Postado em 31/01/2017
Elis Regina conciliou gênio forte e intensidade em interpretações memoráveis na MPB e na vida
A câmera em close, o rosto expressivo. Enquanto a música ganha corpo, é difícil manter o mesmo plano, e a câmera se confunde, parece não entender a performance da cantora que no início da carreira tinha seu nome grafado com duplo L: “Ellis Regina”.
Deixando de boca aberta todos os que a viam cantar, a Pimentinha (apelido originado de seu gênio forte e da natureza desbocada) teve no 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira um momento decisivo. Considerada a canção favorita, Arrastão (de Edu Lobo e Vinicius de Moraes), interpretada por Elis, foi a vencedora. Mais do que o prêmio de 5 milhões de cruzeiros para os compositores, o festival, exibido pela TV Excelsior, no ano de 1965, rendeu à jovem o título de melhor intérprete e escancarou as portas da televisão para músicos brasileiros e sua arte, colocando a MPB em outro patamar.
Carteira assinada
O que se viu na tela em preto e branco teve origem em Porto Alegre, onde Elis nasceu, em 1945. Antes de participar de programas de rádio, quando criança, cantava em casa, sintonizada no repertório da Rádio Nacional. No entanto, o furacão Elis ainda se mostrava tímido. A primeira tentativa de se apresentar em público se deu no programa Clube do Guri (na Rádio Farroupilha), mas a menina, com 7 anos na época, desistiu sem sequer aparecer no ensaio. A timidez não fez frente à persistência, e o retorno ao programa se deu cinco anos depois da quase estreia. A canção escolhida foi Lábios de Mel, sucesso na voz de Angela Maria. Após a bem-sucedida apresentação, um ano depois, em 1958, Elis foi convidada pelo proprietário da rádio concorrente da Farroupilha, a Rádio Gaúcha, para fazer parte do elenco de artistas da casa. Assim, aos 13 anos de idade, Elis já recebia um salário de 6 mil cruzeiros por mês.
De vento em popa
Aposta do diretor artístico da gravadora Continental, Wilson Rodrigues, que cruzava o Brasil para descobrir novos talentos, Elis caiu na mira do incipiente show business carioca e viajou para a cidade maravilhosa para gravar seu primeiro LP, aos 15 anos. Viva a Brotolândia foi lançado em 1961, e a garota foi repaginada pelo irreverente Carlos Imperial, figura de respeito, produtor artístico responsável por dar aquela mãozinha na carreira de Roberto Carlos, Wilson Simonal, Tim Maia.
O disco atraiu as atenções para Elis em outras regiões brasileiras. A jovem lançaria quatro discos entre 1961 e 1963, num ritmo frenético, antes da consagração que a vitória no Festival iria lhe trazer. Os anos 1960 proporcionariam, ainda, a participação em mais cinco edições de festivais televisivos.
Em movimento
A famosa “desdobrada” – recurso usado pelos dançarinos em performances da Broadway – foi sugerida pelo coreógrafo norte-americano Lennie Dale e acatada com precisão por Elis, tornando-se sua marca registrada. Por vezes criticada pelo excesso de dramaticidade de sua interpretação, Elis continuou a cantar e a gesticular, os braços em compasso com os arranjos, e a soltar a voz para cativar ainda mais o público.
O cruzamento de referências musicais produzido por Elis lhe rendeu bastante sucesso, mas também um choque com outras práticas musicais, consideradas então mais modernas, na avaliação da doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Andrea Vizzotto. “Digo isso, sobretudo, em relação aos turbulentos e férteis anos 1960 e ao antagonismo com o Tropicalismo, movimento considerado pela crítica especializada e certa intelectualidade como moderno e vanguardista, que acabou levando a MPB de Elis Regina e Chico Buarque, entre outros, a ser considerada ultrapassada no final da década”, afirma Andrea. “Seu LP Dois na Bossa (1965), em parceria com Jair Rodrigues – a dupla também comandou o programa O Fino da Bossa, entre 1965 e 1968, na TV Record –, obteve excelente desempenho em vendagens de discos. Elis esteve na televisão, com programas regulares, até 1972.”
Segundo a especialista, entre os desafios enfrentados por Elis durante a década seguinte, estava o de tentar conciliar prestígio intelectual e da crítica especializada com popularidade. “É difícil para vários artistas conseguir manter-se com popularidade perante o surgimento frequente de novos talentos”, observa Andrea. “Além disso, uma artista de grande popularidade nem sempre gozava de prestígio perante certos segmentos da crítica e da intelectualidade, sobretudo naquele momento vivido pelo Brasil, de ditadura militar e de intensas discussões políticas.”
Parcerias, números e dilemas
Não passava impune o gênio forte de Elis, que parecia conciliar cada trovão na personalidade com uma gargalhada desconcertante, como está registrado no disco Elis & Tom (1974), na faixa Águas de Março. Há de se considerar que Elis desbravou muito jovem o universo artístico em transformação nas décadas de 1960 e 1970, bem difíceis para a afirmação feminina. Sem esconder o que pensava, as palavras resvalavam nos amigos, namorados e desafetos. Com a cantora Nara Leão travou um disse me disse pela imprensa nos anos 1960, quando disputavam a preferência do público – já que o título de melhor cantora do país era almejado por Elis –, afirmando que Nara cantava muito mal. Referindo-se à situação política em 1969, chegou a dizer o Brasil era governado por um bando de gorilas.
