Postado em 29/11/2016
O corpo hoje
Em meio às mudanças proporcionadas pelas tecnologias digitais, os corpos parecem ter sido estendidos eletronicamente, desafiando a própria noção do corpo como algo restrito à pele e ao território geográfico onde estamos inseridos. Em meio a tantos vídeos, fotografias, mensagens e dados que trafegam nas redes digitais, qual é o lugar da experiência corporal no mundo de hoje? É possível pensarmos no corpo como algo individual? Discutem o tema o artista, bailarino e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Danilo Patzdorf e a filósofa, psicoterapeuta e pesquisadora Regina Favre.
por Danilo Patzdorf
É comum ouvirmos em diferentes situações que a tecnologia digital “aproxima quem está longe mas afasta quem está perto”, privilegiando os “contatos a distância” para evitar os “contatos reais”. Nesse sentido, querem responsabilizá-la também pelo sedentarismo de alguns, como se a internet (sob aquela mesma crítica que fizeram ao controle remoto e ao videogame) tornasse as pessoas mais preguiçosas para atividades corporais, relacionamentos pessoais ou deslocamentos físicos para lugares próximos e distantes.
Por outro lado, percebemos a intensificação de movimentações de diversas ordens, como os flash mobs, que agregam milhares de pessoas em torno de uma atividade sem grandes propósitos (Zombie Walk, Pillow Fight etc.), dos quais a cidade de São Paulo participa ativamente; os incontáveis encontros, amizades e namoros iniciados ou mantidos por meio de sites, chats e aplicativos para celular, cada vez mais populares entre nós; as manifestações em 2013 que ficaram conhecidas como “Jornadas de Junho”, que congestionaram as ruas de diferentes cidades brasileiras ou, mais recentemente, as manifestações pró e contra impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016; enfim, situações essas, vale destacar, organizadas direta ou indiretamente por meio das redes digitais e que põem o corpo em constante circulação no espaço físico.
Diante disso, como compreender o corpo hoje para além dessa dicotomia sedentarismo-nomadismo que tenta classificar nossa experiência corporal como uma realidade apartada dos desenvolvimentos tecnológicos? Ora, os avanços da comunicação e da tecnologia digital estão criando “espacialidades digitais” com as quais passamos a experimentar um tipo de “deslocamento informativo” que nos permite perceber, participar e inclusive modificar um contexto distante do nosso corpo físico: o aviso do GPS nos permite perceber a existência de um radar logo à frente, a webcam nos permite participar de uma reunião que acontece em outra cidade e a cirurgia robótica (aquela em que o médico manipula um robô a distância por meio de um joystick) nos permite modificar, operar e curar um corpo enfermo que se encontra em outro país.
Mais do que estendendo eletronicamente nossos corpos, as tecnologias digitais parecem implodir (ou comprimir) a própria noção de espaço ao desterritorializar a experiência corporal, uma vez que nossas sensações não se restringem mais ao perímetro delimitado pela nossa pele ou ao local no qual se encontram nossos corpos. Desse modo, podemos pensar que o corpo, como conceito lapidado pela modernidade, foi um complexo de “uso tópico” (o radical grego topos significa lugar) no duplo sentido que a expressão pode significar: (1) o corpo era aquilo que se localizava sob a pele e (2) o corpo era aquilo que se expressava no espaço tridimensional da física clássica. Contudo, hoje, seria possível ainda delimitar uma topografia única na qual nossos corpos habitam e se expressam?
Enquanto lemos este texto, muito provavelmente nossas mensagens e fotografias circulam pelas chamadas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter) e nossos aplicativos interagem com outros usuários (Whatsapp, Snapchat, Tinder, Grindr), fazendo com que nossos corpos continuem circulando pelas espacialidades digitais sem que precisemos nos movimentar fisicamente para que contatos de diversas qualidades (econômicas, burocráticas, afetivas, sexuais) continuem a se estabelecer. Ou seja, com as redes digitais, nossos corpos continuam em movimento, mesmo quando aparentemente estacionados em frente a um texto. Por isso, nossa experiência corporal na contemporaneidade não pode mais ser compreendida se não levarmos em conta a influência capital das tecnologias digitais sobre o nosso cotidiano.
