Postado em 29/12/2017
Pesquisadora em Comunicação Digital e autora dos livros Jornalismo Digital (Ed. Contexto, 2003), A Força da Mídia Social (Ed. Estação das Letras e Cores, 2014), No Tempo das Telas (Ed. Estação das Letras e Cores, 2014), entre outras publicações, Pollyana Ferrari aconselha: duvide, sempre. Um cuidado que ela mesma pratica, dada a avalanche de notícias falsas disseminadas nas redes sociais.
“Compartilhamos fake news porque, na maioria das vezes, nem sequer clicamos no texto que recebemos. Precisamos de alguns minutos para refletir sobre o que lemos, porque ‘o dedo’ [para clicar no compartilhamento ou no like] é mais rápido do que o tempo do cérebro para assimilar aquela informação”, diz. Professora de Comunicação e Multimeios, Jornalismo e também de Pós-Graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ferrari fala sobre este momento em que novas plataformas tecnológicas mudam o modo como aprendemos, apreendemos e compartilhamos informações.
Foto: Leila Fugii
Acho que não estamos perdidos, mas num momento de mutação. Estamos mudando cognitivamente como seres humanos e também de formato de sociedade: a questão de gênero, das famílias homoafetivas, do trabalho... Administrando plataformas, aplicativos, vivenciando a liquidez das relações afetivas (só para citar, uma mudança nas grandes cidades: têm-se mais bichos de estimação do que filhos, algo impensável há 30 anos). A tecnologia avança numa escala sem precedentes na história da humanidade e essa mudança causa um choque estrutural muito grande. Tem gente com 30 anos que não está conseguindo acompanhar, como também tem gente acima dos 60 que está acompanhando as mudanças. É uma questão conseguir transitar nesse novo meio e entender o que temos para hoje. No caso do livro digital, por exemplo, algumas livrarias ainda se agarram em pilares que não existem mais. Por exemplo: a TV está virando outra TV. Vemos televisão de outro jeito, pedimos pizza de outro jeito, pode ser por um aplicativo, pelo whatsapp da pizzaria do bairro, mas, com certeza, cada vez menos por chamada de voz. As relações afetivas mudaram, já que as plataformas impuseram outra forma de as pessoas se conhecerem, agora deslizando o dedo em telas de celular, o que era impensável no começo do século 20.
De modo geral, esse é um cenário bom ou ruim?
Há muitas pessoas que dizem que tudo piorou com as redes sociais. E que o sonho de um mundo conectado onde todos teriam a mesma voz deu errado. É verdade, hoje grandes plataformas como Google e Facebook dominam a rede e nossas memórias abastecem a sociedade do consumo, onde o desejo fala mais alto do que a realidade. Mas também existem iniciativas muito bacanas nessas mesmas plataformas. É tudo ao mesmo tempo agora. O bom e o ruim separados por um clique. Também não assimilamos a tecnologia na mesma velocidade em que ela se desenvolve. Então, temos um delay do corpo, da mente. O tempo do corpo, das estações do ano, das instituições, das escolas é mais lento do que o tempo das plataformas. Compartilhamos fake news porque, na maioria das vezes, nem sequer clicamos no texto que recebemos e precisamos de alguns minutos para refletir sobre o que lemos, porque “o dedo” [para clicar no compartilhamento ou no like] é mais rápido do que o tempo do cérebro para assimilar aquela informação.
Viramos mídia, mas não estamos preparados para ser mídia. Se você pegar o exemplo dos youtubers e influenciadores, qual é a crise deles hoje? Não querem ficar reféns da monetização do YouTube e também precisam interagir com os seguidores. Não basta só documentar em vídeo as 24 horas do que estão comendo ou fazendo. É preciso bagagem cultural e política para discutir com os seguidores assuntos que permeiam os noticiários ou as mesas de bar. E muitos youtubers acabam contratando profissionais da área de relações públicas, ou assessores, para ajudar nessa mediação com o público. Acredito que essa fase dos influenciadores está em queda uma vez que começa a surgir outro mediador, presente no Instagram Stories, entre outras plataformas de vídeo ao vivo. Todos querem participar, mas se criou uma polarização de vozes vazias. Ou seja, todos “entendem” de tudo. Essa ideia de redes sociais “messiânicas”, que vão incluir todo mundo, de uma aldeia global, de que tudo vai ser lindo e as desigualdades deixarão de existir: nada disso existe. O que estamos vendo? O próprio criador da web, Tim Berners-Lee, 25 anos depois de lançar a World Wide Web, faz um alerta: ou a gente percebe que o mundo é desigual, que as sociedades necessitam de inclusão, comida e casa para morar ou vamos ter um fosso entre os que estão conectados e os excluídos.
