Postado em 07/03/2017
A Isabel morreu. O celular toca em meio à gravação do último vídeo da nossa entrevista com a artista plástica Vânia Mignone e, ao ver que é de casa, ela pede um tanto sem jeito: “Posso atender? É rapidinho...”. Como recusar diante de tamanha delicadeza? E não delicadeza apenas no pedido, mas no trato. No trato com a gente e no trato com a arte. Delicadeza, aliás, sempre associada a muita bravura.
“Ah, que tristeza. Mas fica tranquila que logo estou aí e já resolvo. Não tem o que fazer, só lamentar”, falou ao telefone. Ao desligar, seu semblante anunciava certa consternação, e logo emendou a triste notícia: “Nossa cachorrinha morreu. A Isabel. Quinze anos com a gente, acompanhou quase toda minha vida de artista. É triste. Preciso ir pra casa resolver isso... Vamos gravar esse último para eu poder ir?”.
Esse final de entrevista mostra bem o que é Vânia na arte, essa mistura de delicadeza e bravura, de rústico e contemporâneo, de colorir o som, de publicidade com artes plásticas e artes plásticas com publicidade. Ela grita. Sua arte grita... Literalmente!
Vânia Mignone tem 49 anos, é nascida, criada e ainda moradora de Campinas (SP), mas sua vida de artista se faz mesmo em São Paulo, principalmente na galeria Casa Triângulo, onde seus trabalhos são expostos e vendidos há exatos 20 anos. E é também onde ela nos recebeu para contar mais sobre sua vida e sua arte, se é que dá para desassociar essas coisas.
Publicitária-artista ou artista-publicitária?
Desenhando para valer desde os 13 anos, Vânia revela que viu na brincadeira de criança uma chance de se profissionalizar. “As pessoas me falavam para eu ir para a publicidade, porque poderia usar meu dom do desenho para criação. E eu fui...”, lembra ela, à medida que forma uma cara de certo desgosto.
“E essa cara...”, intervenho.
“Nossa, que arrependimento. Não me encaixo naquilo, nunca poderia dar certo: produzir sob encomenda, com prazos apertados, sem liberdade criativa... não dá!”, decreta ela.
Mas, Vânia Mignone tem muito da publicidade presente na sua arte. A escolha das cores, os desenhos com contornos bem definidos, a escolha de planos, o material que usa e, principalmente, o slogan. Sim, quase todas as suas obras têm slogan. São frases que compõem a tela, muitas vezes uma palavra apenas, mas que a define, cria contexto, gera significado.
“Essa coisa das palavras nas obras foi muito natural. Hoje, refletindo, vejo que deve ter vindo sim do meu estudo em publicidade. Mesmo que trabalhar com aquilo não fosse da minha personalidade, aprendi muitas coisas e há muitos traços disso nas minhas obras, com certeza”.
Acertou na segunda
À medida que percebeu não querer trabalhar com a publicidade, Vânia decidiu então fazer uma segunda graduação. Agora, de fato artes plásticas. “Pensei: vou ser artista!”.
Entretanto, o caminho novamente não foi fácil e dúvidas surgiram. “Eu desenhava muito bem. Fazia realismo e ia bem; sombras, ia bem; paisagem, ia bem... Tudo ficava muito bonito. Mas só. Não tinha cara, não tinha alma, não tinha identidade. Eram só desenhos bonitos. E eu comecei a me preocupar”, relembra.
“Cheguei a trancar a faculdade por um tempo, mas quando voltei fui fazer uns trabalhos com xilogravura e me encontrei. Era um processo muito rústico, penoso, desde a forma do desenho na madeira, a escolha das cores em cada placa até o resultado final no papel, era muito dificultoso. E isso me mostrou algumas coisas. Eu fui mudando o processo, adaptando para o meu estilo. Depois, quando saí da xilogravura, levei muitas técnicas para minha arte no papel, assim como também fiz com a colagem”, completa.
Para ela, hoje seu trabalho é uma miscelânea de técnicas distintas entre si, mas que foram essenciais para que ela encontrasse uma identidade. Neste vídeo abaixo, Vânia Mignone explica como usa técnicas da xilogravura, recorte e colagem, pintura em madeira e até suas frases nas obras.
Como todo artista, Vânia tem um processo criativo muito peculiar. Como ela mesma define, os “traumas da publicidade” guiaram sua alma de artista. “Não faço nada sob encomenda. Nada. Para ninguém. Nem para mim mesma!”, exclama.
“Quando eu tenho alguma ideia e sento para desenvolver, 99% das vezes o papel acaba no lixo. Eu tenho que sentar sem nada na cabeça, sem pretensão alguma, e deixar a coisa fluir. As vezes começa por um rosto, as vezes por uma linha de horizonte, as vez pela cor de fundo e algumas vezes até pelas palavras, pela frase. Não tem roteiro. É simples assim, eu sento e desenho o que sinto na hora”, descreve a artista.
Com heranças da publicidade e da própria xilogravura, prefere desenhar e pintar sobre madeira ou papel. “Tenho pavor à tela. Aquela coisa mole, se mexendo, sem dar firmeza. Já tentei, não rolou. Mas, é algo meu, que não dá certo para o meu estilo”, enfatiza.
Por isso, Vânia confessa ter dificuldade em definir sua obra. “Chamo meu trabalho de pintura para facilitar o entendimento, mas diante de todo meu processo, minha proposta e os materiais que uso, ele seria mesmo uma espécie de placa, uma sinalização. Toda obra quer dizer alguma coisa, mas a minha na maioria das vezes fala mesmo, está escrito. Geralmente em caixa alta. Ela grita”, conclui.
Em cartaz
Com pouco mais de 20 anos na carreira de artista plástica, Vânia Mignone diz que somente nestes últimos conseguiu se sustentar com as obras que produz. “Por muito tempo eu tive que dar aulas para complementar a renda e conseguir viver, mas agora está dando certo e eu tenho mais tempo para criar”.
Para a artista, a galeria que a representa foi fundamental nesse processo. “Assim que me formei em artes plásticas consegui um contrato e estou com eles há 20 anos. Sem a galeria eu não seria vista, porque mesmo Campinas sendo muito perto de São Paulo, não tem esse tipo de espaço, essa visibilidade, esse network e apresentação em outros centros que eles fazem e eu não gosto e nem tenho aptidão para fazer. Então, se não fosse a galeria eu seria uma artista muda”, analisa.
FestA!
Vânia Mignone fez parte dos artistas e profissionais que participam da primeira edição do FestA! – Festival de Aprender, promovido pelo Sesc em todas a unidades do Estado de São Paulo. Ela ministrou em Presidente Prudente a oficina Desenho como forma de expressão contemporânea.
Em 2017, a artista ainda exibiu, também no Sesc Thermas de Presidente Prudente, a instalação EU PODERIA FICAR QUIETA MAS NÃO VOU, que novamente uniu seus lados de artista e publicitária numa exposição que utilizou o outdoor como meio. “Caixa alta, outdoor, cores fortes, contornos definidos, figuras grandes em primeiro plano... Vários recursos publicitários foram utilizados neste trabalho, mas não para vender nada, nem a mim, nem a meu trabalho e nem ao Sesc. Só estamos falando de arte”, explica.
(Texto, fotos e vídeo: Thiago Ferri)