Postado em 23/12/2016
por Elisa Saintive
A cidade que nos acolhe é também aquela que nos devora. É preciso descobrir o caminho das pedras todos os dias, redescobrir a cidade e redescobrir a nós mesmos.
Quando saí de São Paulo para trabalhar no Sesc de Santos, minha grande descoberta foi o mar. Não o mar do turista, com seu olhar passageiro, esse eu já conhecia. Era um outro mar, que passava, então, a fazer parte de mim. Caminhava de casa para o Sesc, e eu, paulistana que era, aos poucos me dava conta de que as cidades que convivem com a natureza dão à vida uma dimensão especial, mais humana. Eu tinha, todos os dias, aquele mar à minha frente, a sensação da brisa marinha, o céu azul. Dentre tantas outras, lembro-me de uma experiência, ali, que me marcou muito – foi assistir à peça Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, com direção de Gabriel Villela, encenada na praia. A cena, o ambiente, a música (a peça era musical) e os atores formavam um conjunto maravilhoso, tendo ao fundo o horizonte, o céu aberto, o mar. Era o mar e era o teatro, era o vento, a areia, a incrível sensação de estar ali. E de estar ali com as pessoas de lá, agrupadas nas arquibancadas de madeira sobre a areia, com Romeu aturdido pela beleza e ternura de Julieta, que a experiência para mim alcançou seu estado maior.
Foi uma sensação semelhante àquela que experimentei no Sesc Interlagos. Dos grandes terraços daquela unidade, meu olhar dominava a paisagem, a vista da imensa área verde – os imensos gramados, o bosque das casuarinas, as figueiras, as paineiras, as araucárias e ainda um pouco de mata nativa. Caminhando, eu podia sentir na pele, nas narinas, aquele verde, e fartar-me do céu aberto e das águas suaves (mas já poluídas, infelizmente) da Billings. Um dia, assisti ali à mesma encenação de Romeu e Julieta, desta vez montada no gramado, tendo como fundo, não o mar, mas o Jacaré, a escultura-brinquedo de Márcia Benevento, em cuja língua escorregavam, em movimento contínuo, as crianças. Ali, eu estava em São Paulo, mas ao mesmo tempo não estava. Era outra cidade, outro país, talvez.
São Paulo, mesma, eu vim a reencontrar no Sesc Pompeia, quando fui para lá dirigir a unidade. As duas muito parecidas, difíceis de enfrentar. Na Pompeia, meus olhos só podiam enxergar pedras, tijolos e concreto. Nem verde, nem mar. Não havia para onde fugir. “Decifra-me ou te devoro”, eu parecia ler em cada canto. No seu início, participei da inauguração, quando conheci Lina. Tudo nela me surpreendeu – sua inteligência, sua criatividade, sua perspicácia. Depois da unidade pronta, em 1986, tornou-se um ícone, uma obra-prima. Voltei muitos anos depois. E o que fiz para não ser devorada foi me dedicar apenas a duas coisas. Uma foi animar, com uma intensa programação cultural, os espaços criados pela Lina, os tijolos, as pedras e o concreto que com tanto talento e sensibilidade ela havia ali colocado e recolocado. E me dei conta, fazendo isso, de que podia compensar a falta da natureza – do verde, do céu, do mar – exatamente através do que fazíamos, através da cultura, através da arte. A outra foi buscar recuperar, manter e conservar esses mesmos espaços, por tudo o que eles representam como arquitetura, como memória e como exemplo singular de expressão da cultura brasileira. Nenhuma das duas foi uma tarefa fácil. Custaram muito suor, tempo e dinheiro. Porque se não é fácil manter uma antiga fábrica restaurada, mais difícil ainda é manter sua alma, esse sopro de vida que o Sesc Pompeia trouxe para cidade de São Paulo e continua trazendo para mim mesma.
Elisa Saintive tem graduação em Educação Artística pela FAAP e se aposentou em dezembro de 2016 como gerente do Sesc Pompeia.