Postado em 30/01/2018
Foto: Francisco Lessa
Os dedos da mulher tremeram quando ela passou o ferrolho na porta, trancando-se no banheiro. Não acendeu a luz. Não precisava. Os celulares – esses pequenos instrumentos do demônio – são como as estrelas: têm luz própria.
Apertou com força o aparelhinho na mão, sentindo a superfície lisa e fria. Era ali dentro que estava a resposta. Sim ou não? Seria verdade? Não é possível, não posso acreditar.
Sentou-se no banco junto ao boxe, encostando-se ao toalheiro elétrico. Seus gestos eram lentos, medidos, fazia tudo como se estivesse debaixo d’água, ou na Lua, ou em outra dimensão. O corpo se movimentava quase à revelia, mãos trêmulas agarradas ao celular, sem querer largar. Não podia fazer nenhum ruído. E se Benjamim acordasse? O banheiro era no fim do corredor, longe do quarto, é verdade. Mas ainda assim era arriscado.
Respirou fundo. Tentou se acalmar pensando em alguma coisa boa, um lugar distante, calmo, limpo. Sempre fazia isso nos momentos de agitação, costumava funcionar. Tentou. Uma praia. O sol batendo nos olhos fechados. Arabescos cor de laranja, um cheiro de capim. Um silêncio enorme à sua volta. Estava sozinha, quieta. Podia sentir nas costas recostadas as ripas da madeira de alguma espreguiçadeira. Um hotel, talvez. Uma ilha, quem sabe? O mar, dele podia sentir o cheiro. Era um mar manso, de baía. Um mar de águas paradas. Droga! O barulho da descarga quase a fez saltar. As águas pútridas de um vaso sanitário, sendo esgotadas por um vizinho insone, acabavam de cortar a madrugada, tsunami de real invadindo seu devaneio.
Endireitou-se no banco, esticou as costas. Postura. As narinas expandidas sentindo o ar entrando e saindo, entrando e saindo. Pensou em recomeçar. Mas, antes, pressionou o pequeno botão vermelho do toalheiro elétrico. Queria sentir nas costas o calor, esperar que as ondas mornas que circulavam por aquele encanamento prateado transmitissem a seu corpo a antítese da frialdade, do fio de gelo que lhe subia e descia pelo estômago, pela glote.
Tinha recebido o bilhete de manhã. Alguém botara embaixo da porta. O bilhete que denunciava tudo, dava detalhes. Muitos detalhes. E dizia que, se ela tivesse dúvida, que procurasse as mensagens no celular dele.
A mulher olhou para o aparelho que tinha nas mãos. O celular do marido. Seus olhos, já acostumados à penumbra, percebiam o brilho do vidro, a moldura de metal. Benjamim nunca me escondeu nada, ele sabe que eu tenho a senha.
Essa é a maior prova de que é tudo mentira, uma intriga de alguém que tem inveja de nossa felicidade. Somos um casal tão querido, tão admirado e...
Mas e se fosse verdade?
Precisava saber. Tomar coragem, ligar o pequeno botão, ver a tela se iluminar, procurar as mensagens. Ler. E pronto. Tudo estaria esclarecido. Era simples, não precisaria nem comentar com ele, nada, nada. Amanhã seria outro dia, tudo estaria esquecido. Os detalhes. Muitos detalhes. Mas era intriga, tinha certeza, só podia ser. Tinha de ser.
Ligou o aparelho, o dedo pressionando a mínima saliência na borda. Digitou a senha, observou os ícones. Um deles, verde, o ícone das mensagens, olhava para ela como um olho de gato. Mas Benjamim nunca. Um homem tão digno, tão ético. Sempre tão correto em tudo. Os maridos das amigas eram diferentes. Deles, ela esperaria qualquer coisa. Mas não de Benjamim. Seu marido era um homem verdadeiro.
