Postado em 30/01/2018
No começo do ano, um dos maiores serviços de streaming [transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo pelas redes sem necessidade de download] de música do mundo virou alvo de um processo bilionário na Justiça dos Estados Unidos. A acusação é a de que a empresa não recompensou de forma adequada os direitos autorais de compositores. Casos como esse não são únicos e se repetem desde o advento da música no ambiente digital. “Em tempos de internet, os direitos dos autores sobre suas criações estão sendo submetidos a mais uma prova de resistência, que desta vez está exigindo esforços redobrados”, pondera a advogada Vanisa Santiago. Tendo em vista que cada país assume legislação e postura próprias diante desse novo cenário, como o Brasil está lidando com a questão dos direitos autorais no segmento da música? Segundo o advogado Daniel Campello Queiroz, por aqui “ainda não se definiram os direitos envolvidos nessa atividade [streaming] que revolucionou o mercado”. A fim de refletir sobre o assunto, Santiago e Queiroz analisam os agentes dessa cadeia produtiva da música e os desafios que estão pela frente.
Vanisa Santiago
As primeiras regulações de proteção às obras intelectuais surgiram com a invenção da imprensa de tipos móveis de Gutemberg. Na época, sob a forma de privilégios ou concessões em benefício dos impressores, ou até mesmo dos criadores de caracteres tipográficos, caso do “itálico” de Aldo Manucci. De lá para cá, autores e artistas percorreram um longo caminho até chegarem a um sistema de direitos no qual fossem protagonistas.
Ao longo desse percurso, foram muitos os desafios propostos pela evolução da tecnologia, que serviram, ao mesmo tempo, de mola propulsora para uma evolução dos direitos autorais não mais restrita aos seus aspectos econômicos. Em cada etapa, com a invenção de novos meios de reprodução, comunicação e difusão das obras – como o fonógrafo, o rádio, o cinema e a televisão –, o direito autoral foi atualizado, adaptado e reinventado, a partir dos fundamentos da Revolução Francesa, como o direito de propriedade, de dupla natureza: moral e patrimonial.
Hoje, os direitos dos autores e dos artistas são reconhecidos em diferentes âmbitos internacionais por tratados e convenções administrados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esses direitos também estão presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na regulação das relações comerciais entre os Estados a cargo da Organização Mundial do Comércio (OMC), bem como nas leis de países de todos os continentes. No Brasil, figuram também entre os direitos fundamentais previstos na Constituição da República.
Na prática, para viabilizar o exercício dos seus direitos, os autores desenvolveram, em paralelo, um sistema de gestão por meio da criação de organizações de classe, seguindo a máxima de que a união faz a força. A função dessas entidades gestoras, interconectadas às de outros países, é a de dar efetividade, em seus respectivos territórios, à regulação nacional e internacional vigente, licenciando coletivamente e arrecadando, frente a determinados segmentos, a remuneração devida pelo uso das obras. De posse dessas ferramentas, os criadores foram capazes de lidar com as ameaças que a evolução da tecnologia foi colocando em seu caminho.
Na era da internet, foram logo detectados os sinais de que as dificuldades seriam superlativas. Primeiro, porque os novos meios de comunicação se desenvolveram em velocidade vertiginosa, sem levar em consideração conceitos básicos como o da aplicação territorial das leis e as definições tradicionais dos tipos de direitos envolvidos. Segundo, porque seu aparecimento coincidiu com a formação dos grandes mercados comuns que eliminaram as barreiras comerciais, sendo a União Europeia o exemplo mais emblemático. Terceiro, porque os criadores das obras que servem de conteúdo para as grandes plataformas de internet não foram chamados a participar das negociações com as indústrias culturais que detêm parte de seus direitos autorais e conexos.
Quanto ao controle desse direito, em um ambiente em que a desmaterialização das mídias físicas (CDs, livros etc.) tornou-se uma ameaça a mais, a resposta internacional à comunidade artística foi dada por meio de dois tratados internacionais aprovados na OMPI em 1996. Esses instrumentos criaram duas soluções: a criação de um direito de posta à disposição do público e a adoção de medidas de proteção tecnológica para evitar o acesso às obras e à reprodução sem a autorização dos titulares.
Nos Estados Unidos, em 2000, o Digital Millenium Act criou o conceito de safe harbor, pelo qual as plataformas não respondem pelos conteúdos postados por terceiros. Os tratados da OMPI, que não foram adotados no Brasil, mas tiveram alguns de seus artigos transpostos para a lei nacional, não se mostraram suficientes para resolver os problemas enquanto o safe harbor, aplicável apenas nos Estados Unidos, e internacionalizado por via contratual, é uma das causas das quantias reduzidas que chegam às mãos dos criadores, quando chegam.
Em meio a essa situação, os contratos que as plataformas assinam com a indústria fonográfica e editorial contêm cláusulas de confidencialidade e não são disponibilizados aos criadores. Em 2015, o vazamento na imprensa do contrato entre a Sony Music e o Spotify, no episódio que ficou conhecido como Sonyleaks, revelou detalhes importantes das negociações globais que reabilitaram a então combalida indústria fonográfica, com os resultados nada satisfatórios de que se queixam autores e artistas em todo o mundo.
Nesse cenário em que os autores não têm seus nomes identificados pelas plataformas, em violação ao seu direito moral de paternidade, também foram levantadas, no Brasil, questões relativas à gestão dos direitos, que vêm sendo objeto de interpretações e desentendimentos apreciados pelos tribunais do país, gerando grande insegurança jurídica. Mas não são apenas essas as questões que precisam ser resolvidas.
