Postado em 30/11/2017
Curador do Museu do Amanhã – espaço inaugurado em 2015, no centro do Rio de Janeiro, onde o visitante é convidado a examinar o passado, conhecer as transformações atuais e imaginar cenários possíveis para o futuro – Luiz Alberto de Oliveira mira as descobertas da ciência com parcimônia. Doutor em Cosmologia pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e pesquisador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica da mesma instituição, o físico destaca este momento da humanidade como paradoxal. De um lado, teorias provam ser este o melhor capítulo da nossa história; de outro, cientistas mostram o presente como o mais perigoso de todos os tempos. Neste cenário, o físico opta pelo caminho do meio. “Meu mestre, Oscar Niemeyer, me ensinou que a única coisa da qual podemos ter certeza é de que haverá o inesperado. Então, ele dizia que gostava de ser cautelosamente pessimista porque poderia ser positivamente surpreendido”, conta. Nesta entrevista, Oliveira fala sobre perspectivas na área da ciência, de que forma esses avanços influenciarão o mercado de trabalho, e sobre como a educação é a chave para a inovação no país.
Você dirige o Museu do Amanhã.
Qual é o diferencial desse equipamento estratégico?
Ficou muito claro para a gente, quando começamos o projeto, de que ele deveria ser um museu de ciência aplicada onde a gente usasse recursos das ciências contemporâneas e oferecesse aos visitantes uma jornada de exploração pelo desconhecido e por cenários de diferentes “amanhãs”. Não se trata de um equipamento no qual você vai simplesmente adquirir informação ou contemplar uma obra. Trata-se de uma proposta para nossos visitantes se engajarem e participarem de uma série de experiências que os façam refletir sobre possibilidades. Nosso objetivo é evocar a imaginação de cada um. Evocar a ideia de que o amanhã está por construir. Essa proposta não pode se realizar sem diretrizes éticas, nem valores. Essas diretrizes vão desde como queremos viver no mundo a como queremos conviver com os outros. Costumo dizer que somos um museu com uma proposta humanista. Ou seja, valorizamos o conhecimento, a liberdade, a tolerância, o respeito e a alegria. Isso é o que nós queremos oferecer para nossos visitantes por meio do recurso da narrativa montada sobre conteúdos da ciência. Mas de fato o que queremos é que os visitantes compartilhem dessas ideias e valores. Ou seja, somos claramente um equipamento político no sentido da coletividade.
Sob essa ótica, essa é uma proposta diferente da de outros museus.
Ao contrário de outros equipamentos que têm uma idealização de neutralidade, aqui somos claramente engajados e queremos engajar a vida dos nossos visitantes. Por exemplo, estamos aqui com as antenas voltadas para o futuro, mas enraizados no coração histórico do Rio de Janeiro. Cinco séculos da cidade estão a nossa volta: a primeira fortaleza, o Mosteiro de São Bento, a Pedra do Sal (Patrimônio da Humanidade). Enquanto existiu o Elevado aqui, a cidade se separava, e essa região ficou abandonada. Depois de derrubado [em 2014], a comunidade falou: “A praça é nossa. Vamos lá”. Para se ter uma ideia, são mais de 180 instituições culturais ativas nessa região. Então, há aqui uma vitalidade profunda ligada à cultura, um lugar de muita história. Quando instalamos o museu, nos demos conta desse legado e dessa bagagem. Procuramos essas pessoas e hoje, de um total de três mil vizinhos, 10% deles são membros do museu. Em menos de dois anos viramos parceiros de cinco agências da Organização das Nações Unidas (ONU) devido a essa perspectiva de que devemos nos engajar e não buscar neutralidade. Afirmamos esses valores e queremos que nossos visitantes debatam sobre as questões do amanhã.
Quais as perspectivas da ciência quanto ao amanhã?
Vivemos uma situação claramente paradoxal. De um lado, diversos pensadores – como o editor científico Joe Rogan, o filósofo Michel Serres e o futurista Peter Diamandis – mostram evidências de que vivemos no melhor momento da história da humanidade. Ou seja, nunca houve um momento em que fôssemos tão saudáveis, pacíficos, livres e educados. Por exemplo, a expectativa de vida, que já foi de 30 anos, pode caminhar, em alguns países, para 85 anos. A figura do avô era algo incomum e hoje faz parte do núcleo familiar. Também vivemos um momento mais livre: no começo do século 20 contavam-se nos dedos as democracias. Enquanto hoje, há, pelo menos, 150 países que experimentam a democracia, ainda que com particularidades. Por incrível que pareça, este também é o momento mais pacífico. Há menos fatalidades por guerra, menos homicídio e menos violência. Pela primeira vez, mais da metade da humanidade é alfabetizada e, desse total, mais da metade é composta por mulheres. Ou seja, a gente entende essa imensa mudança psicossocial como algo que oferece meios para fazer escolhas que nos permitam construir um futuro desejável. Desse ponto de vista, este seria o melhor momento da história da humanidade.