A comunicação digital, portanto, além de romper com a separação emissor-receptor (afinal, com a internet, tornamo- nos autores e leitores concomitantemente), anula também a dicotomia corpo-tecnologia para romper com a fronteira dentro-fora e centro-periferia que confinava o corpo na topografia de sua pele e na topografia do espaço tridimensional.
Tentando caracterizar a experiência do habitar na contemporaneidade, o sociólogo Massimo Di Felice (em sua obra Paisagens Pós-Urbanas: o Fim da Experiência Urbana e as Formas Comunicativas do Habitar – editora AnnaBlume, 2009) intitulou “atopia” (sem lugar) essas arquiteturas informativas constituídas pelas redes digitais. Usuários do Facebook, do Snapchat ou do Pokemon Go vivenciam diariamente essas espacialidades metaterritoriais (porque acessáveis de qualquer território, desde que haja conexão com a internet) ao interagir com conteúdos de diferentes procedências numa mesma localidade informativa, invisível, incomensurável e, portanto, a-tópica. E se o corpo foi até então o responsável por intervir diretamente no espaço, dada sua condição tópica que congregava a epiderme e o território, o advento e a popularização das redes digitais e dispositivos de conectividade móvel (smartphone, tablet etc.) convocam novos usos “atópicos” do corpo, isto é, para além da nossa pele e para além do território geográfico, visível e material.
O filme Ela (Her, no original), lançado em 2013 e dirigido por Spike Jonze, trata da paixão que Theodore, o personagem principal, passa a sentir por Samantha, um novo sistema operacional de inteligência artificial que desenvolve uma personalidade conforme interage com seu usuário. Para além da potente discussão pós-humana suscitada pela narrativa, o filme retrata a experiência corporal atópica (sem lugar, mas também sem pele) que vivenciamos na nossa atualidade. Conversando continuamente entre si por meio de um pequeno fone de ouvido sem fio, Theodore encontra Samantha onde quer que esteja, desde que conectado às redes digitais. Mas, onde estaria Samantha? No fone de ouvido, no celular, nos satélites ou no ar que separa esses dispositivos? Samantha é um corpo reticular, descentralizado, atópico, capaz de se atualizar em diversos lugares ao mesmo tempo. Em outras palavras, Samantha torna contingente as imposições espaciais para habitar integralmente as múltiplas localidades nas quais é requisitada.
Se para alguns a tecnologia digital está negando o corpo, por outro lado, os exemplos aqui citados deflagram uma radicalização da experiência corporal ao nos lançar em novas dimensões do sentir e da sensibilidade. Seria impossível pensar o corpo na contemporaneidade sem considerar os afetos e sensações estimulados intermitentemente pelos vídeos, fotografias, mensagens e dados que trafegam pelas redes digitais. Quão distante é, de fato, um “namoro à distância”, posto que o celular permanece muito próximo ao corpo e em constante troca de mensagens com o ser enamorado?
Certamente habitamos um tempo de perguntas. Pretender dar uma resposta definitiva para a condição do corpo na atualidade nos colocaria num exercício improdutivo, pois o que é premente em nossa época digital é justamente a heterogênese dos pilares que pareciam estruturar nossa experiência corporal. É nossa própria noção de existência que se vê sacudida pelas inovações repentinamente instauradas pelas tecnologias digitais, exigindo, assim, novos usos e percepções daquilo que um dia chamamos de corpo e que já não é mais capaz de explicar nosso cotidiano. Caso queiramos habitar a realidade que nos interpela, seria útil sempre nos questionarmos: onde estão nossos corpos? A resposta, no entanto, pode soar assombrosa para alguns: em lugar algum. Ou melhor, em lugar qual-quer.
