Postado em 29/12/2017
A canção brasileira é particular. Reverenciada, foi alvo de debates acalorados em uma série de festivais competitivos dedicados a ela. O primeiro aconteceu em 1960, promovido pela TV e Rádio Record, no qual se reuniram compositores e músicos de todos os cantos do Brasil, mas sem muita repercussão. A febre dos festivais foi inaugurada pouco tempo depois, em 1965, com a competição transmitida pela TV Excelsior, da qual saiu vencedora “Arrastão”, interpretada por Elis Regina.
Ainda em setembro de 1960, o Rio de Janeiro criou um festival de tema específico, bem caro à história da música: o amor. “As Dez Mais Lindas Canções de Amor” foi uma iniciativa de uma loja chamada O Rei da Voz e da gravadora Copacabana. Quem se consagrou no evento foi Ary Barroso e a sua “Canção em Tom Maior”, na voz de Ted Moreno. Embora vencedor, Ted Moreno não conseguiu fazer a carreira deslanchar. Já as músicas “Poema do Adeus”, de Luiz Antônio com Miltinho, e “Ternura Antiga”, de Ribamar e Dolores Duran com Lucienne Franco, outras duas entre as dez eleitas, se projetaram através do tempo.
Os festivais são mesmo um capítulo à parte da história da cultura nacional e representaram um dos espaços de resistência à censura promovida pela ditadura militar nos anos 1960 e 1970, mas a origem da canção brasileira é muito mais antiga. Ela remonta o período colonial (ainda no século 16), com evolução gradativa que culminou nas modinhas – sucesso nos salões brasileiros do século 19.
O gênero se expandiu e criou desenlaces próprios, tanto para compositores, como para cantores e pesquisadores. Músico, linguista e pesquisador do tema, Luiz Tatit diz que a linguagem da canção disseminada atualmente, caracterizada por ele como “dinâmica, progressiva”, e responsável por gerar “novos gêneros e modas, veio à luz com a chegada ao Brasil dos aparelhos de gravação e das emissoras de rádio”, existindo como produto de uma atividade profissional a partir da década de 1920 (veja boxe Não Se Perca).
A simplicidade passa longe quando a missão é associar letra, melodia e harmonia, cernes da canção. Na opinião do compositor Eduardo Gudin, na MPB transparece a potente interação entre melodia, harmonia e letra. “Principalmente na questão harmônica, tanto nos compositores antigos como nos atuais”, compara.
Os anos 1930 e 1940 carregaram discussões relativas ao canto. O escritor Mario de Andrade não poupou esforços no período para estudar a música brasileira. Em Música e Jornalismo (Edusp, 1993), encontramos uma compilação de críticas e crônicas do autor publicadas no jornal Diário de S. Paulo, de 1933 a 1935. Com uma produtividade impressionante, antes de se ligar ao Diário, Andrade foi, por um longo período, crítico de arte no Diário Nacional, de 1927 a 1932. Os números indicam que nesses cinco anos, sua produção textual se aproximou de 700 artigos, sendo mais de 400 sobre música.
No livro Pequena História da Música (Nova Fronteira, 2015 – e-book), Mario afirma que os elementos formais da música, ou seja, o som e o ritmo, são tão antigos quanto o homem, equiparando a respiração humana e o batimento cardíaco a funções rítmicas. Já a voz é identificada pela produção do som. Ele faz coro ao maestro e compositor alemão Hans von Bülow, ao dizer que o ritmo é fundamental na organização da vida humana.
Foto de Tom Jobim. Instituto Antônio Carlos Jobim
A década de 1950 é reconhecidamente um período de diversidade: samba, samba-canção, samba blue, termo cunhado para um tipo de samba produzido sob influência do som produzido pelos standards norte-americanos (Nat King Cole, Bill Evans). A intérprete que se destaca no samba-canção é Dolores Duran. De 1957, “Por Causa de Você” tem letra de Duran e música de Tom Jobim. A composição foi regravada por Frank Sinatra em parceria com Jobim em 1969 e se transformou em “Don’t Ever Go Away”.