Desde jovens, quando se conheceram, ela o admirava. O encontro acontecera em uma festa da Faculdade de Medicina, onde Benjamim estudava. Por que ela fora àquela festa? Já não sabia bem, mas talvez tivesse sido por causa de seu trabalho de voluntária na organização de apoio a pessoas com Aids. Na época, a doença era uma sentença de morte e ela se sentira compelida a ajudar. Nos quartos dos hospitais públicos, esqueletos ainda recobertos de pele olhavam para ela do fundo dos lençóis encardidos. Às vezes, havia um sorriso, um aperto de mão. Mãos amarelas, manchadas, peles que pareciam pertencer a outra categoria de seres, não a humanos. Medo. Dor. Mas um impulso dentro dela a fazia continuar com as visitas. As reuniões do grupo eram às quartas-feiras, em uma pequena sala da Praça Saens Peña, na Tijuca. E os voluntários às vezes assistiam a palestras de médicos, na universidade. Viera talvez daí o contato, o convite para a festa de fim de ano na Faculdade de Medicina.
Benjamim. A recordação era fragmentada, mas ela revia mentalmente os recortes, as conversas à beira de uma piscina de água verde, o murmúrio da mata, o bambuzal derramado sobre o jardim. Fora tudo muito repentino, muito natural. Poucos anos depois, quando Benjamim se formou, já estavam casados.
Juntos, tinham sonhado com um mundo melhor. Benjamim era um homem especial. Transparente. De uma franqueza às vezes desconcertante.
Não vamos ter filhos, disse um dia.
Assim, sem meias palavras. Ela ficou olhando para ele, em silêncio. Benjamim explicou que o mundo precisava deles por inteiro, seriam servidores dedicados. Se tivessem crianças para cuidar, isso os desviaria do caminho. Ela aquiesceu. Tudo o que ele dizia fazia sentido.
Com o tempo, a dedicação dele se aprofundou. Horas e horas, todos os dias da semana, às vezes também aos sábados, domingos, feriados, Benjamim estava no hospital. A mulher compreendia. Mas com ela própria acontecera uma transformação. Depois de alguns anos, se afastara de seu trabalho de voluntária. De repente, já não suportava o convívio com os doentes, aqueles rostos encovados, a pele escura que crestava o sorriso, os lábios ressequidos que a faziam pensar em lagartos. Tomou horror. Ainda continuou indo às reuniões, mas as visitas às clínicas não conseguiu mais fazer. Sua garganta se trancava, sentia subir pelas costas um arrepio de horror. De nojo. De medo. Mentiu. Disse aos companheiros do grupo voluntário que estava grávida, que a convivência insalubre lhe seria impossível. Meses depois, desapareceu das reuniões sem se despedir.
O calor emanava agora do metal às suas costas. O líquido misterioso que percorria os canos do toalheiro elétrico já estava quente. Ela nunca entendera bem como era o processo. Mas era uma satisfação imensa sair do banho e encontrar a toalha seca, quentinha. O celular também estava quente. Mas Benjamim jamais faria isso. Um caso, talvez, ela ainda podia admitir, mas não uma traição tão grande. Toda uma vida paralela, casa, filhos. Filhos nunca! Não podia ser.
Mas e se fosse, e se fosse? O bilhete dava detalhes, muitos detalhes, o endereço, os nomes, uma coisa sórdida. Ergueu-se do banco. Sentiu a pele nua das costas descolando-se do calor do toalheiro. Ficou de pé, a palma queimando, a outra mão amparada à parede. Sentia-se tonta, nauseada. Talvez devesse enfiar o dedo na garganta. Aliviar-se. Arrancar de dentro de si aquela história, aquele ponto escuro de dúvida, de mentiras, de calúnias, aquele bolo de horror.
Ergueu a tampa do vaso. Observou o chão de ladrilhos. No escuro, os desenhos do piso hidráulico formavam olhos, as figuras geométricas ondulavam, todo o chão parecia fugir de sob seus pés. Não podia ser verdade. Se fosse, teria que jogar fora uma vida inteira de certezas. Não podia ser! Não, não, não, não deixaria que fosse. Não se deixaria levar por aquela mentira, aquele absurdo, o lodo desconhecido que ameaçava invadir sua vida perfeita, linear. Limpa. O celular queimava, queimava. Uma película de suor lhe porejava das mãos, quase como uma súplica. Melhor não saber. E com um impulso a mulher abriu os dedos. O celular caiu dentro do vaso. Como uma geleira que se desprende na solidão antártica, respingou água para todo lado.
Heloísa Seixas é autora de mais de 20 livros, entre romances e volumes de contos e crônicas.
Foi quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti e uma vez finalista do Prêmio São Paulo.
Entre suas obras estão: Agora e na Hora (Companhia das Letras, 2017) e O Lugar Escuro (Ed. Objetiva, 2007).