A questão tributária também deve entrar na pauta do aperfeiçoamento da legislação brasileira, uma vez que as verbas provenientes de assinaturas e publicidade são majoritariamente faturadas no exterior, contrariando os interesses econômicos nacionais. Em dezembro de 2015, o Brasil levou à OMPI, em nome do grupo de países latino--americanos e caribenhos, uma proposta para a criação de um novo marco regulatório multilateral adequado aos novos modelos de negócios e ao comércio eletrônico. A proposta foi acolhida com entusiasmo, inclusive pela Cisac, organismo não governamental que reúne entidades de autores de todo o mundo.
Essa iniciativa, então formulada pelo Ministério da Cultura, pode resultar na solução equilibrada que, sem ser um obstáculo ao avanço tecnológico, restitua aos criadores o justo protagonismo no sistema de direitos autorais que a eles se destina.
Vanisa Santiago é advogada, professora desde 1986 dos cursos anuais sobre Direito de Autor e Conexos da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) e membro efetivo da Comissão Permanente para Aperfeiçoamento da Gestão Coletiva do Ministério da Cultura.
Daniel Campello Queiroz
You Tube. Spotify. Direitos. Remuneração. Essas são palavras que, no Brasil, em vez de sugerirem benefícios aos criadores de música, representam, ao contrário, incertezas. Em 2018, completam-se dez anos da entrada do Spotify no mercado da música mundial; o YouTube iniciou suas operações em 2005 – tendo sido adquirido pelo Google no ano seguinte. É indiscutível que esses dois players são os protagonistas no processo de transformação do negócio da música, em razão de introduzirem uma inovação disruptiva: substituir a compra de música em exemplares por um serviço de acesso ao conteúdo por meio do pagamento de um valor mensal ou com publicidade. Entretanto, os reflexos positivos da economia digital ainda não puderam ser completamente sentidos no Brasil.
Enquanto a maior parte dos mercados musicais do mundo cresceu em 2016 – o México, por exemplo, teve uma expansão de 23,6% –, o Brasil foi o único país da América Latina em que o mercado da música retraiu 2,8%. É importante ressaltar que os compositores mais relevantes da nossa música não têm contrato com o YouTube: o gigante do negócio do streaming.
A causa? No Brasil ainda não se definiram os direitos envolvidos nessa atividade que revolucionou o mercado. Por isso, a alegação de representantes das gravadoras e de editoras majors, no sentido de que o encolhimento do mercado brasileiro partiu de uma retração no Produto Interno Bruto (PIB) do país, não pode ser aceita.
De fato, comparando-se a evolução dos PIBs de países da América Latina, o Brasil sofreu uma queda de 3,4%. No entanto, o México teve um crescimento de apenas 2,1%, enquanto o mercado de música daquele país, como referido, cresceu 23,6%. Não são necessários profundos conhecimentos de economia para verificar que a alegada relação direta entre crescimento/retração do PIB e crescimento/retração do mercado da música de um país não passa de uma mera tentativa de criação de uma cortina de fumaça.
A crise do nosso mercado musical passa ao largo de questões macroeconômicas e tem origem na política legislativa e regulatória do país: o Brasil não tem um arcabouço de regras que permita que os negócios de música sejam firmados com fluidez.
Curioso é que, mesmo se levando em consideração esse vazio regulatório, ainda se busca no país uma resposta estanque para uma pergunta: afinal, streaming é ou não execução pública? Ora, o fato é que analisar o uso de música em um meio tradicional como a televisão, por exemplo, já seria tarefa que envolveria alta complexidade. Por que, então, partirmos de uma pergunta simplista do tipo “é ou não é” quando estamos diante de um modelo de negócio ainda mais complexo que, precisamente por ser uma inovação disruptiva, refundou as bases do mercado?
O fato é que streaming não é, apenas, execução pública. Esse modelo de negócio complexo contempla vários direitos: desde o momento em que há o oferecimento da música para consumo (direitos de distribuição), até o ato em que a música é consumida (direitos de execução pública e direitos de reprodução). Trata-se do feixe de direitos que caracteriza o direito autoral – o que os americanos chamam de bundle of rights.
E pior: busca-se uma resposta reducionista com guerras nos tribunais. O resultado não poderia ser mais inadequado. Em processo considerado um leading case sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, em ação movida pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) contra a Oi FM, decidiu em sede de Recurso Especial que streaming contemplaria apenas os direitos de execução pública. Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em demanda ajuizada pelo Google/YouTube contra o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e a União Brasileira dos Editores de Música (Ubem), decidiu em sentença que streaming contemplaria apenas direitos de reprodução, excluindo-se os direitos de execução pública. É notório que a controvérsia está longe de ter um fim pacífico. E quais ensinamentos podemos tirar disso? Seriam os tribunais a arena mais adequada para a solução dessa complexa e especializada problemática?
Desnecessário ser um jurista para concluir que não. Porém, encontrar a solução também não é tarefa simples. O fato é que o Brasil não aderiu aos tratados internacionais da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WCT e WPPT), destinados a possibilitar a criação, nos países signatários, de arcabouços jurídicos próprios aos negócios correntes na arena digital e na internet – também conhecidos como “os tratados de internet”.
Ao não aderir a esses tratados, o Brasil não se ateve de forma técnica à tarefa de implementar um instituto muito importante para a regulação dos negócios digitais: os making available right. Nota-se, portanto, a dificuldade de esperar por uma solução quanto à problemática do streaming com base na guerra dos tribunais brasileiros. Para a estruturação do negócio da música digital no país, esse cenário leva a crer que o melhor caminho para o Brasil é que ele incorpore os tratados de internet e inicie uma discussão sobre a implementação do making available right.
Daniel Campello Queiroz é advogado, mestre em Propriedade Intelectual pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPED-IE/UFRJ e doutorando na mesma universidade; é diretor executivo da CQRights.