Postado em 27/04/2018
Para morrer, basta estar vivo. Mas será que encaramos a finitude com a mesma objetividade desse provérbio popular? O fato é que não pensamos no dia em que nossa mente e coração deixarão de dar sinais vitais. E por não refletir sobre o assunto, questões importantes, como testamento vital, não são debatidas. “Numa situação como essa, sem ter preparado o seu testamento vital, a pessoa fica à mercê das decisões dos seus herdeiros e dos seus médicos, sem a possibilidade de fazer escolhas mais condizentes com o que ela gostaria que acontecesse”, aponta Elca Rubinstein, economista sênior do Banco Mundial, especialista em gerontologia e envelhecimento, que participou do ciclo Finitudes, atividade com debates, espetáculos, oficinas e mostra de filmes realizada no Sesc Ipiranga, entre outubro e dezembro. Também evita-se pensar na hora da morte. “Há alternativas para a morte com dignidade legalizadas em nosso país para pacientes gravemente enfermos. A Resolução da Ortotanásia do Conselho Federal de Medicina (CFM - Resolução 1805/2006) afirma que não é antiético que médicos interrompam tratamentos em pacientes que não têm mais possibilidade de recuperação, desde que sejam continuados os cuidados para alívio de sintomas, garantindo qualidade de vida”, explica Maria Julia Kovács professora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma instituição. Sendo assim, como lidar com a perspectiva do fim? Rubinstein e Kovács escrevem sobre o tema.
Elca Rubinstein
Testamento vital está na moda! Até alguns anos atrás, ninguém pensaria em fazer um testamento vital: não era necessário. As pessoas ficavam doentes, morriam e, portanto, não precisavam de intérpretes que tomassem decisões importantes quando o doente não estivesse mais em condições de comunicar suas diretivas às equipes de cuidados médicos. Isso era antes. Hoje, com o desenvolvimento da medicina, da tecnologia diagnóstica e da indústria farmacêutica, pessoas doentes permanecem vivas por muito mais tempo, muitas vezes em condições bastante fragilizadas, e frequentemente com dificuldades de comunicação, seja por terem perdido a consciência da realidade, seja por problemas de audição, visão ou fala. Numa situação como essa, sem ter preparado o seu testamento vital, a pessoa fica à mercê das decisões dos seus herdeiros e dos seus médicos, sem a possibilidade de fazer escolhas mais condizentes com o que ela gostaria que acontecesse.
Porém, falar sobre morte – a nossa ou a dos outros – é um tabu! A maioria das pessoas evita essa conversa ou essa reflexão. Se entre os mais jovens a desculpa é que eles têm outras preocupações e desafios e não encontram tempo para focar nessas questões, entre os mais velhos, o problema é que não querem tomar contato com a finitude que já se lhes apresenta de tantas formas diferentes. Uns dizem que ainda não é chegada a hora de pensar no assunto, pois estão se sentindo muito bem. Outros, mais religiosos, preferem deixar tudo nas mãos divinas e consideram uma heresia tocar no assunto. E há também os que acham mais confortável deixar tudo para que os filhos decidam quando chegar a hora.
Em todos esses casos, as pessoas abrem mão de usar seu livre arbítrio para propor as suas diretivas antecipadas de vontade, condizentes com sua visão de dignidade na vida e na morte. E, com isso, perdem a oportunidade de ajudar suas famílias e seus médicos a decidirem entre opções de tratamento na hora que as pessoas já não puderem mais manifestar suas vontades.
Foi pensando nisso que decidi fazer meu testamento vital. Fiz e reconheço que os resultados do processo foram muito além dos benefícios esperados. O que descobri fazendo o meu testamento vital foi que os ganhos para a minha vida aqui e agora foram ainda mais importantes do que as questões práticas para quando eu estiver morrendo.
O testamento vital pode ser feito utilizando um formulário específico. Foi essa a minha opção. Achei mais fácil refletir sobre perguntas que estavam colocadas no papel do que escrever um documento de próprio punho. Esse formulário nos leva a pensar sobre diferentes situações e propõe alternativas para cada uma delas. Demorei alguns meses em conversa comigo mesma, tentando imaginar os vários cenários, como se estivesse assistindo a um filme, e fui delineando minha visão sobre o que queria e o que não queria no final da minha vida.
