Postado em 28/10/2016
Um misto de esperança e medo, era o que sentia a família Yamada naquele momento em que seus pés pisaram pela primeira vez no solo da cidade de Registro. O ano era 1913, muitas famílias japonesas chegavam ao Brasil com a esperança de construir um futuro melhor. A maioria das famílias pensava em conseguir dinheiro o bastante para retornar ao Japão e ter uma vida melhor na sua querida "Terra do Sol Nascente". Naquele tempo, a cidade ainda era distrito de Iguape, sua emancipação política e econômica aconteceu apenas anos mais tarde, mais precisamente em 1944, no dia 30 de novembro.
O senhor Yamada trazia esposa e dois filhos, o mais velho de 6 anos e a caçula de 3. O governo brasileiro cumprindo o acordo de imigração com o Japão, havia cedido um lote de terras para cultivo. As terras às margens do caudaloso rio Ribeira de Iguape, eram promissoras para o plantio de arroz.
Apesar da força de vontade, o começo foi difícil, era uma língua tão diferente, o clima, os hábitos, a maneira de se vestir, de comer, as crenças, os valores, nada tinha relação com o estilo de vida oriental mas na dificuldade, a família Yamada se unia cada vez mais.
Com muito trabalho e união, aos poucos foram se adaptando e vendo as coisas melhorarem. No ritmo do progresso, sua família crescia, o pequeno Hiroki trouxe muita alegria ao lar. Era o primeiro filho brasileiro desta família japonesa.
Nos anos 20, a Companhia Ultramarina de Desenvolvimento KKKK (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha) responsável, dentre tantas atividades, pela imigração e colonização japonesa e pelo beneficiamento do arroz que era produzido na região, construiu um prédio com quatro galpões, o Complexo KKKK. O senhor Yamada admirava aquele prédio, onde o seu arroz recebia o tratamento certo e ganhava o mundo pelas correntes do rio Ribeira.
Logo cedo Hiroki aprendeu com os pais os trabalhos no arrozal. Aos 9 anos, era um menino esperto, criativo e danado, sempre encontrava espaço no seu dia para uma boa traquinagem. Como aquela vez em que escondeu-se atrás de uma pilha de sacos de arroz, dentro do KKKK e os seus pais o procuraram por horas.
Mas então veio a guerra, o jovem Hiroki via a tristeza nos olhos dos seus pais, sabia que apesar de não falarem no assunto, algo não ia muito bem. A Companhia Ultramarina fechou, não havia mais escoamento e mercado para o arroz que era produzido.
Foram tempos difíceis, mas apesar de tudo a família Yamada encontrou na produção de chá preto uma maneira de se reinventar. Já não queriam mais partir, o Brasil era agora a sua pátria, e com todo o respeito que tinham pela sua terra natal, era aqui que queriam ficar. Mais uma vez unidos, e recorrendo ao conhecimento que traziam de seus antepassados, superaram todos os obstáculos.
No ano de 1960, o senhor Yamada faleceu vítima de uma forte pneumonia, no ano seguinte sua "okaasan" também partiu. Junto com os irmãos, Hiroki deu continuidade a produção de chá preto artesanal, como era da vontade de seus pais.
Todos os anos a família Yamada homenageia seus antepassados rezando por suas almas no Tooro Nagashi. O evento que é realizado em várias regiões do Japão no mês de julho, acontece em Registro no dia de Finados há mais de 60 anos. É emocionante ver o anoitecer iluminado pelas luzes dos barquinhos que levam os nomes dos entes queridos que se foram.
E o KKKK? Hiroki, viu o prédio se transformar ao longo de tantos anos de história. Quando o lugar abrigou o Museu da Imigração Japonesa, assim como outras famílias, os irmãos Yamada doaram muitos objetos para compor o acervo do Museu, que ajudaria as pessoas a conhecerem melhor a sua cultura e seria uma forma de preservar a memória de sua família.
Hiroki casou-se, teve filhos e netos, e este ano em seu aniversário de 99 anos, no dia 23 de julho, sua neta o trouxe de volta ao KKKK para fazer-lhe uma surpresa. Ao descer as escadas com dificuldade, seus olhos marejavam, pela imensa alegria de ver aquele espaço se reiventando mais uma vez.
- Olha vô que legal! Aqui agora é o Sesc! Vem, vem brincar comigo!
O senhor Hiroki Yamada não vai mais estar aqui para ver a transformação que vai acontecer nos próximos 99 anos da ocupação do Sesc no Complexo KKKK. Mas o importante é que ele estava aqui no primeiro dia, e saiu dançando de felicidade...
"Este texto é uma obra de ficção feita com o intuito de homenagear todas as famílias japonesas do Vale do Ribeira".
Escrito por Elaine Garcia e ilustrado por Sávio Soares.