Postado em 29/06/2017
Para Lia Rodrigues, a dança estimula o diálogo entre as diversas formas de expressão e ajuda a apliar o universo cultural de quem a pratica
Foto: Sammi Landweer
Referência da dança contemporânea brasileira no exterior, Lia Rodrigues é incansável quando se trata de colocar em prática suas reflexões sobre a arte no Brasil. Algo que, para a coreógrafa, é um “processo contínuo de afirmação, investimento e resistência”. Lia está nesse caminho de resistência desde os anos 1970, quando começou sua trajetória profissional como bailarina na cidade de São Paulo. De lá para cá, segue realizando trabalhos que privilegiam a atuação coletiva, o “trabalhar junto com”, como costuma dizer. Nesta conversa com a Revista E, Lia relembra o início na dança contemporânea, sua experiência mais do que viva no complexo da Maré, onde está sua companhia de dança, além de vivências em outros países.
EM RESPEITO AO PÚBLICO
Sou coreógrafa e comecei minha vida profissional como bailarina, em São Paulo, na década de 1970. Em 1974, entrei no curso de História da Universidade de São Paulo, com 17 anos. A ditadura militar estava em um de seus momentos mais duros e eu vinha de experiências bastante libertárias em escolas consideradas fora dos padrões da época. Entre 1974 e 1977, pisei em dois territórios que viviam quase completamente separados: a prática da política estudantil e a experimentação de uma nova forma de estar no mundo, na transformação dos padrões de comportamento, aquilo que se convencionou chamar de contracultura. A partir de 1977, fui experimentando técnicas diferentes de dança moderna e contemporânea e nesse mesmo ano criei com outras seis bailarinas o Grupo Andança, uma das muitas companhias de dança independentes que nasceram nesse período. Também participava de encontros sobre políticas públicas e mobilizações. Em 1978, discutíamos a importância da formação de público e políticas de sustentabilidade e vejo que de alguma forma estou lidando ainda hoje com as mesmas questões. Sem dúvida as minhas ações se modificaram, as estratégias, os lugares… mas as preocupações são muito parecidas. Todas essas experiências tão diversas foram decisivas para a minha escolha em desviar o desejo de estudar antropologia para me dedicar totalmente à dança. Entre 1980 e 1982, fui bailarina da companhia de Maguy Marin, na França, participando da criação de May B., sobre a obra de Samuel Beckett. De volta ao Brasil, em 1990 criei minha companhia.
Sempre esteve presente em mim a reflexão sobre a questão do público: como ampliá-lo para espetáculos de dança contemporânea? Sabia que era preciso diversificar esse público, que era quase exclusivamente formado por pessoas da Zona Sul e do Centro do Rio de Janeiro. Era preciso criar, inventar uma forma de estimular o diálogo entre o que faziam os artistas de dança contemporânea e pessoas de outras partes da cidade. E foi em 2003, por intermédio da professora, dramaturga e crítica de dança Silvia Soter, com quem trabalho desde 2002, que me aproximei das Redes de Desenvolvimento da Maré. Criada e dirigida por moradores e ex-moradores do bairro, ela tem como principal foco a realização de projetos dedicados a interferir na trajetória socioeducacional e cultural dos moradores de espaços populares. A Maré é uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, com mais de 140.000 habitantes, e é marcada por uma série de fronteiras, simbólicas e geográficas. Assim nasceu a ideia do Centro de Artes da Maré, um projeto pensado e desenvolvido pela Eliana Souza Silva, uma das diretoras das Redes, pela Silvia Soter e por mim. Propomos que criação e produção artística caminhem associadas à ideia de investimento social, contribuindo para a ampliação do universo cultural para residentes da Maré e de outras comunidades. Em 2012 inauguramos a Escola Livre de Dança da Maré, que já conta com mais de 300 alunos, além de um grupo de jovens que faz uma formação continuada em dança vinculada ao processo criativo da companhia.
TRABALHO EM CONJUNTO
No meu cotidiano, estou em contato com os artistas da minha companhia de dança e também com os alunos da nossa Escola de Dança, especialmente com o núcleo de formação continuada. Esses encontros me ajudam a refletir sobre o que seria uma formação para um artista da dança. O lugar onde estamos sem dúvida está inscrito no nosso corpo e na maneira de nos movermos. São experiências estéticas impregnadas do encontro da Companhia com a Maré. Estou lá há 13 anos. Para mim é muito importante “trabalhar junto com”. Gosto da expressão “a gente tem que outrar”. Temos que virar o outro, olhando para a diferença, e achar uma coisa que às vezes não combina, mas não faz mal, a gente está junto mesmo sem combinar, não precisa ser igual. Meu encontro com a Maré é também assim.
A favela não é apenas o lugar da violência e da pobreza. São espaços ricos em diversidade de manifestações culturais e artísticas, com um comércio efervescente, e é o lugar de moradia e de vida de milhões de brasileiros. Para mim, o ato artístico não pode ser limitado à criação de uma obra de arte. E é no Centro de Artes da Maré onde faço minhas criações, penso a minha profissão e o meu lugar no mundo. Nos tempos em que muros são construídos e territórios são ferozmente defendidos e demarcados, propomos fazer o movimento inverso e descobrir oportunidades de partilha, diálogo e criação.
Temos um árduo trabalho no Brasil. Nós, artistas, compartilhamos a imprevisibilidade dos recursos para a manutenção de nossas atividades, e cada um de nós procura estratégias diferentes para continuar criando. Nesses 27 anos, a Companhia trabalhou de maneiras bem diversas: sem nenhum recurso, com dinheiro público, com recursos pessoais, com os cachês de nossas apresentações no Brasil e no exterior, com as coproduções de países da Europa, com parcerias nacionais e internacionais. Até hoje essas formas de sobreviver se alternam ou se complementam. Posso dizer que fazer arte no Brasil é um processo contínuo de afirmação, investimento e resistência.
:: @sescrevistae | facebook, twitter, instagram