Postado em 30/11/2017
(apontamentos de Francisco Rovelli para um romance)
Tomo de Montaigne a máxima que hoje me persegue: “Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem numa só alma. Se insistirem que eu diga por que o amava, não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu”. Me refiro a Raul Kreisker, pretenso corruptor de minha fé; meu amigo desde os tempos de nossa inocência, na instituição quase religiosa chamada Grupo Escolar Salvador Gogliano, Ouriçanga, SP. Ainda não havíamos experimentado dos frutos “do conhecimento do bem e do mal”. Nem nos havíamos aproximado como no final da adolescência, quando pensei as primeiras vezes em escrever um romance sobre o mito de Judas.
Desfrutei de outras poucas amizades viscerais, mas ninguém me afrontou com uma flecha tão poderosa como esta: “É preciso afinal oferecer aos homens um evangelho aceitável”. Era uma hora silenciosa, quase meia-noite; estávamos na praça de Ouriçanga, e a cidade toda parecia dormir. Era dezembro. As chuvas nos haviam dado uma trégua, e havia um céu brilhante, místico, estendido sobre nossas cabeças. O Natal viria em poucos dias.
No contexto do debate que começáramos horas antes no bar próximo, a frase teve o poder de me estremecer porque me fez logo suspeitar que eu estivesse, de fato, precisando de um evangelho “aceitável” para mim. Tratava-se de algo a ver com a minha própria existência, e não com a de Judas, uma vez que desde a catequese eu relutara em tê-lo como malfeitor. Movido pela frase de Raul, eu começaria, ao final daquele verão, uma releitura dos evangelhos, tendo-os como obra terrena; e não escritos pelas “mãos de Deus”, segundo o dogma. Não fiz mais que seguir o Cristo, que conclamava os discípulos a perscrutar as velhas Escrituras, a inquiri-las sem tréguas, até que seu verdadeiro sentido fosse revelado: “Buscai e achareis; batei e vos será aberto”.
Naquela mesma noite, Raul lançou outra seta. Sem ocultar um risinho de escárnio, disse: “Se fôssemos depender apenas de Marcos ou João, não iríamos comemorar o Natal daqui a pouco”. Ele referia-se ao fato de que nenhum dos dois evangelistas havia registrado o espetáculo portentoso que cercara o nascimento do “novo messias”. Mas aquilo não atingia a minha fé; antes, lhe dava base, pois me aguçava a sede de conhecimento.
As provocações de Raul deviam servir também à sua fé pessoal. É o que, com o tempo, acabei deduzindo, dado o empenho que ele dedicava ao lançamento daquelas flechas envenenadas. Ele parecia usá-las para testar-me. Também a ele devia valer a máxima do Cristo: “Batei e vos será aberto”. Para colocar-me à prova é que me espicaçava e me impelia a buscar, no fundo de mim mesmo, o pressuposto básico de minha fé. Por outro lado, sabendo de meus limites, ele saberia também do alcance de seu poder em nossas relações. Mas, enquanto ele agia como um livre atirador, eu tinha por fundamento um arsenal que me fora posto à disposição desde a infância. Dele faziam parte as leituras noturnas de minha mãe. Sentada na beirada de minha cama ou na de Fabrício, meu irmão-logo-acima, ela escolhia os textos bíblicos segundo os temas que achava que podiam nos interessar; e também, claro, por um sentido eminentemente prático: tratava-se de um recurso infalível para que eu e Fabrício nos aquietássemos ao fim de um dia agitado, e logo dormíssemos e lhe déssemos um primeiro momento de paz.
Na busca do “evangelho aceitável”, concentrei-me de início em Marcos, que havia sido a base para mais da metade dos textos Mateus e Lucas. A indiferença ao judaísmo o havia livrado da carga de ter que descrever os prodígios relatados pelos outros dois para justificar profecias. Incluída aí a visita do anjo Gabriel a Maria, para preveni-la: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com sua sombra”. Maria fora escolhida para que se cumprisse o que o profeta Isaías dissera: “Eis que a virgem dará à luz um filho”. Ela estava casada com José, e “antes que coabitassem, achou-se grávida”. Por isso, José “resolveu repudiá-la”. Mas o “Anjo do Senhor” apareceu-lhe em sonho e o demoveu da ideia, dizendo: “O que nela foi gerado vem do Espírito Santo”.
