Postado em 30/03/2017
Conto inédito
Ilustração: Marcos Garuti
Saí para a rua e fui andando zumbisticamente em direção ao bar, como venho sistematicamente fazendo todas as noites da minha vida desprovida de sentido. Não é que minha vida não tenha exatamente um sentido. Eu só não encontrei ainda, mas continuo acreditando que a qualquer momento serei atingido por um raio de luz como John Belushi no filme dos Blues Brothers e nessa hora serei bombardeado por um sentimento de compreensão universal e tudo passará magicamente a fazer sentido. Estava eu refletindo sobre tais inquietações que perturbam minha existência provisoriamente desprovida de sentido quando entrei no bar e a vi ali bebendo aquela Heineken, e imediatamente pensei:
“O que uma mulher como essa tá fazendo em um lugar como esse?”
E bebendo Heineken?
Eu não deveria pensar muito. Pensar sempre me meteu em confusão. Mas de vez em quando me sinto tentado a exercitar os meus neurônios bêbados e coloco eles pra correr na esteira da sala de ginástica inativa do meu cérebro. Então, quando a vi, imediatamente comecei a prodigiosamente elucubrar a respeito de sua existência com certeza muito mais repleta de sentido que a minha. Ela parece uma daquelas garotas que entregam prêmios em programas de televisão, aquelas que os apresentadores chamam de “assistentes de palco”, tão ligados? Que levam o microfone para as pessoas na plateia responderem perguntas. E elas são incontestavelmente lindas e estão sempre sorrindo com seus dentes perfeitos e suas bocas perfeitas e modeladas por algum hefesto de bocas femininas. Então, eu cheguei para ela e falei:
“O que uma garota como você tá fazendo em um lugar como esse? Você parece uma dessas garotas que apresentam programas em tardes de domingo e que detêm os melhores índices de audiência e que estão sempre sorrindo com seus dentes perfeitos e suas bocas perfeitas e...”
Bom, aí ela me mandou calar a boca e me pediu que eu lhe pagasse uma bebida.
“Eu sugiro que você cale a boca e me pague uma bebida.”
Eu pedi logo um screw driver, que é bebida pra colocar caminhoneiro para fora da estrada. Ela ficou olhando para a bebida como se perguntasse que substância deplorável era aquela.
“É suco de laranja com vodka. Mulheres gostam de vodka.”
Ela replicou impiedosamente:
“Você não entende nada de mulher.”
Bom, ela estava certa. Mas eu estava tentando. Ela empurrou o screw driver pra mim e voltou a dar atenção para sua Heineken. Eu continuava pensando o que uma mulher como aquela estava fazendo num lugar como aquele... e bebendo Heineken.
Acho que ela era do tipo que lia pensamento. Então ela falou:
“É um lugar bom pra beber como qualquer outro e Heineken é uma cerveja um pouco melhor que as outras.”
Eu conheço lugares bem melhores. Eu só pensei, eu não falei. Meu poder aquisitivo é que não me permitia beber em outros lugares.
“Bom, eu tenho que te dizer. Não tenho mais nada. Nem dinheiro, nem plano de saúde, nem um bilhete de loteria, nada. Eu gastei meu último dinheiro nessa substancia deplorável também conhecida por screw driver porque eu achei que poderia impressioná-la. Mas você não ficou nem um pouco impressionada. Aliás, muito pelo contrário. Então, vou ter que beber esse deplorável drink. E logo eu que odeio drinks.”
E eu comecei a beber e até que não achei tão ruim. O suco de laranja atrapalhava um pouco o sabor da vodka, mas não era tão ruim. Então ela jogou um dinheiro no balcão.
“Vem comigo.”
