meu entender, é cultivo das nossas potencialidades. Você vê num determinado meio como é que a cultura se manifesta.

Ela tem uma penetração fantástica, nós não sabemos quanto aquilo pode influir nas pessoas. Um dos problemas da gravura é a multiplicação, quer dizer, as imagens se multiplicam mais que as outras linguagens e, portanto, ela tem uma penetração muito maior, embora quem veja aquilo não entenda bem como é feito e talvez não entenda bem a especificidade daquela linguagem.

Como você definiria a arte?

A arte é uma expressão externa de uma necessidade interior. Para você entender arte é preciso se aproximar muito das questões que dizem respeito ao ser humano. Paralelamente a isso, existem tendências, existem escolas. Aí você entra no problema da produção de arte.

A partir disso, você pode esbarrar em outros problemas, que são os estilos, os modelos etc. Mas, com tudo isso, se estamos falando de obra de arte, estamos falando da transmissão de algo que partiu do indivíduo. Arte pode ser entendida como maneira humana geral de fazer coisas. Essas coisas são feitas de diferentes formas, com diferentes intenções, com os objetivos mais diversos.

Esse é um problema bastante complexo. Se você leva isso para a área do ensino ou da transmissão de conhecimento, ela não é simples. Eu, por exemplo, faço um ateliê de gravuras no Sesc Pompeia. Recebo pessoas com os mais diferentes projetos.

O que posso fazer? Por um lado, posso oferecer uma oportunidade de conhecimento, mas por outro lado tenho de entender que junto com isso existe uma liberdade de expressão na qual eu não posso intervir. Aí é que vem a questão da teoria e da prática numa situação dessa natureza.

Você já pensou em fazer obras por encomenda (chegando a realizar “cópias” de suas próprias obras) como alguns pintores fazem?

Para mim, arte é uma necessidade de expressão. Se aquilo interessa para alguém, é simplesmente aquilo. Eu não me imagino repetindo alguma coisa por outra razão (encomenda, por exemplo). Obra de arte é uma sucessão de experiências, de relações com o mundo, com as pessoas etc. Não vamos confundir isso com artesanato industrial.

Em todas as épocas houve o trabalho interessado e o trabalho desinteressado. Há o comportamento interessado e o remunerado, e há o comportamento desinteressado que visa provavelmente a uma transcendência, em prol do que eu posso chamar de “bem”, e não em troca de alguma coisa.

Você faz parte de uma categoria muito importante no país que é a de artista e professor. Como você conjuga essas duas atividades?

Para mim elas não são conjugadas, é uma coisa só. Se eu posso transmitir algum conhecimento nesse sentido e se eu for sincero, a experiência está no meu próprio fazer. Eu não preciso transmitir o que eu faço, mas eu posso ensinar de que forma alguém que tenha essa mesma necessidade de expressão pode se conduzir.

De uma maneira bem simples e direta: o artista aprende com o artista. E não estou usando a palavra artista como algo de exceção, é uma coisa natural. Se a gente conseguisse conceituar bem, é alguma coisa que chamamos de grande tradição de um fazer.

O que é isso? É a transmissão de uma força vital que passa de uma geração a outra. Não é repetição. Isso tudo está profundamente vinculado às questões da composição. No fundo, trabalhamos todos juntos e isso implica o conceito de tempo. O tempo não é alguma coisa que passou, ele é fluido, é uma duração. No seu fazer você tem o tempo como um meio de transitar pelas gerações todas e nesse trânsito oferecer também a sua contribuição. O que na verdade existe para nós é um presente nesse tempo que dura. Temos todo o tempo à nossa disposição.

Qual o aproveitamento da área acadêmica para o Evandro artista?

É um diálogo constante com os alunos. Quando você dá uma aula de arte, pode estar transmitindo algum conhecimento e, fatalmente, recebendo outro. Para melhor compreensão, é necessário que voltemos ao início do fenômeno. A questão do espaço nas artes visuais é fundamental no plano das representações. Só a história da perspectiva já seria um assunto inesgotável.

A arte sempre tem um vínculo com o transcendente. Kandinsky [Wassily Kandinsky, 1866-1944], que foi um professor e um grande pintor, fala duas coisas fundamentais: “Arte é expressão externa de uma necessidade interior”, isso é um ponto; o outro é que “todo procedimento é sagrado quando interiormente necessário”. Com essas duas questões, ele apresenta toda a complexidade e beleza dessa oportunidade de expressão.

Isso se torna importante quando a associamos a outras questões, por exemplo, o mercado. É uma coisa complexa, podemos fazer um bom mercado, o artista depende disso para produzir, por isso que eu digo que mercado é mercado, arte é arte.

Qual o seu processo de trabalho, o que mudou?


Comecei entendendo que tudo o que eu gostaria de fazer seria uma tentativa. E, hoje, vou responder: continua sendo uma tentativa. Vejo mais a arte como tentativa de expressar algo que se sente e possíveldiálogo com o outro por meio desse processo. Não vejo como fazer isso de uma forma diferente.

Essas tentativas mudaram ao longo das décadas?

Aconteceu que eu tive a oportunidade de viver do meu trabalho, mostrando, fazendo exposições, ou quando me vinculei ao ensino. Desde o começo, tive várias experiências, mas sempre o ensino esteve relacionado às minhas operações poéticas. O que está em jogo quando você vê uma obra de arte?

Uma manifestação poética que para se manifestar plenamente precisa ter um vínculo com as técnicas e com as práticas. Esse é o tripé. É uma interação entre esses três momentos. Se eu entendo que a manifestação poética é a ideia, é um vir a ser muito íntimo, mas esse vir a ser quer se concretizar, então para que isso aconteça é preciso conhecimento, e a técnica é pressuposta de conhecimento.

