Postado em 29/11/2016
Entre cliques e revelações, a fotografia é parte inseparável da formação e da interpretação da memória urbana
O que acontece a nossa volta quando estamos imersos no mais corriqueiro dos compromissos, andando por cidades que a um olhar menos atento parecem apresentar o mesmo desenho em movimento, é um grande atrativo para os fotógrafos e suas câmeras ou smartphones.
Arquiteto e fotógrafo com vasta experiência quando o assunto é a relação entre a fotografia e a metrópole – e a constituição da memória urbana –, Cristiano Mascaro afirma que a intimidade entre elas é antiga, faz-se presente desde o surgimento dos primeiros registros instantâneos: “Não por acaso, Niépce (Joseph Nicéphore Niépce, 1765-1833, autor da mais antiga imagem fotográfica documentada), ao dar início a esta grande aventura, abriu a janela de sua casa e fotografou os edifícios que dali podia avistar”.
A partir desse primeiro momento, as cidades, com todas as suas qualidades e defeitos, passaram a atrair os artistas. Italo Calvino, no livro Cidades Invisíveis (Cia. das Letras, 1990), menciona o poder atrativo da urbe, escrevendo que o olhar percorre as ruas como se fossem páginas.
Espetáculo Silencioso
A evolução das cidades e a explosão do espetáculo arquitetônico renova-se em olhares e imagens de maneiras incontáveis. Dessa forma, a cidade de São Paulo surge como um dos cenários desdobrados em séries fotográficas de autores famosos e anônimos. A metrópole se destaca, por exemplo, no trabalho dos modernistas, que entre as décadas de 1950 e 1960 registraram o modo de vida que se anunciava em construções monumentais.
Nesse sentido, a formação da memória também invoca o caráter social de cada período histórico. “No caso dos fotógrafos modernistas – hoje assim identificados –, é certo que participaram da produção de uma imagem renovada para a sociedade urbana”, afirma o arquiteto e historiador Eduardo Augusto Costa. No entanto, informa o reconhecimento de sua importância neste processo se deu tardiamente e, em especial, com os trabalhos, publicações e exposições que vêm sendo realizados desde os anos 1980. “Foi a partir desse período que a fotografia brasileira passou por uma sensível renovação, estabelecendo referências mais sólidas para a fotografia moderna no Brasil. Em outras palavras, a memória que compartilhamos socialmente depende de um processo de decantação, disputas e interesses”, contextualiza Costa, que possui experiência na área de história da arquitetura e do urbanismo, com ênfase em Patrimônio e Memória, além de pós-doutorado em história, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp).
Guerra Diária
O cotidiano turbulento das cidades tomadas pela industrialização rendeu o apelido “selva de pedra”; porém, em algumas situações, a metáfora reflete mais diretamente a realidade. Os fotógrafos que trouxeram para a linha de frente esse drama compõem o movimento da fotografia humanista, originada na França dos anos 1930. “Cartier-Bresson e Robert Capa estavam fotografando greves e passeatas. Logo depois da Segunda Guerra, Capa insistiu em conseguir um visto para fotografar atrás da recém-erguida ‘cortina de ferro’. Em 1947, foi para a União Soviética e trouxe de volta algumas fotos de Moscou”, explica a doutora em história pela Unicamp Erika Zerwes, pesquisadora nas áreas de história da fotografia e cultura visual. “A cidade aparece como um palco para as alegrias e dramas humanos – seja na guerra, seja no cotidiano das classes populares. Dito isso, podemos argumentar, por outro lado, que muitas dessas fotografias carregam uma profunda relação com a memória urbana na medida em que se tornaram icônicas e bastante associadas, na memória coletiva, aos eventos que retrataram.”
No século 21, os registros se multiplicam para além dos cânones fotográficos, fato que na opinião de Costa se reflete nos suportes multiplicadores das imagens, “nos quais elas circulam e, consequentemente, por onde a memória irá se consolidar”. Hoje os suportes não são mais os jornais, revistas ou os salões especializados, como foram para os modernistas. Para ele, é importante considerar outros espaços e forças atuantes para cumprir esse papel.
Exposição de obras de German Lorca leva ao público todo o estranhamento e encanto que o fotógrafo extrai do dia a dia
Até 26 de fevereiro o Sesc Bom Retiro recebe a exposição de um dos expoentes da fotografia moderna brasileira, o paulistano German Lorca. Formado em Ciências Contábeis, alterou sua rota profissional e se envolveu com o registro das imagens no final da década de 1940, ao participar da associação de fotógrafos que viria a renovar as tendências dessa arte, o Foto Cine Clube Bandeirantes (FCCB). Entre seus companheiros estavam Geraldo de Barros e Thomaz Farkas.
German Lorca: Arte Ofício/ Artifício é dividida em núcleos e evidencia as qualidades e o olhar sensível de Lorca, que hoje está com 94 anos de idade.
Eder Chiodetto, curador da exposição, relembra que coube aos fotógrafos modernistas a reconfiguração do estatuto da fotografia, “com o intuito de transformar a linguagem, na virada da década de 1950 para 1960 – sobretudo no contexto de São Paulo –, para que ela desse conta de representar um novo modo de vida que se inaugurava na modernidade”.
Com cerca de 60 imagens reunidas, a mostra apresenta a composição geométrica e o jogo de luz característicos de seu modo de registrar os objetos, cenas e pessoas que atraíam a lente da sua câmera.
Na exposição, vemos desde trabalhos experimentais até os registros feitos para publicidade. Em cores, foram escolhidas 16 imagens inéditas, de um criador que só se aventurou nesse universo colorido a partir dos anos 1970 e acompanhou as mudanças tecnológicas de sua profissão e da cidade na qual vive.
“A repentina verticalização das cidades, os automóveis mais velozes, as grandes avenidas, a arquitetura fundindo o passado e um presente com novas premissas serviram de contexto para que alguns fotógrafos mais iconoclastas, entre eles German Lorca, deixassem de lado a objetividade e ingressassem numa estimulante viagem por transcrever esse novo mundo também pela subjetividade. Eis que surgem as sobreposições de negativos, a solarização e uma valorização da composição tendo o rigor geométrico como baliza”, enfatiza o curador. “A fotografia precisou ampliar seu repertório para dar conta de representar esse novo homem e essa nova paisagem moderna. Lorca foi um dos artistas que empreenderam essa luta, na época pouco reconhecida.”
::