Postado em 29/05/2018
Que as palavras não se envergonhem, não se envergonhem de existir. Nem que se esqueçam, se esqueçam de viver. Nem do compromisso. Comigo, com você. Que se lembrem o quanto pode custar. Não ser dita, o quanto custa – custa tanto – a palavra não dita. Calada, lá no fundo, mesmo a menor palavra é um monstro. É um monstro, você sabe. Você sabe o valor.
Não tem sido bom, o que eu sou. É, o pior de mim deu para ver. Não, não por causa deles, imagine, não, mas deu para ver. E eu quase nem fiquei triste, eu quase esqueci. Mas no outro dia, de novo, deu para ver (mesmo quase esquecendo). Mas, sim, então eles. Não eles, eu. Eu todo dia pensando em como emergir do lodo. Tal qual lótus, a flor, conhece a história? É manjada. O melhor de você, o melhor que pode ser de você lá no fundo, aquilo perdido no tempo e no existir feroz, vá buscar. Vá buscar na cidade barulhenta, entre trocados e você, entre prateleiras e você, na velocidade de uma ambulância, vá buscar. Você.
Um sorvete, me dê o melhor sabor, o melhor que você pode oferecer, o melhor que você é capaz de produzir, por favor, o mais cremoso, o mais indulgente, o mais gorduroso e cheio de açúcar, por favor, é uma emergência, duas bolas, uma casquinha, por favor, o melhor que você pode fazer por mim, por favor, é uma emergência.
As últimas notícias te ensinam.
Carpe diem.
As últimas notícias murmuram.
Carpe diem. No seu ouvido, carpe diem.
Porque é mais dramático em latim.
E ao drama você cede quando chora na área de serviço e suas lágrimas debruçadas sobre a máquina de lavar ficam ridículas quando você lê: branco muito sujo, branco pouco sujo, colorido sujo, delicados sintéticos, lã, enxágue, centrifugação.
O que você estava dizendo? Como é mesmo que você falou aquilo? Você estava com a boca cheia daquelas coisas, dava para pensar que eram cheetos ou salgadinhos sintéticos, mas eram palavras – eram palavras aquelas coisas na sua boca aberta. Palavras como se não coubessem, como se você tivesse colocado demais. Não cabiam na sua boca e então pareciam expulsas como quem sai para trabalhar numa segunda nublada ou como quem esvazia a casa da enchente turva. Mas como podiam ser palavras se lembravam balas de gelatina com corante ou aquelas bolinhas de queijo artificiais, mas comestíveis, vendidas no ponto de ônibus, entende? Quase não dava para perceber que eram palavras – como é mesmo que você disse?
Eles procuravam as palavras, sim, procuravam na lama. Procuravam as palavras na lama, estou te dizendo, escute. Afundavam-se no lodo em busca delas. Mergulhavam no meio de toda aquela sujeira, aquilo alcançava meio corpo, alguns tinham só a cabeça de fora agora. Tinham receio de nunca mais. Sim, receio de ficar entre elas, no meio daquilo, aquilo de se deixar ficar entre palavras era assustador, mas não conseguiam evitar a compulsão de estender os braços mais longe ou mais fundo quando qualquer movimento era percebido na superfície. A superfície aparentemente morta daquele lugar.
Caminhava como quem anda descalço sobre o asfalto quente. Alguém andando sobre brasa (diziam nos corredores). Como se todo o concreto fervesse sob seus pés sem que isso pudesse ser evitado (preenchiam na área do relatório reservada aos comentários livres). Porque andar era um pouco mais do que simplesmente andar (muito mais do que o exigido no requerimento-padrão do contrato). Era preciso ir em frente.
Sim, eles possuem as respostas, claro, você é que não sabe o que poderia dizer, mas eles sabem, eles sempre sabem o que dizer, eles podem se manifestar sobre tudo, tudo, qualquer tema, pergunte, pergunte logo qualquer coisa ou lance qualquer polêmica e eles terão o que dizer, eles responderão imediatamente, postarão menos de uma hora depois enorme mensagem ou detalhada declaração ou ponderada opinião acerca do seu mundo, sim, o mesmo mundo que acontece para você, sim, o seu mundo também, aquele que mal amanheceu ou se revelou.
Para você.
Para o melhor cajuzinho do mundo, torre os grãos de amendoim com a casca e, quando eles esfriarem, chame a sua neta e peça para ela esfregar um contra o outro. Em seguida, vá até o quintal com ela e soprem juntas a bandeja até que se levante uma nuvem vermelha e leve contra o céu azul da periferia de Belo Horizonte. Moa o amendoim, acrescente doce de leite Itambé e chocolate em pó. Peça para a sua neta amassar aquilo com você, façam bolinhas e passem no açúcar, uma a uma, a quatro mãos – juntas e separadas pelo tempo de uma vida inteira.
Passou os dedos sobre a mesa. Estava cheia de pó. Sacudiu os cabelos sobre a superfície – eles caíram, muitos, brancos. Reuniu os fios e o pó lustrando como espelho o tampo e comeu. Tinha gosto de tempo.
Pedaço de pano, era só isso, esqueça. É pano. Agora pano rasgado por panela quente. Esqueça. Pedaço, poliéster, pedaço. Pedaço. De coisa, de pano, nada dura. Tudo se decomporá qualquer dia – o pano, a cor, a mesa sob o pano, o prato sobre o pano, o pão, suas mãos levando o café à boca, o próprio café que te faz acordar, mas um dia você dormirá porque mesmo o sol, o sol esfriará, quer dizer, explodirá, eles dizem, levará bilhões de anos, mas, sim, explodirá e a toalha que é de pano agora rasgado sobre a mesa sob o prato e suas mãos, tudo isso, tudo perecerá um dia na poeira feita de tecido, madeira, estrela, palavras, espaço e chama, essa luz. Essa sim, essa luz – esta que eu vejo agora nos seus olhos – esta sim, para mim, sobreviverá.
Minto para mim mesmo, uma vez por semana. Para mim, três vezes por semana eu minto pelo menos. Talvez todo dia. Todo dia, tem uma pequena - pequena, mas mentira. Para mim. Porque senão, não é possível. Seguir em frente, todo dia. Pelo menos uma vez por semana, qual o problema? Quem sabe todo dia? Existir?
A sua mentira. Aquela. Asfixiante. A sua particular mentira, a sua mentira de estimação era um oceano à meia-noite, espécie de mar revolto sozinho, na madrugada. Águas abandonadas à própria sorte, onde peixes adaptados há 45 milhões de anos nadam indiferentes à superfície. Criaturas alheias há 45 milhões de anos ao medo do escuro daquele ponto mais fundo criam comunidades e se reproduzem, abrem e fecham bocas, continuamente, há 45 milhões de anos. Porque mesmo ali, há 45 milhões de anos, necessitam de oxigênio. Brânquias. Oxigênio para sobreviver à sua mentira. Aquela. Asfixiante.
Silvia Gomez é jornalista e dramaturga, autora das peças O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade,
Mantenha fora do Alcance do Bebê – com a qual ganhou o prêmio de melhor texto da Associação Paulista
de Críticos de Artes (APCA), em 2015 –, Marte, Você Está Aí?, entre outras.