Raul acenou-me uma vez com um exemplar de O Evangelho Esotérico de São João, de Paul Le Cour. “Há surpresas aqui para você”, ele disse. Mas eu senti um obscuro receio de ler o livro, e veria sempre o gnosticismo como uma impostura. Creio que a leitura então de Le Cour ter-me-ia provocado um desvio de rota. Teria, decerto, retardado minha descoberta da ideia de João sobre Deus, que se reproduziria no clamor de Santo Agostinho, em suas Confissões: “Tarde vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos.” João havia falado de um espírito que era o princípio de tudo, e que se interiorizara em suas criaturas. Jesus o chamara de Pai; e Paulo o chamaria de Cristo ou Espírito Santo.
Em vez de um deus separado do homem e senhor de seu destino, João anuncia o Verbo, realidade última e mais profunda da espécie humana. Em vez da pompa em torno do nascimento de Jesus, ele abre seu evangelho com uma irretocável síntese: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por ele. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Diferentemente de Javé, o Verbo é a essência do homem e lhe confere seu poder. Sentindo-se pleno desse espírito é que Jesus dissera aos discípulos: “Estou no Pai e vós em mim e eu em vós”. Tratava-se de uma fala de Jesus, mas era o Cristo ou Verbo quem estava a se expressar através dele.
Foi isto, em resumo, o que expus a Raul, algum tempo depois, para explicar por que eu resistia em ler o texto de Le Cour, acrescentando que eu temia “contaminações”. Foi com um desdém que me pareceu calculado que ele reagiu: “Se isto lhe serve, faça bom proveito”. Fiquei calado, pensando na melhor maneira de reagir àquela provocação. Percebendo meu desapontamento, ele procurou atenuar o que dissera: “Me perdoe; tenho que reconhecer que essa sua tese faz sentido, ainda que não me sirva”. Ficou então em silêncio, e eu me animei em resumir mais uma vez o que era para mim o centro da doutrina acerca do Verbo: o fato de Deus estar presente em todos a um só tempo, segundo Paulo, que acentuava: “Não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois vós todos sois um só em Cristo.” Abria-se, assim, a possibilidade da vivência segundo o Bem, através do Espírito, ou a entrega às paixões do ego.
Tratava-se de uma religião da escolha, abrigo de um futuro existencialismo, em contraposição frontal ao deus do Gênesis. “De fato não morrereis”, a serpente dissera a Eva, contrariando Javé. “Deus sabe que no dia em que comerdes do fruto proibido vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” Eva escolheu o saber em vez do estado da inocência, arcando com a responsabilidade de tornar-se plenamente humana.
O que posso dizer, afinal, é que jamais tive de Raul alguma definição clara sobre suas crenças religiosas. Chegou a dizer-se agnóstico, mas creio que fosse apenas um cético que se interessava por religião embora não fosse religioso. Cheguei a suspeitar que ele pudesse ser um admirador secreto do gnosticismo. Mas foi uma suposição momentânea e pueril que teve a ver apenas com a sua sugestão de que eu lesse o livro de Le Cour. Para meu alívio, a suspeita, se tivesse mesmo persistido alguma, teria acabado logo por desfazer-se de modo natural: era um feriado prolongado; estávamos de novo em Ouriçanga, na praça, tarde da noite. A cidade toda parecia dormir. O céu límpido de junho estendia-se de Centauro a Capricórnio, como a apontar um caminho. De tudo o que, então, falamos, eis do que me recordo com mais clareza: “É bom lembrar”, disse Raul, “que dentro de nós há algo ou alguém que tudo sabe e que age melhor que nós mesmos. Nada existe para sempre, tudo se transforma, mas deve haver algo de eterno que nos diz respeito, embora não saibamos o que seja”.
SÍLVIO FIORANI é autor de O Paradoxo da Serpente
(Record, 2013), O Evangelho segundo Judas (Record, 2014)
e Investigação sobre Ariel (Record, 2015), com o qual
ganhou o Prêmio Machado de Assis de 2005.
FELIPE IKEHARA é artista plástico, a imagem
do Inéditos está exposta no Solário do Sesc Santana