São os sintomas da pós-verdade: compramos demais, comemos demais, bebemos demais, teclamos demais, trabalhamos demais, fazemos exercícios demais... Contudo, falamos de menos sobre tristeza, dificuldades e desencontros. Diferenças, então? Nem pensar. Precisamos de coragem para batalhar pelo ser humano, pela verdade, pelo coletivo (em detrimento do eu), pelo debate público, por justiça, por educação, por saúde, por mais empregos do que por novas tecnologias. Precisamos batalhar por fact-checking (checagem de fatos) em todas as empresas, em todos os departamentos de comunicação das marcas, por fact-checking nas escolas. Por mais fatos que desejos. Fatos viram história no futuro. Desejos só alimentam os egos da sociedade de consumo. Nos próximos 30 anos teremos milhões de desempregados, substituídos pela tecnologia. O avanço da tecnologia é mais rápido do que o avanço educacional. Estamos perdendo uma grande batalha se aceitarmos a era da pós-verdade como certa. A batalha da checagem dos fatos é muito maior do que um grupo de jovens que ganha dinheiro produzindo fake news na Macedônia ou no interior de São Paulo. A batalha da checagem dos fatos é em prol de um mundo onde o senso crítico prevaleça.
Precisamos ser bons para fazer a leitura do contexto da sociedade atual e não simplesmente nos fecharmos em bolhas. O intelectual fica na sua bolha. Se a pessoa gosta de filmes de arte e cineclube, ela nem se arrisca a assistir TV aberta para poder, aí sim, criticar e propor novas abordagens. Se a pessoa estaciona na vaga do idoso, se é machista ou racista, ela vai levar todos os seus preconceitos e falta de ética para sua timeline. O que está acontecendo na era da pós-verdade é que as pessoas perceberam que elas têm mais seguidores e curtidas quando recriam o real. Explico: “Ah, imagem de gatinho e cachorro fofo dá ibope”. Aí, a pessoa posta mais disso. Ela percebe que se der check-in no aeroporto, ela tem mais curtidas do que se der check-in no metrô lotado indo para a periferia. Inconscientemente, todo mundo começa a compartilhar o desejo e não o real. Aí falamos: mas isso é antigo. A diferença é que agora o compartilhamento ganha repercussão em grande escala. E a mentira vai tomando conta de tudo. Sem perceber, você passa a compartilhar desejos o tempo todo. Quando comecei a pesquisar a história da pós-verdade, das fake news, percebi que o lastro com o real está se perdendo e a persona digital tem falado mais alto. Tudo pelos likes, que hoje têm um padrão: paisagem repercute mais do que fotos de trabalho, por exemplo. A partir daí, passo a postar mais paisagens de maneira automática, pois os alertas de curtidas geram uma satisfação imediata.
QUANDO COMECEI A PESQUISAR A HISTÓRIA DA PÓS-VERDADE, DAS FAKE NEWS, PERCEBI QUE O LASTRO COM O REAL ESTÁ SE PERDENDO E A PERSONA DIGITAL TEM FALADO MAIS ALTO. TUDO PELOS LIKES
Começa-se a criar um padrão. As coisas vão repercutindo tanto que você passa a compartilhar apenas – e curtir somente – aquilo que aplaca sua ansiedade. Porque faz sentido: você quer uma coisa que te acalme. Então, vira uma bomba relógio em que se misturam consumo sem limites e egos. Se você compartilha só o que você vê, você acha que o mundo é daquele jeito. Ouve-se o mesmo estilo musical, vai-se ao mesmo restaurante, o mesmo caminho, o mesmo círculo de amigos que pensam como você. A ruptura com o padrão é uma saída, por isso não acho que estamos à deriva, como falamos na primeira pergunta. Estamos passando por uma retomada de valores, de princípios. E, para isso, dou um exemplo: se você está conversando não olhe para o celular, mas para os olhos do interlocutor.
É importante estar aberto a fim de ver a vida, o consumo e as relações com um olhar de cunho social, de raízes interligadas. Vai comprar uma camiseta? Compre a marca que te mostra toda a cadeia envolvida naquela fabricação: da plantação até o processamento do fio. Se perdermos esse olhar de processo para tudo, caímos na ficção que é a pós-verdade. Por que é importante compartilhar fatos? Porque fato vira história, vira referência. Há quem diga que não existe mais uma verdade e que não há verdade absoluta. Mas tem algumas coisas que não mudam. Fato é fato. A tecnologia, a cada momento, nos surpreende com novidades, ela é veloz. Mas nosso cérebro precisa de outro tempo. Aqueles três minutos para você ler uma notícia antes de compartilhá-la. Por que a gente não pode dar um tempo para o corpo e a mente localizarem melhor onde a pessoa está? Qual o seu contexto? A gente pode dizer: não sabia desse ou daquele fato. Não tem problema nenhum, mas as pessoas querem estar por dentro de tudo que acontece, a todo momento. Todos estão discutindo no boteco, no bar e no clube sobre o último assunto do momento. Todo mundo virou colunista. De repente, todos entendem sobre todos os assuntos. E isso é uma loucura.