Danilo Patzdorf é artista, bailarino e pesquisador, desenvolvendo pesquisas teóricas e práticas em torno do estatuto do corpo na contemporaneidade. Graduado em artes visuais (ECA-USP), é mestrando do Centro Internacional de Pesquisa Atopos (ECA-USP), sob orientação do prof. Dr. Massimo Di Felice e Bolsista CNPq.
por Regina Favre
Entre o individual e o coletivo
Quando observamos, casualmente, corpos andando pela cidade, podemos nos dar conta da enorme quantidade de conexões e ações que fazem de cada corpo parte de um processo onde corpos se produzem juntamente com os ambientes de que são parte e expressam com suas formas quem são e como lidam com suas vidas. Não é pouco para um lance de olhar. Mas está aí para quem se dispuser a ver.
Nossa cultura visual nos ensina perfeitamente sobre a realidade dos corpos, desde as vidas das elites e celebridades até as vidas em guerras, desastres, migrações, e todos nós sabemos que os corpos nos permitem ver como essas vidas dependem simultaneamente de si e dos jogos de força que controlam os recursos do planeta.
Corpos mostram, todo o tempo, que são feitos de forças biológicas e experiências de vida, estruturadas como carne. Músculos e ossos nos particularizam e nos fazem existir como um corpo sólido e reconhecível, as vísceras processam o ambiente na nossa profundidade secreta, nos propiciando condições de prosseguir. A vida nos aparece como algo muito individual quando vivemos o corpo no âmbito de sua estrutura visível ou de suas necessidades de sobrevivência. Mas seria assim mesmo?
Diferentemente de um passado pouco distante, passamos a viver uma conexão formando uma quase infinita rede mental que experimentamos continuamente. Com a contração do planeta produzida pela velocidade dos meios de comunicação e a acumulação dos acontecimentos que a cibercomunicação tornou ainda mais instantânea e abrangente, cada vez mais estamos imersos nesse processo.
Em tempo real, as mentes pensam sem barreiras entre si, em ondas psíquicas que envolvem sua ação conjunta, seja por meio das redes sociais, da telefonia celular, da informação de todo tipo, das burocracias e tecnologias que nos controlam e regulam. Ondas de sentidos e imagens, estados de espírito, sentimentos e desejos percorrem o planeta. O que podem os corpos nessa condição tão ampla e geral?
Felizmente, podemos enxergar nos corpos sua dimensão perene e vivenciar seu sentido em nossa relação com a vida, lembrando sempre que:
– as mudanças e adaptações que os corpos fazem são moldagens de si, com aquele mesmo corpo feito dos mesmos tecidos que biologicamente se tecem continuamente com os elementos dos ambientes de que aquele corpo é parte;
– corpos se movem, absorvendo esse mundo que está aí, formando a si mesmos em tempo real, visível e invisível, com as mesmas regras que a vida biológica necessita, e sempre necessitou, para se efetuar;
– cada corpo, numa corrente de corpos ininterrupta, canaliza, como sempre canalizou, a vida na biosfera, em linhas ininterruptas de corpos;
– corpos não estão dentro da biosfera, mas são a própria biosfera, e corpos são canais da própria vida buscando se sustentar no planeta.
A arte, hoje, desloca nossa percepção e experiência para esse processo planetário. A ciência, também, com sua enorme divulgação pop, nos permite ler, ver, assistir e absorver essa nova realidade ecológica. Passamos a saber, na carne, que somos parte dessa comunidade biológica que coloniza este planeta. Isso nos comunica uma enorme força.
Entretanto, sabemos, também na carne, que hoje, mais do que nunca, esse poder de colonização planetária que pertence à Vida está concentrado em mãos cada vez mais reduzidas numericamente. A tradição dominante do pensamento ocidental antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico nos fez crer, durante séculos, que a criação inteira estava destinada ao homem europeu, branco, macho, colonizador e proprietário do planeta. Essa divisão leonina de direitos prossegue. Porém, por outro lado, as pressões que sentimos em nossa vida por parte das políticas conservadoras e concentracionistas de poder sobre os recursos do planeta, as redes digitais, a informação generalizada e os movimentos de resistência micropolíticos, culturais e sociais nos fazem, hoje, enxergar, saber e sentir profundamente essa realidade de que somos parte. Isso se tornou inegável.