Gudin recorda outra rede de relações entre expoentes da música brasileira. Cita a ligação “evidente” entre a obra de Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa com a música de Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Baden Powell, Paulinho da Viola e outros mais atuais.
“Existem alguns pontos marcantes de elementos novos que se agregaram a nossa música em momentos importantes. Exemplo disso é o estilo de Johnny Alf e o violão de João Gilberto na bossa nova”, continua Gudin. O compositor também menciona o primeiro disco de Milton Nascimento, Travessia (1967), e o som autoral do violonista Guinga.
A Tropicália é vista como um instrumento da desconstrução do gênero, pois agregou elementos visuais e performáticos, fazendo uso de pastiche e paródia nos arranjos, bem ao estilo de intervir a alterar o que estava em voga, tendo exemplos nos discos Caetano Veloso (1968), Muito (Caetano Veloso, 1978) e na releitura de Gilberto Gil para “No Woman, no Cry”, de Bob Marley, intitulada “Não Chore Mais” (Realce, 1979).
Foto de Baden Powell. Dieter Hopf
Um dos expoentes dessa geração de compositores, Chico Buarque deu fôlego à discussão sobre o fim da canção. Em entrevista para a Folha de S. Paulo (2004), declarou que Noel Rosa foi responsável pela formatação do gênero nos anos 1930, o qual foi remodelado pela bossa nova e, nos anos 1990, teve no Rap a “negação da canção tal como conhecemos, [...] o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. [...].
Provocando o mesmo efeito de fogo em terreno seco, a entrevista de Chico Buarque ainda reverbera, enquanto a canção brasileira segue altiva, sendo construída e reconstruída pelas inovações tecnológicas que acompanham o universo musical, sem deixar escapar a sua síntese: melodia, harmonia e letra: “No rap, é como se a canção chegasse a sua raiz, pois é alguém falando, com algumas organizações de métrica. O rap quer passar mensagens e, para isso, é necessário aproximar-se ao máximo da fala”, pondera Tatit. Em sua visão, os desafios das linguagens musical e literária não passam pela cabeça do letrista ao compor: “A preocupação essencial do cancionista é criar compatibilidade entre melodia e letra e não produzir poemas ou peças musicais independentes entre si. Um bom letrista quer sempre chegar a uma boa letra – passível de ser cantada por uma melodia – e não a um poema autônomo", enfatiza.
Para Luiz Tatit, a canção sofreu intervenções que até hoje conduzem
sua evolução estética: a bossa nova e o tropicalismo. Siga os passos:
Ela existe
Sobretudo a partir da década de 1920 é que podemos dizer que a canção existe como produto de uma atividade profissional que foi se alastrando com o progresso técnico, até uma caracterização completa da linguagem nos anos de 1950 (já tínhamos então as canções mais ritmadas no canto (marchinhas, sambas carnavalescos...), as mais passionais (sambas-canções, boleros...) e as que explicitavam sua origem oral (sambas-de-breque ou de ditos coloquiais).
Construção e desconstrução
Quando a linguagem da canção brasileira já estava bem constituída, ela sofreu duas intervenções que até hoje permanecem como dispositivos de regulagem de sua evolução estética: a bossa nova, que lhe trouxe critérios de triagem para eliminar excessos melódicos ou linguísticos, e o tropicalismo, que, ao contrário, promoveu a mistura de tempo e de espaço, de conduta e até de revalorização da própria bossa nova (sua antípoda).
Mistura contemporânea
Essas intervenções estão vivas até hoje, quando novos artistas dizem que pretendem com suas obras depurar de algum modo a sonoridade brasileira (gesto bossa nova) ou, inversamente, misturar o rock com o forró, com o gospel, com uma pegada “rap”, num gesto tropicalista.
Acabou?
O rap, aliás, motivou declarações sobre o fim da canção (pensava-se em canção como formas conservadoras, típicas da sigla MPB) e foi o gênero que mais próximo chegou do âmago criador da canção: nossa própria fala cotidiana (não há oralidade sem melodia e letra). Seus recursos foram incorporados na linguagem cancional e podemos dizer que só agora a formação dessa linguagem se completou.