Também demorei um tempo pensando em quem seria meu “procurador”, a pessoa que falaria por mim quando eu já não puder mais fazê-lo: seria melhor nomear alguém mais próximo, que me conheça bem, mas que talvez venha a sofrer muito na hora de tomar decisões, ou alguém mais neutro e mais distante? Ultrapassada essa fase ensimesmada, iniciei duas rodas de conversa: uma com meus médicos e outra com meus filhos.
Diálogo necessário
A conversa com os médicos foi em forma de peregrinação. Ao longo de um ano, no processo de consultas de rotina, fui interagindo com cardiologista, geriatra, endocrinologista, psiquiatra, fisiatra e outros especialistas, cujas opiniões eu queria escutar para poder fazer minhas escolhas. Eles me ajudaram a pensar nas possibilidades e me falaram de questões relacionadas à ética médica. Terminei a peregrinação mais convicta da minha visão e dos meus quereres.
Hoje tenho claro que, se eu estiver morrendo de uma doença que não tenha cura nem volta, não quero ser submetida a tratamentos fúteis e invasivos, que tenham o único propósito de prolongar minha vida artificialmente, por alguns dias ou semanas. E quando será a hora de recusar esses tratamentos? Quando dois dos médicos da minha lista de especialistas, ou que estejam cuidando do meu caso, perceberem que minha morte esteja próxima, ou que eu esteja em estado de coma ou com lesão cerebral sem expectativa de saída ou de recuperação.
Paralelamente, comecei a conversar com cada um dos meus três filhos. Minha filha mais velha aderiu à conversa desde o primeiro momento e muito contribuiu para as minhas reflexões. Os filhos homens tiveram outra reação e demoraram mais para participar do diálogo. Hoje todos eles são parceiros em vários questionamentos. Faço uma revisão no meu testamento vital todos os anos e são meus filhos que me ajudam a continuar pensando nas minhas escolhas.
Pelo lado prático, como minhas decisões foram sendo definidas em rodas de conversa com os filhos e os médicos, sinto-me totalmente segura quanto às escolhas que fiz, e sei que todos eles honrarão essas escolhas. E assim deverá ser, ainda mais porque acabo de ter uma audiência com a Juíza da 14ª Vara Civil de São Paulo, que homologou a jurisdição voluntária que torna minhas diretivas antecipadas de vontade imunes a qualquer contestação por parte de terceiros. Minha vontade terá força de lei!
Num outro aspecto, definir minha visão de morte com dignidade será importante não só para quando eu não puder mais me comunicar. Essa visão será fundamental para eu tomar decisões mesmo enquanto estiver em condições para tal. Perdi o medo de pensar no assunto e me sinto mais bem preparada para o que der e vier.
Empoderamento
Vale lembrar que enquanto a pessoa puder se comunicar, a vontade dela é soberana e não há nenhuma necessidade de testamento vital. Enquanto eu estiver lúcida, decido e informo se quero ou não tomar um remédio, ou comer, e se dou o consentimento para fazer uma cirurgia, ou ir para a UTI. O testamento vital passa a ser primordial quando eu não puder mais falar e essas decisões tiverem que ser tomadas pelo meu procurador. Sinto-me muito empoderada em saber que tenho uma visão que vai nortear as minhas decisões, e também as de meu procurador, quando for necessário.
Apesar do exposto, alguém ainda poderia questionar qual a vantagem de todas essas reflexões e decisões. Minha resposta é que aí reside o grande trunfo. Por abraçar e respeitar a minha finitude, e por encarar a ideia da minha morte com serenidade, criei um futuro concreto para mim, e estou vivendo cada minuto desse futuro com muito prazer: invisto nas minhas relações familiares, parei de pintar meu cabelo, fiz um filme sobre mulheres de belos cabelos brancos (Branco e Prata), voltei a estudar e me coloco à disposição para ajudar quem quiser tentar trilhar esse caminho de empoderamento.
Elca Rubinstein, economista sênior do
Banco Mundial por 18 anos, especialista em
gerontologia e envelhecimento. Criadora do Death
Café Sampa, um grupo de discussão sobre morte.
Maria Julia Kovács
Todos temos direito à vida. Está na nossa Constituição promulgada em 1988. Mas não há nesse documento nenhuma menção sobre o direito de morte. Sabemos que vamos morrer um dia, assim como ocorrerá com nossas pessoas queridas: pais, irmãos, professores e amigos. A universalidade da morte, bem como sua irreversibilidade, são as difíceis tarefas que todo ser humano aprende desde a infância.
