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Cartografias afetivas

Cartografias afetivas

O patrimônio cultural paulistano vai muito além das edificações tombadas pelo poder público, pois compreende a construção de vínculos com a história e o espaço urbano


Assim como outras metrópoles, São Paulo vive desafios na preservação de seu patrimônio cultural. A velocidade com que a paisagem da cidade se reinventa entra em conflito com o tempo histórico das fábricas desativadas, casarões e antigos monumentos. Por outro lado, são vários os exemplos de grupos envolvidos com o resgate patrimonial e a construção de vínculos afetivos com a história e o espaço urbano. O que se verifica na intensa mobilização popular em torno da reabertura do Cine Belas Artes, prevista para maio, após tombamento do prédio pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) em 2012.
Para a professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas Leticia Ferreira, muitas vezes, considera-se patrimônio apenas o grande monumento, enquanto o conceito abrange também o pequeno campinho de futebol de bairro “tombado pela comunidade”. “Nesse caso, o afetivo fala mais alto, é o caso do Belas Artes, que por tanto tempo foi o lugar do entretenimento, do espetáculo, mas também da sociabilidade de determinados grupos sociais, de contatos culturais diversos que rompiam com a hegemonia do cinema norte-americano, do encontro entre pessoas, que é um dos elementos fundamentais de organização da vida”, explica.
O arquiteto e urbanista especialista em conservação e preservação de monumentos e conjuntos históricos Guilherme Michelin, também desmistifica o conceito de que a importância de um local é proporcional à grandiosidade da obra. “A praça onde um grupo de idosos passa a tarde conversando, o terreiro onde ocorrem as festas tradicionais de uma comunidade, a pista de skate dos jovens de determinado bairro, uma capela de arquitetura singela, tudo isso pode ter uma importância tão grande, ou até maior, do que os patrimônios reconhecidos pelos órgãos de preservação”, afirma. Para ele, a enorme quantidade de empreendimentos construídos na cidade que não dialogam com o ambiente modificam a paisagem não apenas fisicamente, mas culturalmente, gerando perdas na relação de pertencimento da população com seus patrimônios históricos e culturais. “As mudanças na paisagem urbana devem respeitar a forma como cada grupo de pessoas que compõe uma região entende seu patrimônio”, acrescenta.
Incluir o patrimônio cultural da cidade no mapa mental dos habitantes – para que o conheçam – e em seu mapa afetivo é o segredo para o engajamento da população com a história da cidade, afirma a doutora em Urbanismo Ana Carla Fonseca, que é diretora da Garimpo de Soluções, empresa especializada em economia criativa e cidades criativas. De acordo com ela, as atuais iniciativas de preservação de bens paulistanos, como o movimento pela reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus e o movimento Parque Augusta, são normalmente lideradas por pequenos grupos que conseguem mobilizar uma massa crítica de pessoas em prol de uma causa. O primeiro exemplo trata de um coletivo formado por moradores do bairro da zona noroeste de São Paulo que se mobiliza pelo direito de fazer uso público do prédio abandonado da antiga Fábrica de Cimento de Perus. O intuito é instalar um Centro de Lazer, Cultura e Memória do Trabalhador e uma Universidade Livre e Colaborativa. Já o movimento Parque Augusta luta para que um terreno de cerca de 25 mil metros quadrados no centro de São Paulo seja transformado em um parque. Hoje a área é propriedade de incorporadoras que querem construir apartamentos no local.
Michelin alerta para o fato de que só o tombamento não garante a preservação dos bens de valor histórico, cultural, arquitetônico ou mesmo ambiental. Apesar de ser um documento de vital importância, ele é incapaz de impedir a destruição e a descaracterização dos bens, que deve ser exigida pelos cidadãos. “A conservação e preservação do patrimônio é, acima de tudo, um ato de cidadania”, diz.
Para Leticia, a conversão de peças patrimoniais arquitetônicas em espaços culturais, educacionais ou comerciais, caso do Sesc Pompeia, Centro Cultural Banco do Brasil e Museu da Língua Portuguesa, é uma das possibilidades para aliar as dinâmicas sociais e culturais contemporâneas aos vestígios de outros tempos. “São espaços de beleza, integração, lugares onde memórias diversas se cruzam e entrecruzam.”

