Postado em 30/06/2016
Cineasta e pesquisador fala sobre identidade racial e a representação dos negros na televisão e no cinema nacional
Roteirista e diretor, Joel Zito Araújo é doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor pelo Departamento de Rádio, Cinema e TV da Universidade do Texas, EUA. Dirigiu, entre outros filmes, A Negação do Brasil (2000), Filhas do Vento (2004), Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (2009) e Raça (2013). O primeiro, que trata da trajetória do personagem negro nas novelas brasileiras, deu origem a um livro de mesmo nome. Nesta entrevista, Joel fala sobre identidade negra, miscigenação e a representação racial na televisão e no cinema brasileiro.
Por que não há, no Brasil, um cinema “negro”?
Existe um conjunto de fatos que dificultam a consolidação do cinema negro mais expressivo no Brasil. Para a gente ter uma ideia dessa dificuldade, é importante considerar que temos hoje no país cerca de 400 cineastas em atividade que conseguiram lançar pelo menos um filme de longa-metragem nas salas de cinema. Entre esses, há nove cineastas negros vivos. Ou seja, você tem 2% do conjunto, o que demonstra o quanto essa ausência é profunda. Acho que o primeiro elemento para isso é de base cultural. Desde o início do cinema no Brasil, a produção de cinema está ligada a uma ideia de branqueamento. Há um compromisso estético com esse branqueamento. Na revista Cinearte, uma das revistas sobre o tema que tinham mais influência nos anos 1920, chegou a ser feito um editorial dizendo que não havia motivo para colocar índios e negros nas telas. Por tudo isso você tem, na produção audiovisual brasileira, essa representação dos não brancos, desde o início, como subalternos, ligados à inferioridade social.
O Cinema Novo, movimento cinematográfico brasileiro que ganhou força dos anos 1960, possuía um grupo de realizadores identificados com a esquerda e com um compromisso de discutir temática brasileira. Mesmo naquele cinema, o negro aparecia de maneira estereotipada?
De modo geral, sim. Uma das características do cinema do Nelson Pereira dos Santos é a paixão pela adaptação de grandes obras literárias. O Nelson Pereira foi um dos que mais adaptaram Jorge Amado. O Nelson abraçou esse contexto da negritude, dos mitos, dos orixás, da Bahia e trouxe tudo isso para seus filmes. Portanto, ele se diferenciou um pouco. Na obra do Cacá Diegues também há grandes mitos. Ele vai adaptar a história da Chica da Silva, vai fazer um filme sobre o Zumbi dos Palmares no final dos anos 1980, então ele também descobriu esse filão e entendeu a história dessas epopeias, dessas sagas dos heróis negros. Fora esses que citei, quase todos os outros integrantes do Cinema Novo acabaram, quando muito, abarcando a literatura regionalista, mas dentro de um contexto de representação do homem e da mulher negra nessa literatura. Todos eles não ultrapassaram esse limite e não tiveram um olhar diferenciado.
E em relação às telenovelas?
É curioso que alguma coisa parecida aconteceu também com a telenovela. O melhor exemplo foi Escrava Isaura, que é a adaptação de um romance abolicionista [publicado por Bernardo Guimarães em 1875], em um contexto de luta pela abolição da escravatura e que tem uma personagem quase branqueada, filha de escrava com português, criada para mostrar a loucura da escravidão para a classe média. Foi obra militante naquele período. A telenovela, de 1976, vai adaptar essa obra quase cem anos depois, vai colocar a atriz mais branca do que é no romance. A novela vai se adaptar aos tempos, abraça algumas bandeiras do movimento feminista, mas no tocante à representação negra ela não dá um passo de modernização. Isso também aconteceu no cinema. Em vários momentos do cinema brasileiro pegam-se romances clássicos e para fazer uma leitura da Casa Grande, mantendo os escravos e a favela aquém de qualquer representação que pudesse conturbar a visão do passado.
A televisão é uma das grandes responsáveis por essa perpetuação?
Enquanto nos Estados Unidos, em Hollywood, a indústria do cinema têm um papel fundamental na formação do imaginário do país, a televisão, e a indústria da telenovela têm esse papel no Brasil. O cinema brasileiro há muito tempo deixou de ter esse papel. Nos anos 1940, 1950 e 1960 tinha, mas depois perdeu esse lugar para a televisão como uma espécie de leitura imaginária do presente ou do passado. Essa televisão foi mais, digamos, hegemônica. O Cinema Novo e o cinema brasileiro, apesar dos pesares, têm diversidade na leitura da sociedade. A televisão é meio monolítica e sempre foi cúmplice de certo universo imaginário de representação do Brasil. A gente se representa sempre muito mais branco do que somos. As pessoas fazem plástica para ficar com cara de europeias. A indústria de plástica no Brasil é poderosa no sentido do branqueamento, da transformação dessas pessoas em um perfil mais branco. A televisão e a publicidade tiveram e continuam tendo um papel nisso, ainda que a gente viva um tempo diferente.