Tem gente que confunde técnica com procedimento. Enquanto a técnica é o conhecimento, você não pode usar cor se desconhece luz. O que é cor na pintura? É luz convertida em cor, então quando você pinta tem cor. Por isso que, ao ensinar, procuro me fundamentar bem em todos aqueles que tentaram se aproximar do fenômeno deixando mensagens interessantes, os tratados.

O desenho não é uma expressão só gráfica, é caminho, é intenção, é fazer concretamente alguma coisa. Sem desenho não nos deslocamos, nos perdemos no meio do caminho. Agora eu volto para a minha área, que é a gráfica e a plástica. Existe um desenho que pode ser visto e sentido do ponto de vista gráfico. Mas existe o desenho da dança, do cinema, do teatro, tudo isso é desenho. É o desenho ligado às causas das coisas. Isso é importante passar aos estudantes.

A forma de representação do mundo a partir da figura continua válida?

Acho que posso chamar o gesto de figura, o geométrico de figura geométrica, de novo a palavra. Qual a nossa referência? São as imagens ou figuras do mundo visível, pois, se tiramos isso do homem, como ele irá saber onde está? Então existem as imagens do mundo visível; quando pintamos uma imagem do mundo visível não estamos nos deslocando para o campo da representação, porque é impossível, você está dialogando com aquilo de diferentes maneiras.

Uma forma de tornar esse diálogo possível, no meu entender, é observar o que você está vendo em diferentes níveis de percepção. Você pode até perceber naquilo que está vendo a representação daquele invisível que o visível te oferece. A representação depende de como você aborda a imagem do mundo visível. Você já viu alguma pintura ou algum desenho que não tivesse como vínculo alguma coisa do mundo visível?

A maneira como enxergamos muda com o passar do tempo.

Aí estamos falando de muitas coisas. Há um ensaio do Erwin Panofisky [crítico e historiador de arte alemão, 1892- -1968] sobre as proporções humanas em que ele fala do egípcio e do grego. O egípcio não perspectivava a imagem.

Já o grego começa a fazê-lo, considerando o ponto de vista do observador. O tempo está sempre dialogando conosco. Isso vai depender também de cada momento e cultura. Não raro você vê em diferentes momentos da história da arte essas coisas reaparecendo; estamos quase que operando da mesma maneira, de acordo com as nossas necessidades de expressão, que mudam conforme o nosso interior.

Você tem uma necessidade diferente agora?

A necessidade eu não sei se é diferente, mas a forma de recepção, provavelmente, sim. Se você vê obras de dois pintores, está vendo duas obras diferentes, que influem na qualidade daquelas expressões. Então, isso é motivo de uma profunda reflexão.

O que muda e o que permanece nesse fenômeno são fundamentais para não corrermos o risco do esquecimento e de não entender o significado do tempo na nossa vida. Isso que estamos falando nos faz pensar que o tempo é uma duração e não se apaga. Se entrarmos em questões acadêmicas e começarmos a estudar a história da arte em períodos, podemos ter mais simpatia por um período do que por outro, mas isso não é o suficiente para você desprezar algo e valorizar outra coisa, nem para o contemporâneo nem para o passado.

O interessante seria construir para cada um de nós esse tráfego livre, entre os diferentes momentos da história. Talvez assim fôssemos até mais justos nos momentos das críticas. Senão, podemos correr o risco de cometer algum equívoco. A obra de arte só interessa quando você, por vontade própria, se aproxima dela. E, quando isso ocorre, ainda não fez o percurso inteiro, você tem que permitir que a obra de arte penetre no seu espírito. É um caminho de ir e vir constante.

Como você explica que algumas expressões artísticas atinjam as pessoas mais facilmente e outras demorem a tocá-las?

Simpatia. Podemos ter mais ou menos por alguma coisa.

Vamos pegar o Amedeo Modigliani, pintor italiano (1884-1929) que quase não vendeu nada em vida. Ele só conseguiu a “simpatia” das pessoas com o passar do tempo?

Vamos então conhecer nosso exemplo. Ele foi um pintor italiano que entrou na Escola de Paris e viveu por lá. Considero um grande artista, mas naquele momento ele teve um diálogo com o passado. Daí é importante estudar o contexto no qual ele viveu.

A impressão que se tem é que ele estava realmente fascinado com o que fazia, mas não foi muito bem entendido por todos. No entanto, entram outras questões, por exemplo, achar que Van Gogh [pintor pós-impressionista holandês, 1853-1890] foi um louco ou miserável, pois não foi nenhum dos dois.

Quando estudamos a sua obra, não podemos fazer esse tipo de análise tão rápida. Vou repetir: diante de uma obra, é preciso que ela penetre em seu espírito. A arte tem um vínculo com o transcendente; veja a história desde o início, pode ler todos os tratados sérios. Temos que fazer uma seleção dos textos e de como estudaremos isso, senão os equívocos se acumulam cada vez mais.

“A obra de arte só interessa quando você, por vontade própria, se aproxima dela. E, quando isso ocorre, ainda não fez o percurso inteiro, você tem que permitir que a obra de arte penetre no seu espírito. É um caminho de ir e vir constante”

“A representação depende de como você aborda a imagem do mundo visível”

“Comecei entendendo que tudo o que eu gostaria de fazer seria uma tentativa. E, hoje, vou responder: continua sendo uma tentativa. Vejo mais a arte como tentativa de expressar algo que se sente e possível diálogo com o outro por meio desse processo”

“Se você pensa em arte e artesanato do ponto de vista de comportamento, o assunto gravura nos abre um espaço extraordinário para muitas reflexões”