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Intercâmbio de linguagens

Paulo Lins é escritor, poeta e roteirista de obras para teatro, cinema e televisão. Graduado em Letras, escreveu o livro Cidade de Deus, sobre a vida nas favelas do Rio de Janeiro, que ganhou versão cinematográfica em 2002, dirigida por Fernando Meirelles. Foi roteirista do projeto Cidade dos Homens, na TV Globo, e da primeira versão do longa-metragem Faroeste Caboclo, inspirado na música de Renato Russo.

 

Abaixo você confere a entrevista completa:

Você é autor do livro Cidade de Deus, que ganhou uma versão cinematográfica, com direção de Fernando Meirelles. Que diferenças essenciais você aponta entre a obra literária e a história contada no filme?
São duas linguagens totalmente distintas, cada qual com suas limitações. O cinema é limitado pela questão do tempo de duração de um filme. Coisa que um livro não tem. Eu posso escrever uma obra literária de mil páginas, mas dificilmente haverá um filme com cinco horas de duração. Há exceções, como uma adaptação de que eu gosto muito, Lavoura Arcaica, feita por Luiz Fernando Carvalho [lançado em 2001, baseado na obra homônima de Raduan Nassar], que tem quatro horas, mas não é comum. O mais importante nesse processo de adaptação de um livro para um filme é conseguir manter o clima da obra original. E isso o Bráulio Mantovani [roteirista de Cidade de Deus] conseguiu fazer. A mensagem que eu queria passar com o livro ele transpôs para o filme. Isso é o fundamental em qualquer adaptação: você pode até mudar alguma coisa, mas deve manter o essencial.

 

No caso de Cidade de Deus, você teve participação direta ou como consultor no processo de criação do roteiro?
Ficou nas mãos do Bráulio. Eu participei  apenas como consultor. E foi aí que comecei a me interessar por roteiros. Eu ia à casa dele e via um monte de anotações, em papeis pendurados nas paredes, achava uma loucura. E ele fez um grande trabalho, porque o roteiro é uma das boas coisas desse filme.

 

Cidade de Deus gerou também uma série de TV, Cidade dos Homens, com sua participação direta no roteiro. Foi sua primeira experiência de texto para televisão? Quais foram os desafios para realizar esse projeto?
Antes de fazer esse projeto, trabalhei com Cacá Diegues em Orfeu da Conceição e em Quase Dois Irmãos, dirigido por Lúcia Murat. Outro trabalho importante foi o clipe A Minha Alma, d’O Rappa. Fui aprendendo fazendo. A diretora Kátia Lund me orientou muito, entrei no cinema através dela. Ela gosta de ensinar. O desafio é entender essa linguagem, que é muito diferente da escrita literária. Escrevo o roteiro falando alto. Se não ficar bom na minha boca, também soará falso na voz do ator.

 

Como é feito o trabalho de transpor para um roteiro a linguagem coloquial, incluindo expressões e gírias, sem soar artificial e sem perder a comunicação com o público geral?
Em Cidade de Deus, aconteceu algo interessante: os próprios atores criaram os diálogos. Eles inventavam as falas. O Bráulio até fez uma pesquisa de linguagem, dividida por décadas, desde 1960 até 1990, mas os meninos criaram em cima, usando as gírias dos anos 2000. Mesmo no livro, nunca me preocupei muito com essa questão, até porque outros escritores já fizeram isso: José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado. Acho que um recurso para testar se o texto funciona é ler em voz alta.

 

Como sua experiência de vida pessoal aparece na criação literária e cinematográfica? De que forma as vivências pessoais ajudam a elaborar com mais verossimilhança as narrativas?
As experiências ajudam o tempo todo, tanto as minhas quanto as de outras pessoas, dos amigos. Mas não no sentido de reproduzir fielmente essas histórias e sim das leituras que faço delas. Gosto, por exemplo, de anotar frases que me ajudam nos textos poéticos. E também realizo muito trabalho de pesquisa, outras leituras. Neste momento, estou envolvido num trabalho de pesquisa de linguagem para uma novela de Alcides Nogueira e Mário Teixeira, em que dialogo e troco muitas experiências com a equipe. É meu primeiro trabalho em novelas, já que na televisão, até hoje, trabalhei apenas em série.

 

No cinema, você também trabalhou no roteiro do longa-metragem Faroeste Caboclo, filme cuja história se baseia na música de Renato Russo. Como é a experiência de criar a partir da referência de outra linguagem artística?
Fiz a primeira versão do roteiro para Faroeste Caboclo. Depois, eu me afastei do projeto para terminar um livro e retomei no processo final, para fazer os diálogos. Na verdade, quando a gente parte para fazer o roteiro, a ideia do filme já está pronta. É o que chamamos de argumento. No caso de Faroeste Caboclo, o argumento era a própria música. Não foi difícil de desenvolver, primeiro porque eu já era grande fã dessa canção do Renato Russo. E depois, tudo foi profundamente discutido com a equipe de direção, para não se perder a intenção tratada na música.

 

De que forma a literatura pode contribuir para projetos de audiovisual? Você acredita que um filme ou uma série inspirados num livro podem gerar novos leitores?
Sem dúvida. Isso aconteceu comigo no mundo todo. A literatura brasileira é muito rica, repleta de histórias muito boas, que podem ser adaptadas para a TV, o cinema, o teatro. E o audiovisual ajuda a literatura, porque a divulga. O cinema tem um amplo alcance, num País que ainda tem poucos leitores. Por isso, é uma mútua contribuição.

 

Na sua opinião, a televisão abre espaço para esse intercâmbio entre a literatura e o audiovisual?
Abre sim. Temos exemplos de inesquecíveis adaptações para obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto. É algo muito bom e que deve ser sempre ampliado.