E o que dizem aqueles que são contrários a essa visão?
Stephen Hawking e outros cientistas dizem que vivemos no momento mais perigoso da história da humanidade. Porque hoje temos meios de destruir o planeta. Porém, ainda não temos meios de fugir dele. Então, eles elencaram os chamados “índices do apocalipse”. Um deles é a mudança climática. Dependendo das escolhas que fizermos, se mantivermos o padrão do combustível fóssil, caminharemos para mudanças climáticas intensas. Os solos também estão em um processo cada vez mais rápido de erosão – já existem mais de 400 desertos identificados nos oceanos. E esse não é um fator da natureza, mas uma escolha exclusiva da nossa civilização. As consequências das nossas ações alcançarão gerações à nossa frente. Isso implica até mesmo o desaparecimento de espécies sem que sequer as tenhamos conhecido: para cada dezena de espécie que, a cada ano, incorporamos ao nosso conhecimento, centenas terão desaparecido sem que houvesse a possibilidade de registrá-las. Também temos, com o uso de antibióticos, o surgimento de superbactérias que ameaçam reconduzir a ciência médica ao patamar do século 18. Além disso, hoje dispomos de um vasto arsenal de meios de destruição em massa. Vivemos esse paradoxo: entre o melhor momento e o momento mais perigoso.
Neste cenário, você se considera otimista ou pessimista?
É uma corrida entre aceleração tecnológica e fatores que demandam soluções ainda mais aceleradas. Essa corrida requer nossa capacidade de intervenção ampliada, multiplicada com as tecnologias mais recentes para poder realmente nos encaminhar, globalmente, a uma situação em que se consolide a perspectiva do melhor momento [da história da humanidade]. Por outro lado, trata-se de um momento de recuperar as florestas, os cursos d’água etc. Uma corrida capaz de testar nossa capacidade de transformação tecnológica e nos encaminhar para um cenário favorável ou [para um cenário] de dificuldades de ordem política. Sou cautelosamente pessimista porque meu mestre Oscar Niemeyer me ensinou que a única coisa da qual podemos ter certeza é de que haverá o inesperado. Ele dizia que gostava de ser cautelosamente pessimista porque poderia ser positivamente surpreendido. Se não o fosse, ele já estava mesmo desconfiado [do pior].
Historicamente, o Brasil tinha condições de estar à frente de outros países, mas perdemos na Revolução Industrial por causa do pensamento escravocrata que perdurou por séculos. Tudo indica que também estamos perdendo na Revolução Digital. Estamos andando para trás?
Há um aspecto que todos nós, americanos, que crescemos e vivemos no Novo Mundo temos que levar em conta: nossa sociedade foi constituída a partir do genocídio, da escravidão e da exploração. A gente tem que ter esse entendimento para compreender os caminhos da transformação que são necessários para, efetivamente, alcançarmos outra sociedade. Uma nova sociedade que deverá ser construída com base em nossa realidade. E o fator universalmente reconhecido como capaz de transmutar, em poucas gerações, o modo de funcionamento da sociedade é a educação. Veja os exemplos históricos de outros países que investiram maciça e continuamente em educação – da fundamental à avançada. Países que foram capazes de superar suas mazelas histórias e constituíram uma sociedade de relativo bem-estar num prazo curto. Por exemplo, qual a diferença essencial dos Estados Unidos para o Brasil? Lá havia a chaga da escravidão como aqui, mas foi o [investimento em] capital de conhecimento que proporcionou aos norte-americanos a valorização do empreendedorismo e da inovação. Então, se não fizermos esse investimento profundo e contínuo na educação, será difícil imaginar de que modo construir o país que desejamos. Nosso desafio não é só o de acompanhar e o de nos associarmos aos avanços técnicos profundamente transformadores, mas também o de nos reconstruirmos como coletividade, e para isso a ferramenta é a educação.
Não só trabalhos braçais, mecânicos e técnicos estão sendo substituídos por máquinas, como também carreiras tradicionais. É o caso de robôs criados a partir da tecnologia de computação cognitiva Watson da IBM trabalhando em vagas que eram de advogados. De que forma vamos conviver com as novas máquinas?