Há uma discussão mundial sobre a necessidade de uma legislação. Na Alemanha, por exemplo, a [chanceler] Angela Merkel vai multar quem compartilhar informação falsa. Vamos pensar na responsabilidade do cidadão comum, uma vez que o Facebook, por exemplo, se considera uma empresa pós-mídia [nem jornal, nem revista, nem emissora de televisão] – o que a meu ver é um equívoco, pois eles tiram a culpa deles das costas. Para os cidadãos comuns, a partir do momento em que estão nas redes, eles se esquecem de que aqueles são espaços públicos. Todo o recalque e as fobias aparecem publicamente em volume cada vez maior. Zygmunt Bauman fala sobre isso em Vida Líquida. Quer dizer, quando uma dona de casa vai a um programa de reality show falar do marido, a partir desse momento, acabou a informação privada. Porque aqueles fatos, que só o padre ou a família sabiam, foram compartilhados para o mundo. E as pessoas gostaram dessa visibilidade. Pós-verdade alimenta o ego. Ela mudou a foto do Facebook e todo mundo comentou: “Está mais bonita”. Há uma vaidade inerente, e não sejamos inocentes achando que isso vai acabar, não é isso. Só que as pessoas se apropriaram disso, tornaram-se mídia e esqueceram que há uma responsabilidade social embutida nas curtidas, nas postagens etc. O caso de Fabiane de Jesus, uma dona de casa da periferia do Guarujá, cidade litorânea de São Paulo, confundida com um retrato falado de uma mulher que estava sendo procurada por fazer magia negra com crianças [este post circulou nas redes sociais]. Ela foi arrastada da própria casa para a rua e morta pelos vizinhos. Esse é um exemplo de até onde as fake news podem nos levar.
Esse é o caso de pessoas que já chegam ao médico com um diagnóstico “checado” no Google. Mas, quando falo do papel da checagem na educação, acredito que precisamos ter checagem de fatos na escola. Precisamos dominar a “raspagem” de dados, que é quando conseguimos extrair dados e explicá-los facilmente. Assim, na escola, quando o adolescente receber compartilhamentos de fatos no grupo do whatsapp, ele deverá checar antes de deletar ou compartilhar [a informação e/ou imagem]. Todos deveríamos saber qual é a fonte de tudo. As ferramentas estão aí para isso: o que esta pessoa fala, quem ela é. Temos que nos apropriar dessas informações e transformá-las numa checagem do dia a dia.
Há uma questão: muitos educadores não estão dando conta deste tempo. Necessitamos de uma capacitação tecnológica contínua. Como também na maioria das profissões clássicas. Tem muita gente que não está entendendo este momento de mutação, aí o professor é aquele que briga, que tira o celular. Mas o comportamento seria de ensinar os alunos a buscar fatos. Os estímulos visuais das plataformas são mais viciantes e rápidos do que a fala do professor em sala de aula. Essas redes te deixam ligado, você sente que está perdendo algo, e a notificação dos aplicativos serve para isso. Se você não vir automaticamente o alerta, você perdeu algo. Então, precisamos fazer esse exercício do atraso, ou melhor, de estar no momento presente e respirar primeiro antes de tomar uma decisão. Parar de viver olhando para uma tela. A transmissão do conhecimento está vivendo um momento conflituoso. O docente não é um nativo digital, por mais novo que seja. O nativo nasceu de 2000 para cá. Ainda vamos chegar a este momento em que docente e aluno serão nativos. O que significa que todos serão multiplataforma. Mas ainda estamos longe. E a busca de fatos em sala de aula pode ser um caminho para essa capacitação de ambos [professor e alunos].
Com certeza. Seremos cada vez mais obsoletos, pois a tecnologia não está lidando com a questão social, só com a tecnológica (o exemplo do cobrador do ônibus: ele foi capacitado, treinado para fazer outra coisa? Não. E uma máquina pode fazer o trabalho dele). Tem gente brigando por moradia, por trabalho... Nem todo mundo está fazendo selfie. Precisamos usar as redes a favor de uma construção planetária mais justa e inclusiva. Senão, vamos ter cada vez mais bolhas.
Foto: Leila Fugii