Postado em 29/06/2018
Batizada Arlette e sublimada como Fernanda, a atriz carioca moldou – e segue moldando – cada personagem vivida no rádio, no teatro, no cinema e na televisão por 75 anos. Para celebrar a longevidade como artesã das palavras e do corpo, ela lança o livro Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico (Edições Sesc São Paulo), na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), neste mês. Resultado de um dedicado trabalho artesanal, a obra organizada pela atriz costura, em 500 páginas, cartas, artigos e depoimentos de diretores, escritores, atores e amigos, com registros visuais de momentos emblemáticos da vida profissional e pessoal da artista. Nesta entrevista, em seu apartamento no Jardim Botânico (RJ), ela fala sobre o começo da carreira, a influência do pai, além das alegrias e dos contratempos no exercício da vocação. “Eu só queria ter um ofício na minha vida. Um ofício é uma arte de viver. Ele não ensina a você só a manufatura, ele te prepara, através desse fazer, para o recomeço diário”, conta.
Em que momento deixa de existir Arlette Pinheiro e nasce Fernanda Montenegro?
Foi na rádio MEC, onde trabalhei por dez anos. Uma rádio extraordinária, de uma potência cultural. Tinha uma vida intensa e presença musical e cultural de redatores, dentre esses, os melhores escritores e jornalistas da época. Depois de quatro anos lá dentro, fiz um programa chamado Passeio Literário, como redatora e locutora. E, quando tinha o radioteatro, também era radioatriz. Eu era Arlette Pinheiro como locutora e como radioatriz, mas inventei um nome para ser a redatora e aquela que adaptava os textos. Eram romances do século 19 que tinham como autores: Raymond, Ferdinand... Por isso escolhi Fernanda. Já Montenegro era do tempo da minha avó. Ele era o médico da família, salvava a todos. Por incrível que pareça, Fernanda Montenegro veio vindo e as pessoas já não me chamavam mais de Arlette Pinheiro. Quando tive a primeira experiência semiprofissional no teatro, nos anos 1950, já foi a Fernanda Montenegro.
Sua dicção nas interpretações, a compreensão de letra por letra do que você fala, é uma herança desse tempo na rádio, então?
Acredito que sim. Aconteceu o mesmo com Paulo Gracindo, que também foi um homem de rádio. O rádio na época em que fui adolescente, ou um pouco mais que adolescente, era assim: quem tinha que falar tinha que saber ler e entender o que está falando. Não era só um locutor. Na Rádio MEC, havia uma preparação também de entendimento cultural e intelectual do que se estava lendo. E eles nos preparavam. Tínhamos professores, pelo menos nos meus 15 anos, eu tinha um professor de português e um professor declamador. A declamação era para saber onde há a tônica do verso, onde está o domínio da intenção de um verso. Não sei como vai ser o falar das pessoas daqui a 100, 200 ou 300 anos. As pessoas não se falam, mas se comunicam eletronicamente. Eu ainda peguei a importância da palavra diante de tantas possibilidades do sentido, dependendo de onde ela é colocada. Mas, hoje, fico olhando – não estou avaliando se é bom ou se é mau –, e fico perdida. É interessante ver como será a comunicação verbal diante da ciência e da tecnologia. E que alfabeto vai sair dessa comunicação eletrônica por mensagens. Está se criando outro alfabeto. Está se criando uma nova era de comunicação humana que é muito instigante.
O que a motivou a organizar, neste momento, um livro sobre sua vida e trajetória artística?
Esse livro foi pensado a primeira vez há oito anos. E, há quatro anos, este livro está sendo trabalhado. Eu sou muito grata ao Sesc, muito grata ao Danilo Miranda. E também estou muito emocionada porque é o primeiro livro sobre uma atriz dentro desse levantamento que o Sesc solicitou, recebeu e coordenou sobre teatro. Porque sempre [há publicações] sobre diretores, cenógrafos e autores. Isso também é ótimo. O ator é fundamental, mas ele fica à parte, secundário. Quando Shakespeare disse que o mundo é um teatro e nós somos atores, na minha concepção, ele gritou isso porque também via o preconceito. Molière foi enterrado fora do cemitério, porque nem o rei conseguiu que ele fosse enterrado dentro. Entendeu? Era ator.
Por viver tantos personagens, o ator não se torna um ser diferente?
Nós somos estranhos. Porque, o que é que nós somos? Esquizofrênicos? Só não estamos num hospício porque nos aceitamos e nos aceitam quando acertamos. É uma vida dupla. Você tem um espetáculo à noite e faz toda sua vida durante o dia, seja ela qual for, uma vida calma, incontestada, desassossegada, e à noite, você tem que dar conta de outra esfera. Ninguém te obriga a ir [trabalhar]. Nem quando você passa pela perda de um amor. A gente até acha que aquele amor teria gostado se você fosse lá fazer seu espetáculo. Vi Ítalo Rossi perder um irmão num desastre e ele fez o espetáculo da noite. Ele tomou um avião, foi ao enterro do irmão e, no sábado, voltou para fazer duas sessões. Estou contando um caso extremo, mas isso acontece. Meu pai e minha mãe foram enterrados cedo porque eu tinha um compromisso de gravação na tevê. Eu sei que eles entenderam. Meu pai, então, entendeu mesmo.