De fato, a robótica e a inteligência artificial deverão substituir vários setores, ou seja, inúmeras classes de emprego. Mas há muita coisa que os Watsons não poderão fazer. Todas elas ligadas à criatividade e ao convívio. Cada vez mais as tecnologias tendem a se tornar microscópicas. Essa diminuição permite que você condense a capacidade em artefatos cada vez mais diminutos, basta a gente olhar nossos celulares: o que menos fazemos é falar ao telefone. Nossa cognição se difundirá no ambiente, então a multiplicação de sensores que vão medir tudo o que a gente fizer é um horizonte imediato. Nos próximos cinco anos vamos viver uma experiência inédita: praticamente todos os ambientes e todos os objetos serão responsivos. Você vai chegar em casa e conversar com a geladeira: “Do que você precisa?”. E ela responderá: “Eu preciso de ovos etc.”. É como se tivéssemos mudado de tribo e essa tribo tem novas posturas. Por exemplo, essa nova tribo vai apelar muito para a linguagem de gestos: mãos próximas ao corpo, fazendo sinais, controlando ações como abrir janelas. Isso, num horizonte próximo, levará à expansão dos sentidos, à realidade ampliada. Por reconhecimento facial, saberei seu nome, CPF, time [de futebol] do coração, de onde você veio, para onde você está indo. O passo seguinte é levar essa informação ao sistema nervoso. Então, você faz gestos não para que sejam percebidos, mas para que os padrões de impulsos nervosos sejam percebidos e registrados. Você passa a ter uma interface direta entre seu sistema nervoso e o ambiente. Esse registro vai transformar completamente o nosso estar no mundo. Porque o mundo terá diversas camadas não físicas, não biológicas, não artificiais, mas puramente virtuais e cibernéticas.
Como essas novas tecnologias terão influência sobre o prolongamento da vida?
Os avanços da medicina, atualmente, estão se dirigindo a outro foco – à doença individual. Então, hoje, temos uma série de doenças crônicas que não são mais doenças de contágio como eram antes. Caso de doenças ligadas a comportamento, como depressão. Doenças que não são tratáveis por mecanismos de massa. Não há uma vacinação generalizada para a diabete, por exemplo, porque ela é um processo individual, de diferentes tipos. O tratamento, então, torna-se extremamente focado, o que o torna eficaz e caro porque demanda um sistema de saúde muito capacitado. A perspectiva que se abre é que esses recursos médicos muito avançados fiquem restritos a uma elite diminuta. Hoje você já vê diversos casos desse tipo de privilégio ao comparar recursos disponíveis em clínicas avançadas com recursos da esfera pública. Poucos terão acesso a técnicas de prolongamento da vida, substituição de órgãos, tratamentos celulares, e genéticos, individualizados. Por exemplo, num local de poucos recursos, guerra e fome, a expectativa de vida pode voltar a ser de 30 anos ou menos; enquanto em locais com capacidade técnica avançada, a vida poderá ser prolongada para, quem sabe, até 120 anos. Dessa forma, pela primeira vez, você vai transformar desigualdade econômica em desigualdade biológica. E isso é uma coisa que nunca tivemos na história.
A QUESTÃO DE COMO GERIR, DE COMO VIVER O TEMPO É A QUESTÃO DECISIVA,
ÉTICA, POLÍTICA, EXISTENCIAL DO MOMENTO. (...) É A MAIOR AVENTURA QUE VAMOS VIVENCIAR
De que forma nossa percepção de tempo mudará com esse cenário de tecnologias capazes de mudar hábitos, encurtar distâncias e transformar modos de viver e de conviver?
O elemento mais básico que está em transformação é exatamente a vivência no tempo. Ou seja, hoje, graças a técnicas de medição, você é capaz de ver com clareza que as cidades têm um certo padrão de desenvolvimento e uma dinâmica sociocultural. Por exemplo, pessoas numa grande cidade caminham 15% mais rápido. Isso exerce influência sobre seu sistema circulatório, nível de estresse, cortisol, como você dorme ou não dorme. E quando a gente percebe que, num prazo muito curto, estamos associando nosso modo de pensar e sentir a dispositivos extremamente potentes, capazes de incrementar nossa capacidade de conexão e de associação em relação a pouco tempo atrás, fica claro: não se vive mais da mesma maneira como se vivia. Vivemos um limiar de saturação de percepção: é tanto sinal convocando você para isso e para aquilo, demandando commodities da sua atenção que você não consegue mais deliberar. Então, vivemos essa transformação, em que o tempo é a questão essencial. Nós hoje também medimos e sabemos que quando você passa algumas horas num ambiente natural, no mato, na montanha, você regenera as suas ligações cerebrais. Você refresca, objetivamente, seus neurônios tanto quanto quem faz meditação. A questão de como gerir, de como viver o tempo é a questão decisiva, ética, política, existencial do momento. É o que mais ignoramos e a maior aventura que vamos vivenciar.