Cotas raciais para atores no audiovisual podem ser uma solução?
Eu considero ações necessárias para você reverter isso. Continuamos sendo um país em que esses segmentos que definem a estética da televisão e do cinema ainda têm uma cumplicidade com a ideia de que o Brasil é um exemplo de democracia racial, e que, portanto, não seria preciso se preocupar com isso. Junto dessa ideia, outra coisa muito ruim é o ocultamento de que somos um país profundamente diverso. Aquilo que acho a maior qualidade do Brasil é que somos um país de maioria negra, indígena, você tem um grande segmento populacional com origem japonesa, você teve levas de libaneses... então efetivamente somos um país muito diverso. Essa imposição do politicamente correto é positiva para o país se olhar no espelho e ter orgulho do que é. No entanto, há a predominância dessa coisa colonial. Existem novelas em que a zona sul carioca é retratada como mais branca do que Paris, do que Nova York, Berlim. Ou seja, ainda somos avessos à ideia de que somos um país efetivamente diverso, um mosaico racial. Diante dessa postura tão conservadora e rígida, tomar medidas de peso que forcem a criação de cotas e recursos específicos para isso faz bem ao país. São recursos temporários, mas criam a possibilidade de emergirem talentos que estão por aí, mais atores como Lázaro Ramos, por exemplo.
Na sua opinião, os espaços da negritude em cidades como São Paulo, por exemplo, foram apagados?
São Paulo tem figuras fundamentais para a própria cidade, como Luiz Gama, o pai da advocacia popular, negro que conseguiu levantar recursos para assegurar mais de 600 alforrias de pessoas negras, que foi um grande articulador com a intelectualidade branca, influenciava os jornais. Outro exemplo é o Mario de Andrade, outra das figuras fundamentais na cidade de São Paulo. Ao fazer um cinema negro, nós precisamos ter releituras dessas grandes histórias. São histórias não só de orgulho para o negro, mas também de recompreensão da cidade sobre si mesma, tirando aquela coisa marcada do negro como subalterno, como não intelectual, só como força física. A gente fala da importância do cinema negro para ajudar nessa releitura do imaginário do brasileiro sobre si mesmo, para deixar de ser tão colonizado, de querer fazer de São Paulo ou do Rio de Janeiro uma Paris do século 19 que não existe mais. Os grandes centros mundiais hoje são capitais da diversidade.
Isso teria a ver com uma falta de orgulho racial? Há jogadores de futebol negros que dizem que são brancos, por exemplo.
Isso existe, mas está mudando. A gente vive um momento de consciência negra. Especialmente essa geração que entrou na universidade com cotas está provocando já uma afirmação de orgulho negro. O melhor exemplo é que, no Censo de 2000, o número de brasileiros que se definiam como negros ou pardos era 43% do total. Já no último Censo, de 2010, o número de brasileiros negros e pardos que se definiam como tal foi de 53%. Ou seja, em dez anos, isso aumentou. O que aconteceu foi uma afirmação, um novo olhar sobre si mesmo. Vejo isso com certo otimismo. Apesar de vivermos um momento complicado de radicalismos e em que racistas aparecem nas redes sociais, existe uma reação a isso. Temos elementos estatísticos que mostram uma modernização do imaginário brasileiro. O brasileiro está passando a ter orgulho de ser brasileiro, de ser do jeito que é.
Em termos de temática, você acha que falta abordar as questões complexas das relações entre os negros?
As chagas são muito difíceis de serem abordadas. Entendo essa dificuldade, mas acho que a arte só é poderosa se consegue tocar nisso. Quando ela é muito clean, não funciona. Há, na população negra, séculos de massacre. Há um segmento grande da população negra que tem dificuldade de ser negra, vergonha, uma acomodação e um desejo de escapar da questão da raça, um desejo de que ignorem a cor. Isso, infelizmente, ainda é presente na maior parte da população negra.
Por que isso não aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo, onde havia movimentos como Black is Beautiful, Black Power, entre outros?
Nos Estados Unidos, em determinado momento o conjunto da população negra se deu conta de que, se não tivesse a compreensão de afirmar a beleza e a contribuição para a sociedade, estaria permanentemente nos guetos. Aqui, o padrão português de colonização foi diferente. Os portugueses mandaram homens brancos como estratégia de dominação e a miscigenação foi um elemento estratégico para o poder. Assim foi a forma como o Brasil foi construído. Como movimento de massa, não houve antes do período próximo à escravidão migrações em massa de famílias. A gente ainda tem dificuldade por conta disso. Mesmo entre pessoas negras, existiu uma busca por um branqueamento. Quando você percebe segmentos que são subalternizados evitando a reprodução dentro da própria raça para fugir da subalternidade, esse é um elemento trágico da história. Portanto, a questão da miscigenação é muito complexa ainda. A gente vai ter muitas reflexões no presente e no futuro sobre isso.
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