Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Os índios e a imagem

Há muitos anos persigo um sonho. Às vezes próximo, às vezes distante. A criação de um canal Indígena de TV. Por que isso? Perguntariam alguns. Porque os brasileiros em sua grande maioria não fazem ideia do que é ser índio ou tem uma ideia completamente errada, construída no preconceito e em verdades falsas. Porque é muito importante para o brasileiro saber quem foram seus ancestrais e se orgulhar disso ao invés de ter vergonha. Pesquisas demonstraram que todo brasileiro tem, mesmo que muito distante, presença indígena no sangue, gravada no DNA. Os índios são o segmento da população brasileira que mais cresce. Isso se deve muito às conquistas da Constituição de 1988, através da qual esses povos recuperaram, pelo menos no papel, o direito à própria terra, ao aprendizado da própria língua e ao atendimento da saúde.


Existe uma dívida que precisa ser saldada com nossos povos originais. Existiam mais de mil diferentes nações indígenas quando os europeus invadiram o território que viria a se chamar Brasil. Hoje, passados mais de 500 anos, restam ainda cerca de 200 povos, sobreviventes de toda sorte de ataques, que precisam ser preservados. É a nossa herança primordial. Nossa história mais profunda e genuína. Esses povos representam o que é verdadeiramente nosso. Nosso mito de origem. Na verdade, muitos mitos.
Enquanto o país não resgatar e reconhecer essa origem, seremos habitados por sombras de um passado vergonhoso de massacres, invasão de terras, estupros, roubos, submissão moral e religiosa, desrespeito e muito preconceito, que ainda insiste em se manifestar nos dias de hoje contra esses povos, através de absurdos como a proposta de emenda constitucional conhecida por PEC 251, que repassa ao Congresso a decisão sobre demarcações de terras indígenas.


A história do registro de imagens dos povos indígenas se remete aos viajantes e expedicionários naturalistas que captavam em desenhos o ambiente indígena ou artistas pintores que por encomenda da Coroa retratavam os diferentes representantes da população da colônia. Logo depois vieram os pioneiros fotógrafos. Mas foi através das expedições do Marechal Rondon que outro militar, Major Reis, foi treinado para registrar em filme imagens dos povos indígenas dos territórios atravessados pelas expedições. Esses filmes, além de valor inestimável para o cinema, são precisos registros históricos.


De lá pra cá, uma quantidade considerável de documentários brasileiros e internacionais foram realizados, em sua maioria de grande interesse e valor etnográfico. O cinema de ficção também contribuiu para a permanência da imagem do índio nas telas. Importantes filmes brasileiros e um considerável número de produções estrangeiras utilizaram como tema principal conteúdos indígenas.


Marco importante do registro de imagens indígenas foi a criação do bem sucedido projeto Vídeo nas Aldeias, pioneiro em possibilitar ao índio o seu próprio registro audiovisual, criando condições de treinamento e aprendizado das técnicas de registro e edição audiovisual para os indígenas. Dezenas de realizadores indígenas surgiram a partir desse projeto e, com eles, grande volume de conteúdo audiovisual indígena.


Contudo, existe no Brasil e no exterior um grande acervo audiovisual que precisa ser reunido, catalogado e preservado. A imagem dos nossos índios está espalhada pelo planeta em acervos privados, coleções públicas e privadas, instituições, com risco de desaparecimento duplo, uma vez que muitas das culturas que deram origem a obras audiovisuais foram extintas.


A ideia do Canal Indígena é reunir esse acervo planetário de conteúdos indígenas e exibir uma programação voltada para o espectador brasileiro comum, e não apenas aos índios, que de certa forma já se conhecem. Mas é muito importante que o público brasileiro de TV conheça suas origens com tudo o que isso significa: as diferentes etnias espalhadas pelo território brasileiro, as diferentes línguas sobreviventes, os hábitos, a cultura, as aldeias e suas localizações, os mitos, lendas, espiritualidade, medicina, arquitetura, arte, agricultura, culinária, estrutura politica etc.


No Canadá e na Austrália existem canais de TV voltados para seus povos originais. É uma forma eficiente e importante de incluir essas culturas no cotidiano do brasileiro. É uma forma de irmos fundo no resgate de nossas histórias, entender de onde viemos e o que se passou para chegarmos até aqui.


Marco Altberg é roteirista, cineasta, presidente da ABPITV - Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão e diretor da série Índios Em Movimento.