Postado em 28/02/2018
ALINHO
É preciso voltar
às rosas mais antigas
e suas exuberâncias
e seus frêmitos de infinito
às palavras surgentes
às vozes prometidas
nos ecos do que amanhece
é preciso voltar
aos gatos que compõem a noite
às cálidas cantorias
ao flagrante do gosto
aos votos interrompidos
às garatujas nos muros
às cigarras já sem valia
voltar será sempre preciso
girar a chave de formato único
pisar nas tábuas lassas e confessas
ouvir o apelo do oco
a ascese dos liquens no tronco
fazer irromper acenos que
contêm não só desfechos.
Os silêncios recuperam
a porosidade das rochas
o advento das peças da flor
o insabido da brasa
e a razão à palavra.
É preciso acalentar
o momento em que se resolve
a história do espinho
e saborear
o estremecimento.
LIDA
nesse dia mesmo
em que se é pura perda
em que se sofre saques e ludíbrio
catar os cacos
porque seguem tendo a mesma feição do todo
ajuntar migalha e estilhaço
e conjugar em modo subjuntivo
porque se quer depurar o que nos diz
o exórdio das rosas de inédito semanticismo
e não se pode demorar tempo
porque instaura-se um limo impeditivo
e mirram-se asas e expiram voos
e não se queira demorar tempo
porque precisa-se de quem cuspa firme à distância
de quem preste-se a ter os pés queimados pela brasa
de quem espane o logro dos discursos ferrugentos
e delate a rigidez das pétalas dissimuladas
de quem cutuque de quem esgaravate
porque nesse dia mesmo
não se pode mais tomar como acalanto
a ode espúria dos cínicos
e não se pode mais tingir de falso rubro
o fundamento do sangue
e não se pode permitir que façam gorar
a pulsão apta e evoluída
flórea e vigorosa
do verso
ACONTECIDO
buscava a outra claridade
aquilo do invisível que o gato vê
aquilo de requinte na confusão do jardim
buscava o outro ouro
aquilo do magma no exercício de fundir-se
aquilo do hálito num recitar juramento
buscava o outro final da saga
aquilo de soprar deixas no escuro
aquilo de fundar os corpos juntos
buscava a outra simetria
aquilo de imortal na ode ao rosário
aquilo de avocar a fuga das jaulas
além de tudo buscava
cavalos já saciados numa fortuna
de pasto de verão e de afago
além de tudo buscava
a mesma boca a mesma sede fecunda
no querer da mesma água
num só trago
TERSO
sombras tomam o espírito
e então limpamos as ervas do jardim
em silêncio absoluto
tiramos o pó do templo
e novamente e então de novo
recolhemos as cinzas do incenso
porque as sombras tomam nosso espírito
limpamos e repetimos os gestos
não porque não se entenda a sujeira
porque se infira anistias
mas para purgar as fraquezas
as brechas os rombos a mentira que vem colada
aos desejos de eternidade
limpamos o caminho entre a porta
e a estrada
a porta de saída e a estrada de infinitude
lustramos o assoalho
dobramos toalhas
reposicionamos pedras
cuidamos de varrer no sentido das fibras do tatame
não porque haja pacto com o limpo
mas porque às vezes são as sombras
que assaltam e impedem que o espírito
mova-se
cristalino
VARIANTE
a dor do animal
em mim
recruta histórias
faz amanhã secar o leite
faz ontem pisar sobre os cacos
faz hoje ser tarde
o olho do animal
em mim
verdeja lavras
acende a fome
expõe algum desamparo
dança restos
a pele do animal
em mim
encena correntezas
espalha as cinzas
requenta as chuvas
atira facas
o chifre do animal
em mim
declara aprumos
devolve o escrúpulo aos faunos
convence o mestre
faz dormir a sina de fera indomesticável
que com minha mão de pequenezas
toco
e o inaudito sobressalto
assoma viço e sopro
a inferir os vendavais que devastaram
peles e mais os segredos
os uivos silenciados
que forjaram os corações
do esquecido
e um entusiasmo manso
nasce
da dor sucedida
puro
olho
HISTÓRIA DE AMOR
que disparate tentar falar de amor
num poema neste poema
não se segura da primavera
o adágio do pássaro
não se leva pra além da lembrança
o gosto que a boca conheceu da fruta
sem nada saber de você
as cartas voltaram
os búzios se confundiram
a noite é pura orfandade
eu atravessei uma rua além do infinito
e eram areias e cansaço
e o tempo passa devagar tirando lascas da gente
e a chuva corta
e o tempo passa devagar
e escorrem as lembranças boas
que eu queria colar num álbum
escorrem numa lentidão de quase insanidade
sem nada saber de você
sei que quando se esfarelar
a última flor dessas que eu seguro
desapareci
Luci Collin é poeta, ficcionista e tradutora. Tem 18 livros publicados, entre os quais: A Palavra Algo (Iluminuras, 2016),
que ganhou o Prêmio Jabuti 2017, Nossa Senhora
D’Aqui (Arte & Letra, 2015), A Árvore Todas (Iluminuras, 2015)
e A Peça Intocada (Arte & Letra, 2017).