BBOXE 01 - Ícones paulistanos

Alguns lugares e sabores que são a cara da capital

É difícil passar pela Avenida Paulista, centro financeiro da metrópole, e não notar o prédio vermelho e preto do Museu de Arte de São Paulo (Masp), fundado em 1947. O projeto é da arquiteta Lina Bo Bardi, também responsável pela reforma do edifício do Sesc Pompeia, reconhecido pela transformação de antiga fábrica em refúgio cultural e artístico. “O público frequentador do Sesc Pompeia se identifica com o pensamento libertário e socializante da arquitetura concebida por Lina Bo Bardi, o que o faz voltar repetidas vezes, acionando sua memória afetiva pela cidade de São Paulo”, diz a gerente da unidade, inaugurada em 1982, Elisa Maria Americano Saintive.
No centro da cidade, o colorido de patrimônios é outro. O caminho geralmente começa pela 25 de Março, rua conhecida pelo comércio voraz. E entre as paredes datadas de 1933 do Mercado Municipal, o “Mercadão”, inúmeros patrimônios físicos e imateriais se exibem, como os vitrais (foto) que retratam cenas da lavoura no tempo da cultura do café, os sanduíches de mortadela, as frutas e temperos exóticos e os pastéis de bacalhau – tradição portuguesa.
O pastel, inclusive, pode também ser experimentado ao ar livre, em uma das barracas da Praça Charles Miller, no Pacaembu, onde anualmente é escolhido o melhor pastel de feira da cidade. Ainda nas heranças europeias, a pizza é, talvez, o mais conhecido patrimônio gastronômico dos paulistas, trazida para o comércio brasileiro no início do século 20 pelas famílias italianas que se instalaram no bairro do Brás.
Mas se nenhum colorido substitui o verde, parques como o Ibirapuera e o da Luz se mostram respiros diante da cimentada metrópole. E, no Complexo da Luz, além do parque, estão abrigados ainda a Sala São Paulo, a Tom Jobim – Escola de Música do Estado de São Paulo, a Pinacoteca do Estado, a Estação Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu de Arte Sacra e a Estação Júlio Prestes.

BOXE 02 - Arquitetura de resistência

Edificações antigas resgatam aspectos da história local, desde a fundação da cidade

A zona leste abriga o templo mais antigo de São Paulo. Sob a orientação do carpinteiro e bandeirante Fernão Munhoz, a Capela de São Miguel Arcanjo foi construída pelos Guaianases em 1622. Conhecida como Capela dos Índios, a igreja, localizada no bairro de São Miguel Paulista, foi um dos primeiros prédios tombados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1938.
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França (foto) é outra relíquia paulistana. Situada no bairro da Penha, zona leste, foi construída em taipa de pilão no início do século 19 e tombada em 1982. A igreja possui apenas uma nave, capela-mor, galeria lateral e sacristia. Internamente há modestos retábulos e uma dependência onde são guardados ex-votos.
Um dos edifícios históricos mais importantes da cidade, o Mosteiro de São Bento, localizado no Largo de São Bento, no centro, forma um conjunto com a Basílica Abacial de Nossa Senhora da Assunção, mais conhecida como Igreja de São Bento, o Colégio de São Bento e a Faculdade de São Bento. A história do mosteiro teve início em 1598, a partir das terras doadas pelo capitão-mor Jorge Correia aos monges beneditinos que se instalavam no Brasil. Nos primórdios de São Paulo, o local abrigava a taba do cacique Tibiriçá. A primeira edificação foi feita de taipa e erguida pelo beneditino Mauro Teixeira. Foi apenas em 1650 que uma nova e mais completa igreja foi erguida, com a ajuda do bandeirante Fernão Dias Pais. O projeto atual, do arquiteto alemão Richard Bernl, começou a ser construído em 1910 e terminou em 1922.
Fonte: Secretaria da Cultura do Estado ¿de São Paulo, Prefeitura da Cidade de São Paulo


BOXE 03 - Ativismo e patrimônio

Atividades discutem as formas
de apropriação dos bens públicos

De 1º a 6 de abril, será realizado o workshop Mapeando o Comum em São Paulo no Sesc Pompeia. A atividade é parte do projeto internacional Mapeando o Bem Comum, que teve início em Atenas, em 2010, por iniciativa do arquiteto e cofundador do laboratório hackitectura.net Pablo de Soto e do também arquiteto e membro da organização José Perez de Lama. Uma das principais atuações do projeto é na forma de laboratório temporário, onde se encontram ativistas, artistas, cientistas sociais e estudantes de diferentes disciplinas para explorar e discutir os bens comuns da cidade. É esse mote que norteia o workshop em São Paulo, ministrado por Pablo de Soto, Natacha Rena, Bernardo Gutierrez e Paula Borghi. Direcionado a estudantes e profissionais envolvidos com a cultura na cidade de São Paulo, o evento dará origem a uma exposição com os trabalhos desenvolvidos.
Realizado em março, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, o curso Patrimônio Cultural: o Desafio da Proteção abordou o patrimônio material diante das constantes transformações na sociedade contemporânea. Os modos de proteção, as políticas públicas que contribuem para o conhecimento, a valorização e difusão e os estudos contemporâneos sobre o tema foram alguns dos tópicos abordados. O curso foi ministrado pela professora da Universidade de São Paulo (USP) Silvia Helena Zanirato e pelo pesquisador da mesma instituição Danilo da Costa Morcelli.