Em casos como esse dá para guardar as emoções?
A gente não guarda emoção. A gente vai [trabalhar] com o que acontece, com o que bate na hora. Cada plateia provoca outro estágio no espetáculo. Tem sempre alguma coisa [que muda] porque é tudo muito sutil, embora você faça sempre o “mesmo” gestual. É algo imponderável e inexplicável. Porque é o seguinte, não é só uma pessoa, um elenco e a plateia. Ali tem que haver uma comunhão. Porque às vezes um ator está de um lado do palco, outro ator está do outro lado, eles se olham e dizem: “Hoje não vai sair como a gente quer”. É uma energia cósmica (risos). Mas nunca é exatamente a mesma coisa. Não é. Tanto que às vezes uma pessoa vai ver o espetáculo e se apaixona, mas um amigo vai ver e não gosta, não entrosou, não comungou, entendeu? Não deveria haver uma luta para conquistar a plateia, mas provocar fascínio e buscar uma comunhão.
No livro, você fala que, por conta do seu pai, você perdeu o medo dos homens e passou a olhar para eles como iguais. Fale um pouco sobre isso.
Jamais quis ser homem. Nunca me passou pela cabeça que se eu fosse homem seria melhor. Sou de uma família de sobreviventes imigrantes, em que as mulheres, junto aos homens, foram em frente. E os homens que conheci na minha família são homens muito criaturas, sabe? Mais criaturas do que macho ou fêmea. São pares. Vivíamos numa era tão combativa e meu pai era um homem muito doce. Aí a tal coisa, você fica dizendo que são homens femininos, né? As mulheres eram muito mais agressivas e muito mais barulhentas, mas não eram ditadoras, nem castradoras. Quem cantava “Terezinha de Jesus” [cantiga popular] para a gente dormir não era mamãe, era papai. A gente queria que o papai cantasse para a gente “Terezinha de Jesus”. Ele cantava para as três filhas.
E como seu pai a influenciou profissionalmente?
Meu pai era um homem com uma visão. Ele não chegou a entender isso nele, nem pensava nisso, mas ele era um artista. Meu pai lidava com tudo na vida a partir de uma busca pela criatividade. No que ele fizesse, ele aplicava essa criatividade, o artesanal. Toda a vida e tudo o que você faz é um artesanato. Mesmo que não seja na área artística, algo que você faça com uma vocação de oficiante, o que for. Nunca fiz minha vida para ficar na história. Eu herdei isso do meu pai: todo dia você levanta, está acordado – graças a Deus – e faz seu ofício. No dia seguinte, o mesmo. É o fazer, sabe? Quando eu pego agora o livro [Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico], penso: eu vivi tudo isso. Eu só queria ter um ofício na minha vida. Um ofício é uma arte de viver. Ele não ensina a você só a manufatura, ele te prepara, através desse fazer, para o recomeço diário.
Ao longo desses 75 anos de carreira, você é perseguida pelos seus personagens?
Fui ligada muitos anos principalmente aos meus colegas de teatro. Fizemos muitas peças juntos e sempre fica uma frase que, em alguma hora qualquer da sua vida, você diz. Eu me lembro que de A Moratória [peça de estreia do dramaturgo Jorge de Andrade, protagonizada por Fernanda Montenegro em 1955, rendeu-lhe o Prêmio Saci de Melhor Atriz] ficou uma frase assim: “É demais, mamãe. É demais”. Então, toda vez que a gente estava numa zona difícil, falávamos: “É demais, mamãe. É demais”. Tem uma outra peça, Interesses Criados, dirigida pelo Alberto D’Aversa: “Perdidos nos teremos para toda nossa vida. O que será de mim?” Então, são coisas assim que a gente lembra. Eu já fiz peças por três, quatro anos. Fiz Dona Doida por 13 anos. É um ser humano [o personagem]. Não é mais literatura. Está em cima da gente, na vertical. Outra coisa é quando você, durante meses, põe aquilo dentro de você de alguma maneira, certo ou errado, achando o caminho ou não, compreende? Principalmente na minha geração, porque hoje eu não sei... O teatro está meio na catacumba. Há pouco, quando fui a São Paulo, vi O Rei da Vela, do Zé Celso. Arrebatador, arrebatador. Plateia delirando com um espetáculo histórico. 50 anos depois, o mesmo espetáculo com Borghi e seu extraordinário personagem. Mas por que não se faz mais isso? Também não sei: só tenho perguntas, não tenho respostas.
