Postado em 29/06/2017
Todo dia eu era levado pela mãe à escola, alterando um pouco do seu caminho para o trabalho, e resgatado pelo vô, a pé, num trajeto repleto de confabulações por entre as interferências da cidade.
O caminho da volta da escola sempre rendia histórias e projetos para executar na oficina do quintal do vô. O pequeno quarto com ferramentas, sem janelas, um tanto escuro, mas com uma porta protegida por um telhado, servia como ateliê. Nele, havia uma mesa de madeira que fazia às vezes de bancada para suporte das ferramentas usadas nas construções. Nesse espaço, passavam tardes infindáveis, horas incomensuráveis para materializar ou tentar materializar algo entre cortes de madeira, junções com pregos, plantios e outras coisas inventadas. Dessas criações, muitas não saíam da vontade, da cabeça. Elas existiam sem final ou, às vezes, nem chegavam a acontecer. Elas serviam como possível encontro com o vô, para a conversa, para mais confabulações. Para estarmos juntos, inventávamos tecnologias, ou melhor, modos de fazer, os mais diversos possíveis.
A oficina do vô fazia parte de um lindo e frondoso quintal, palco de inúmeras fantasias, descobertas, construções, realizações. Lugar de fazer arte! Lá comecei a usar pequenas coisas em processos de junção, colagem, fusão, associação que me fez querer ser artista. Naquele espaço, cabia um mundo, ou vários, já que sempre algo novo surgia, inventado em meio a uma nova história entre os pés de frutas e uma hortinha, cultivada com muita habilidade.
O quintal era um lugar onde se ativava a imaginação e o ímpeto para construir coisas diferentes com as ferramentas da pequena oficina do vô. Nele tinha até uma bananeira, cujo pé passou despercebido até que surgissem os frutos. Certa vez, fomos retirar o cacho de bananas, ação conduzida pelo vô que, conhecedor de algumas tecnologias de plantio de sua vida na roça, o fez de tal maneira que pude aprender com ele a conduzir o madurar, tendo as frutas por mais tempo para nosso consumo.
Entre tantas invenções realizadas naquele quintal estava a caixa, um baú onde tudo poderia ser guardado. Uma espécie de sacola do Gato Félix. A construção da caixa se deu após um pedido ao vô, que aceitou de imediato, pois sabia que a feitura renderia um bom tempo de troca de aprendizados. Do acordo veio a busca de tábuas. Todo o quintal foi percorrido e assim fizemos um catado de pedaços aqui e acolá. Nessa catança, entre um pedaço e outro de material, sempre algo novo me punha a desbravar. Durante a busca, inventaram-se alguns vales, lagos e até mares para navegar e encontrar povos. Entre um movimento inventivo e outro, materiais totalmente díspares juntaram-se. A caixa estava pronta..., um pouco torta, se pensada a importância dos ângulos retos; a caixa era o lugar de raridades eleitas ao longo das buscas. Uma espécie de computador que processava minhas descobertas e guardava as coisas raras. Ela era levada de um lado para outro para recolher tudo aquilo que importava: histórias, coisas, sensações. Aquela caixa era uma ferramenta que disparava o processo de inventar uma linguagem minha.
O que importava naquele tempo de minha infância eram as tecnologias que fomentavam nossas invenções e não propriamente o que era feito. O que importava era poder imaginar, trocar, compartilhar e aprender junto. Das invenções naquele quintal para as ações desenvolvidas em “outros quintais” como o Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc São Paulo, foi só questão de alguns anos...
GUSTAVO TORREZAN é artista, doutor em Artes Visuais, mestre em Educação e graduado em Artes Plásticas pela Unicamp. Atua na equipe técnica da área de Tecnologias e Artes na Gerência de Artes Visuais e Tecnologias do Sesc São Paulo.
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