Eu que não tinha mais nada, nem um passe de metrô, um ingresso do Playcenter ou sequer uma entrada pro Beto Carrero World, segui aquela mulher bebendo o meu indigesto screw driver num copo descartável até uma loja de conveniência. Uma dessas que ainda permanecem 24 horas milagrosamente abertas. E ela pegou logo uma garrafa de Red Label. Eu fiquei com vontade de dizer para ela que Red Label não era o meu whisky preferido enquanto olhava com cupidez para um cativante Jack Daniels que os mais puristas insistem em afirmar que não se trata de whisky e sim de bourbon, mas tenho certeza que ela ia achar que eu estava abusando. Então eu deixei quieto. Ela pagou pelo Red Label e foi até o reservado que ela chamou graciosamente de toalete. Ela era dessas mulheres que iam até o toalete. Fiquei ali olhando essa mulher incrível e inacreditável se dirigindo até o sanitário da loja de conveniência. O atendente ficou olhando pra mim como se perguntasse o que uma mulher daquelas estava fazendo com um sujeito como eu. Olhei para ele e esclareci:
“Muitas opções e alguma curiosidade mórbida”.
Ele sorriu compreensivo. Fiquei olhando com volúpia os salgadinhos de queijo da Cheetos. Só aprecio e aceito os originais. Ela voltou e um frescor de deslumbramento tomou conta do pequeno espaço da loja de conveniência. Ela sorriu e se dirigiu até a porta. Peguei a garrafa e continuei atrás dela andando no meio da rua. E eu já tinha matado o screw driver e estava com sede. E eu fui atrás dela pensando “amanhã é feriado”, como se houvesse alguma diferença para um sujeito desqualificado e fora do mercado como eu sempre fui. Eu não tinha emprego, eu não tinha pátria, eu não tinha religião e não tinha dinheiro para um Jack Daniels ou qualquer scotch que merecesse a denominação de whisky. Eu não tinha sequer um bilhete único no bolso. Por isso eu seguia aquela mulher e aquela garrafa de Red Label. Ela sacou um molho de chaves da bolsa, abriu uma porta e de repente eu estava lá naquela casa. Coloquei a garrafa de Red sobre a mesa e ela foi ao banheiro. Ela não pediu licença para ir ao banheiro. Aquela mulher não tinha a mínima educação. Então eu me senti à vontade para abrir a garrafa de Red e começar a beber. Fiquei olhando a decoração. Tudo muito vintage, despretensiosamente “muderno”. Um pôster emoldurado do David Bowie, aquele que é a capa do Aladdin Sane que ele tá de olhos fechados e com um raio pintado no rosto, alguns badulaques adquiridos em antiquários e móveis que alternavam decadência e modernidade. Ela voltou do banheiro e me viu sentado confortavelmente em seu sofá bebendo uma dose de Red com as pernas displicentemente cruzadas me sentindo o sujeito importante e cheio de classe que evidentemente eu sabia que não era. Mas, naquele momento, eu era o Eddie Murphy em Um príncipe em Nova York. Eu fiquei olhando para ela e pensei:
“Essa mulher é capaz de absorver todo o inverno com sua presença incendiária.”
Eu só pensei. Eu não falei. Se eu tivesse falado tal estultice, ela ia me achar um tremendo babaca. Mas ela já me achava um tremendo babaca. Acho que eu devia ter falado. Não havia mais como cair no seu conceito. Ela sentou do outro lado da sala a uma distância relativamente segura. Ela não me beijou nem fez qualquer menção de uma aproximação que pudesse provocar suspeitas de qualquer possível intimidade em cinco vidas futuras. Ela nem sequer sorriu para mim. Ela só me olhou com nítido e franco desinteresse e perguntou:
“O que você tá pensando?”
Eu não sabia o que responder. Eu não estava pensando em absolutamente nada. Eu só estava admirando o jeito classudo que ela cruzava as pernas. Então eu matei teatralmente a dose de Red e blefei cheio de convicção como um jogador de poker canastrão num buraco sórdido de um cassino em Montevidéu:
“Eu tava aqui pensando o que uma mulher como você tá fazendo num lugar como esse?”
*“Sweetheart like you” é uma das mais belas músicas de Bob Dylan e está no disco Infidels.
Mário Bortolotto é escritor, dramaturgo, ator e diretor. Entre outros livros, publicou Esse Tal de Amor e Outros Sentimentos Cruéis (Reformatório, 2015) e DJ – Canções para Tocar no Inferno (Barcarolla, 2010).
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