No seu livro, há um texto do Décio de Almeida Prado que fala sobre essa que foi sua geração de atores, autores e empresários atrás de empréstimos. Como era acumular tantas funções?
Essa é a tônica do teatro brasileiro desde João Caetano [ator e empresário teatral brasileiro do século 19]. Mas antes de sermos empresários, somos artistas, autores e diretores. A gente não se chama empresa, mas companhia. Somos um grupo, um conjunto em uma batalha que considero heroica. Às vezes, se você não podia pagar [o empréstimo do banco para realizar a peça], pagavam-se juros. Fazíamos nove ou dez sessões por semana. Eu ainda peguei três sessões em um único dia. Houve época em que se faziam três sessões aos domingos. Esse foi um ganho conquistado pela Dulcina de Moraes [importante atriz do século 20, foi quem conseguiu mudar a rotina de trabalho do artista para que pudesse tirar folga às segundas-feiras]. Devemos muito a ela, inclusive o fim da “carteira de prostituta” [como era designada oficialmente a profissão de atriz]. Era a polícia quem te dava essa carteira. Houve também uma mudança de propostas cênicas, mas com a mesma paixão, com a mesma ambição de existir cenicamente.
Quando você analisa o passado, há passagens que não deram certo e a ensinaram algo?
Não sei se é porque sou resultado da sobrevivência, de uma emigração que teve uma recepção neste país, mas no repertório que nós fazemos da vida – e quando eu digo nós, digo todo esse grupo de trabalho, inclusive uma personalidade verdadeiramente dentro de mim, que é o Fernando Torres –, nós tivemos um fracasso de público. Foi uma peça do Chico [Francisco] Pereira da Silva, Cristo Proclamado (1960): uma peça extraordinária, com direção de Gianni Ratto. Nosso grupo de trabalho foi para o Piauí, levantou a tipificação das personagens, a indumentária, as músicas e fizemos esse espetáculo no teatro do Copacabana Palace. Éramos 39 atores num espetáculo mantido pela dívida com um banco. Ficamos 16 dias em cartaz. O espectador ia na bilheteria e queria o dinheiro de volta porque dizia não ir ao teatro para ver gente pobre e fedida. Fizemos o espetáculo no lugar errado. Aprendi que há certos espaços – hoje não sei se está tão definido assim – onde só cabe algo que seja de acordo com os frequentadores.
Como é fazer parte do imaginário brasileiro?
Pois é, isso pra mim é um absurdo. Eu não sei disso. Não estou fazendo charme. Eu trabalho tanto e diretamente no barro, entende? Por acaso eu sou uma brasileira que tem uma profissão que é se exibir. Então, se eu me exibo, e se alguém me encontra na rua e me reconhece, ótimo. Uma brasileira que encontra um brasileiro ou brasileira. Mas isso para mim não tem um tamanho estratosférico, nem mediúnico. É o jogo braçal da sobrevivência dentro de uma profissão, ou dentro de um ofício. Não sou só eu, tem muita gente. Muita gente em todas as outras áreas da sobrevivência do ser humano. No mundo da atuação, você só existe quando o veem e enquanto aquela geração que o viu estiver viva. Quando aquela geração que o viu, desde o mais velho à criança, possa ter uma lembrança de você em uma novela ou no palco. A gente vive e morre em cena numa contenção de tempo. Então, quando esse espectador morrer, não fica nada: somente crônicas a seu respeito. Não estou me comparando a eles, mas quem se lembra de Dulcina de Moraes? E de Procópio Ferreira? Estou falando de atores que tiveram uma popularidade brutal. Ninguém lembra nada. Não fica nada real. É só o imaginário e a crônica. Mas não tem mais nem carne e osso, nem no pensamento.
E o que significa esse ofício de atriz?
É como se fosse um ato religioso: você entra no teatro e espera começar. Já estão todos sentados? Já está na hora? Aí, faz-se alguma coisa: toca-se uma campainha, uma luz muda, os atores entram mesmo com a luz... Ou seja, tem um início. Aí você fica diante de um ser humano. É como uma missa. O que é o padre? Um ator. Ele está ali paramentado, num cerimonial religioso. Se é Páscoa, é uma cor, se é Semana Santa ou Natal, são outras cores. Se fala um texto, não deixa de ser um auto medieval, e as pessoas ficam ali. Tem padre que reza melhor, tem padre que reza pior, tem uns que nem deveriam estar rezando porque não aglutinam, nem apaixonam aquela plateia. Acho que, no fundo, tudo na vida é um teatro. Já falava o Velho Bardo [como também ficou conhecido o dramaturgo inglês William Skakespeare]: para cada pessoa, você se apresenta, mesmo que um pouquinho, de maneira diferente. Às vezes até a cada hora do dia, até para você mesmo. Quem é a gente? Você não se vê em terceira dimensão. Como é que eu sou realmente quando estou de costas, não consigo ver. Mas essas são todas elucubrações.
Foto:Leila Fugii