À medida que o desenvolvimento se processa, novos conhecimentos sobre a morte são adquiridos, a partir das experiências vividas. A perda de pessoas queridas com as quais estabelecemos vínculos faz com que entremos em processo de luto para a elaboração da perda. Os sentimentos ficam intensos, principalmente nas primeiras fases do luto, podendo ocorrer o desejo de acompanhar a pessoa morta, já que sem ela a vida pode perder o sentido. Muitas pessoas enlutadas sofrem, sentem que poderão enlouquecer de dor e que não conseguirão enfrentar as atividades diárias. O enlutado não está doente, mas necessita de cuidados e acolhida. Esse é um momento em que a morte se aproxima de nós e é a primeira experiência de morte para crianças e adolescentes.
A presença de adultos compreensivos e acolhedores ajuda a elaborar as primeiras perdas e terá influência na forma como crianças e jovens vão elaborar as próximas mortes. Na maior parte das vezes, o processo de luto evolui e a pessoa vai retomando sua vida, embora em alguns casos haja necessidade de cuidados psicológicos e psiquiátricos, principalmente se for percebido risco de adoecimento e morte.
Prolongar é preciso?
Há momentos críticos em que a morte pode se insinuar na vida como opção para diminuir o sofrimento vivido. A morte pode ser a possibilidade de restaurar a dignidade, enfrentar a humilhação ou mesmo ser punição para uma transgressão. A morte, nesses casos, pode representar alívio e descanso. Essa escolha ocorre com certa frequência em pacientes com doença avançada com múltiplos sintomas. Alguns tratamentos podem levar à cura ou remissão de sintomas, outros apresentam benefícios pequenos, ou só mantêm a situação presente, com efeitos colaterais, por vezes, mais incômodos do que os sintomas que visam combater.
Essa situação de prolongamento da vida com dor e sofrimento ocorre em instituições hospitalares, com maior frequência em Unidades de Terapia Intensiva. Em alguns casos trata-se de prolongamento do processo de morrer com sofrimento, conhecido como distanásia. É natural que pacientes, se conscientes, expressem o desejo de que sejam interrompidos tratamentos invasivos e de que possam morrer em paz. Trata-se de um desejo de morrer, mas ainda não configurado como o direito de morrer.
Houve grandes progressos nesse sentido, ampliando a discussão não só sobre a aceitação do desejo de morrer, mas, em algumas circunstâncias, evoluindo para a aceitação do direito de morte. As notícias frequentes sobre pedidos de eutanásia, suicídio assistido e morte com dignidade são algumas das vias que expõem essas questões. A eutanásia e o suicídio assistido estão legalizados em poucos países e restritos a pessoas com doença avançada e sem possibilidade de recuperação.
Pelo direito
Há alternativas para a morte com dignidade legalizadas em nosso país para pacientes gravemente enfermos. Uma delas é a ortotanásia (a morte na hora certa com dignidade), em que se procura combater a distanásia. A Resolução da Ortotanásia do Conselho Federal de Medicina (CFM – Resolução 1805/2006) afirma que não é antiético que médicos interrompam tratamentos em pacientes que não têm mais possibilidade de recuperação, desde que sejam continuados os cuidados para alívio de sintomas, garantindo qualidade de vida. A ortotanásia não visa provocar a morte, mas é a possibilidade de evitar a distanásia.
As Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) envolvem outra resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM - 1995/2012) que permite que pacientes exerçam sua autonomia, assumindo o controle sobre sua vida, na sua finalização. As DAV são expressão da vontade da pessoa em qualquer momento da vida e permitem conhecer o que ela quer ou não em relação aos tratamentos a que será submetida. Essa pode ser a maior aproximação para atender o desejo do paciente, um caminho para o desenvolvimento do direto à morte.
Esse documento tem validade de uma resolução do Conselho de Medicina; portanto, direciona a ação médica para o respeito ao que o paciente gostaria para sua vida, e principalmente o que não quer que seja feito, assumindo responsabilidade por sua existência. Esse documento deve ser seguido pela equipe de saúde e constar do prontuário do paciente. É o direito a uma vida com qualidade e à sua finalização com dignidade.
Maria Julia Kovács, professora livre-docente do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma instituição.