Autora do livro Em Busca do Falso Brilhante (Intermeios, 2015), Rafaela Lunardi explica que as citadas contradições da carreira de Elis devem ser vistas como impasses e dilemas pelos quais a própria MPB passou, em 1960 e 1970. “Nesse período, Elis sempre foi uma cantora de destaque, pois, ao lado de Chico Buarque, constou como grande vendedora de discos, segundo os dados do Ibope. Passou por todos os processos da legitimação daquilo que na década de 1960 surgiu como a MMPB (Moderna Música Popular Brasileira)”, acrescenta. “Em contraposição à música da Jovem Guarda, a MMPB mostrava preocupações sociais, dentro de um projeto de engajamento político-artístico denominado de nacional-popular, e estava ligada a artistas dissidentes da primeira fase da Bossa Nova, como o Vinicius de Moraes e o Carlos Lira, por exemplo.”
Elis liderou, em 1967, ao lado de Geraldo Vandré e de Gilberto Gil, a “passeata contra as guitarras elétricas”, como representante da MMPB (que na segunda metade dos anos de 1960 perdeu o primeiro ‘M’ e se opôs ao Tropicalismo). “No início da década de 1970, seguindo as mudanças dentro da própria MPB, abriu-se a novos estilos musicais, como o blues e o pop-rock, gravando até Beatles. Ao final da primeira metade da década de 1970, flertou com a Bossa Nova procurando modificar suas performances em palco e seu estilo de cantar, em busca de formas mais contidas de se apresentar”, continua Rafaela. “Apesar da popularidade, no decorrer dos anos de 1960 e 1970, procurou se adequar aos estilos considerados modernos no momento, pois precisava conquistar o reconhecimento da crítica especializada, que prestigiava seu talento, mas a ridicularizava pelos excessos performáticos (de corpo e de voz) na década de 1960. Por isso, ela se tornou a síntese do processo de legitimação da MPB.”
Elis morreu aos 36 anos de idade, em 1982, em circunstâncias nebulosas na época. Encontrada sem vida no apartamento onde morava em São Paulo, o laudo médico apontou como causa da morte a combinação perigosa de álcool e cocaína. A tragédia provocou comoção nacional e o velório aconteceu no Teatro Bandeirantes, palco de sua temporada mais bem-sucedida, o show Falso Brilhante.
Acumulando adjetivos e feitos invejáveis, Elis não jogou muitas fichas na carreira internacional, mas chegou a se apresentar no consagrado Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979. Já no Brasil, ela reinou. O show Falso Brilhante (1976) permaneceu 14 meses em cartaz, somando 257 apresentações e público de 280 mil pessoas, com bilheteria estimada em 8 bilhões de cruzeiros. Criadora de performances grandiosas, Elis permanece na memória. No final de 2016, a cinebiografia Elis (Hugo Prata) somava mais de 500 mil espectadores, arrebatando os cinéfilos saudosos e os jovens fãs da cantora, que não a viram em seu auge.
Estar no repertório de uma das maiores intérpretes da música brasileira era garantia de sucesso
De acordo com Julio Maria, autor da biografia Nada Será Como Antes (Editora Master Books, 2015), ter uma canção interpretada por Elis era como tirar a sorte grande. “Ser gravado por Elis Regina era o céu para compositores que, depois de jogados ao alto pela voz da madrinha, estavam prontos para colher os louros lançando as mesmas composições em seus próprios discos”, afirma. “Mesmo artistas que jamais seriam gravados por ela fizeram suas composições darem saltos de qualidade pela simples possibilidade de um dia serem descobertos.”
No livro, o jornalista cita “peregrinos que se sentaram no sofá de Elis”, na tentativa de serem gravados. Hyldon, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, João Donato, entre outros. Já Andrea Vizzotto, doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca a inteligência musical da intérprete para a escolha do repertório. De Renato Teixeira, fez muito sucesso a canção Romaria, gravada no LP Elis, de 1977. Enquanto de Belchior, a música Como Nossos Pais, um rock de estilo bem diverso de Romaria, quase um folk. “Em relação a João Bosco (foto) e Aldir Blanc, há que se ressaltar que ela interpretou várias obras deles ao longo de sua trajetória a partir da década de 1970. É sempre lembrada a canção O Bêbado e a Equilibrista, que se tornou símbolo da luta pela anistia e retorno da democracia. Outro imenso sucesso da mesma dupla de autores foi o bolero Dois pra Lá, Dois pra Cá”.
Carreira de Elis Regina foi tema de atividade no Centro de Pesquisa e Formação
O Centro de Pesquisa e Formação (CPF) recebeu no mês de janeiro a palestra Performance e Projeto Autoral na Trajetória de Elis Regina, ministrada pela doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Em Busca do Falso Brilhante (Intermeios, 2015), Rafaela Lunardi.
Os participantes acompanharam uma análise em perspectiva da trajetória de Elis, artista que se consagrou como grande sucesso nas décadas de 1960 e 1970 e marcou a memória de toda uma geração.
A atividade fez parte do calendário da programação de 2017 do Centro de Pesquisa e Formação, unidade voltada à reflexão crítica e à produção de conhecimentos nos campos da educação, arte, gestão e mediação culturais.
Além dos cursos, há atividades sobre vários temas do conhecimento, como o Cine Debate, que, após a exibição do filme, traz o diretor para uma conversa com o público sobre a obra. Para todas as atividades (gratuitas ou pagas) é preciso se inscrever nas unidades do Sesc ou no site do CPF.
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