O corpo vem lutando biologicamente há bilhões de anos para se manter agregado dentro de ambientes os mais adversos. Os ambientes, hoje, lembremos, são as condições físicas, afetivas, tecnológicas, econômicas, informacionais, políticas, de linguagens, valores e sentidos integrados entre si. Quando nos vivenciamos como corpos em processo de permanente produção dentro de ambientes, passamos a enxergar e confiar que temos recursos na nossa herança biológica para interferir nas formas de um destino aparentemente invencível.
Nossa vida no mercado
O mercado, que desde os anos 1970 se tornou mundial e integrado, é o ambiente onde, hoje, os corpos nascem, vivem e morrem. De Nova York ao fundo da África, ecoa seu poder. Mas, diferentemente do poder moral das famílias e das instituições, o mercado não vigia e pune como antes, mas, num contínuo jogo de forças, exerce uma captura das forças formativas nos corpos. O mercado age diretamente sobre a vida nos corpos e sobre a forma que eles tomam para fazer suas dramaturgias, ou seja, sobre as formas particulares de desejar e fazer-se corpo no mundo.
A produção constante de imagem e sentido onde estamos imersos é a própria expressão do mercado. Ele inunda continuamente nosso espaço corporal, agindo por meio de um duplo jogo: a ameaça de exclusão (e desconexão) das redes que formam nossa realidade e a oferta de configurações para nossa forma que constantemente se desfaz sob o efeito da velocidade e da intensidade dessas forças. Diante das ameaças de exclusão que são continuamente mostradas nas mídias (violência, miséria, desastres, destruição, desamparo, políticas sociais etc.), os corpos reagem, como todo e qualquer animal, acionando em si o reflexo do susto e se recolhem, se fecham, se desligam do ambiente e de suas redes, e, muitas vezes, se fragmentam em pânico, como o bicho diante do predador. O reflexo da imitação se desencadeia, imediatamente, e nos faz mimetizar o ambiente. Esse ambiente é o próprio mercado nos oferecendo, como salvação, formas de vida, que aparentemente funcionariam como bordas para nossa desorganização. Fundimos com o ambiente para deixarmos de ser alvo das forças de exclusão. É a vida funcionando como no tempo dos animais.
Mas, quando aprendemos pela experiência como se fazem corporalmente esses reflexos, podemos desenvolver estratégias para desfazê-los, numa prática combinada de músculos e sistema nervoso.
E ao desfazer esses reflexos fatais para a nossa autonomia e diferenciação, desfazemos um enfeitiçamento. Acordamos para nos vivenciar como corpos comuns e passar a gerar os comportamentos necessários para sustentar conexão com as redes próximas e distantes. A rede mundial do mercado, como sabemos, é explorada por uma reduzida rede de poder que corresponde a 1% da população. E nós, os restantes 99%, somos a multidão de corpos comuns. Diferentemente do que tenta e muitas vezes consegue nos convencer, nossa força está exatamente em não sermos especiais. Nossa força está em lutar e amadurecer para a evidência de que a vida se dá em rede e que é possível funcionar como parte. Deter-se sobre a nossa presença física, sua forma e suas conexões, nas diferentes condições que vivenciamos, passa a ser a base de uma vida normal.
A seguir, o próximo passo é identificar-se corporalmente com a forma das ações que produzimos para sustentar quem somos, sintonizando com o sentimento que se desprende daí a ser praticado e cultivado. A realidade corporal passa então a nos guiar, mais e mais, na relação com outros corpos e na criação conjunta de ambientes mais oxigenados – porque reais e presentes. Esse é o pulo do gato.
Regina Favre é filósofa, psicoterapeuta, pesquisadora e professora do corpo subjetivo.
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