Postado em 31/07/2018
Lévi-Strauss morou no Brasil nos anos 1930
e fez da antropologia uma lente para explorar o mundo
Nascido em Bruxelas, em 8 de novembro de 1908, Claude Lévi-Strauss conheceu o mundo. A longevidade que o acompanhou é de família. Sua morte, em outubro de 2009, a um mês de completar 101 anos, traz as marcas centenárias das avós e da mãe, que quase chegaram aos 100 anos de vida.
Mas por que Lévi-Strauss é um nome tão prestigiado no Brasil? Conhecido como o pai da Antropologia moderna, o intelectual europeu tem relação estreita com o país. De espírito aberto ao conhecimento, aceitou o convite que lhe fizeram no ano de 1935 para ser professor na Universidade de São Paulo (USP), fundada um ano antes. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em janeiro de 2004, Lévi-Strauss contou o motivo de topar a aventura sem hesitar: “Não conhecia nada do Brasil, tinha vontade de ver o mundo. Desde que fui designado para o Brasil, tentei aprender algo sobre o país”.
Foto: Acervo BNF
Aos 26 anos, ele foi um dos docentes que compuseram a “missão francesa”, assim chamada por causa da origem francofone de seus membros: Roger Bastide (Sociologia), Claude Lévi-Strauss (Antropologia), Fernand Braudel (História), entre outros. Nesse período de organização dos departamentos da USP, o grupo deixou marcas profundas nos estudos dessas áreas, influenciando fortemente gerações de pesquisadores oriundos da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – hoje Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
Do porto de Marselha, Lévi-Strauss fez uma viagem atribulada para chegar a São Paulo, num trajeto realizado de navio. Junto aos franceses também houve o intercâmbio com professores alemães e italianos. Na mesma entrevista à Folha, o intelectual relembrou que a experiência foi seu primeiro acesso ao ensino universitário: “Éramos professores de liceu [ensino médio]. Fomos escolhidos porque pensavam que éramos capacitados, mas, na verdade, era uma grande novidade, e foi algo emocionante para nós”. Naquele momento, os docentes foram considerados embaixadores franceses e permaneceram em São Paulo por três anos. Em 1938, Roger Bastide substituiu Lévi-Strauss na cadeira de Sociologia, por exemplo.
Fora do ambiente universitário, Lévi-Strauss saiu a campo em espécie de batismo etnográfico, rumo ao Mato Grosso, para conhecer as tribos indígenas da região (bororos e cadiuéus). O enlace da experiência acadêmica e a vivência antropológica culminaram na fermentação de suas primeiras teorias. Notava-se a predileção pelo método concreto de observação direta ou, numa abordagem menos científica, e gosto pela aventura, já que Lévi-Strauss trocou suas férias em Paris para encontrar outro universo desconhecido. Aí começava a se desenhar o antropólogo mais importante de seu tempo. O registro da viagem está em Tristes Trópicos, livro de 1955. O retorno à USP se deu apenas em 1985, acompanhando o ex-presidente francês François Mitterrand em curta visita de cinco dias.
Foto: Acervo BNF
Formado em Filosofia pela Sorbonne, lecionou em diferentes universidades, aliando expedições, pesquisa acadêmica e cargos em instituições. Durante a Segunda Guerra Mundial, passou a viver e trabalhar nos Estados Unidos, em Nova York, na New School for Social Research. Em 1945, foi nomeado conselheiro cultural da Embaixada Francesa nos Estados Unidos. No mesmo ano, a agitada vida profissional abriu espaço para o segundo casamento e o nascimento do primeiro filho, Laurent. O antropólogo também encontrou tempo para viajar rumo à Índia e Bangladesh (então chamado de Paquistão Oriental), o que lhe rendeu experiências de tons distintos ao presenciado em suas incursões pela Região Centro-Oeste do Brasil.
O finalzinho dos anos 1940 é fértil em publicações e consolida o pensamento de Lévi-Strauss. A partir daí, vieram a defesa da tese As Estruturas Elementares do Parentesco (1949, Sorbonne), o livro Tristes Trópicos (1955), o primeiro volume de Antropologia Estrutural (1958), representando o começo de seu projeto científico e o termo cunhado pelo pesquisador.
Foi mérito do intelectual aplicar o conceito de estruturalismo – originalmente desenvolvido na Linguística, por Ferdinand de Saussure – nas Ciências Sociais na segunda metade do século 20 na França. O estruturalismo (baseado na noção de que nossas atividades estruturam a sociedade, assim como a sociedade estrutura a forma como agimos no mundo) adquiriu importância na Filosofia, na Psicanálise e na Crítica Literária: “O estruturalismo na Linguística e posteriormente na Antropologia tive um enorme sucesso, inaugurando um caminho para a compreensão de fenômenos de linguagem e expressões simbólicas”, diz a antropóloga e professora Manuela Carneiro da Cunha, apontando os reflexos práticos desse diálogo. “Esse sucesso, a partir da década de 1960, levou outros intelectuais a se inspirarem no estruturalismo. No entanto, Lévi-Strauss nunca reconheceu afinidade com a psicanálise de Lacan ou com a teoria literária de [Roland] Barthes e não houve diálogo com eles. Houve diálogo, sim, com helenistas como Jean-Pierre Vernant, historiador e antropólogo francês especialista em mitologia grega”, detalha.
A vivência associada à produção acadêmica de Lévi-Strauss trouxe frescor ao entendimento sobre a cultura popular brasileira, agregando novas possibilidades de análises históricas e antropológicas. Isso não se deu em via de mão única, mas no contato com a incipiente vida urbana de São Paulo.
São de Lévi-Strauss registros autorais da cidade, que compõem o acervo do Instituto Moreira Salles (IMS). Parte desse conjunto está digitalizada no site (ims.com.br), “acompanhada de textos críticos, entre outras informações sobre as imagens”, informa Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS. O material completo está disponível para consulta na sede do instituto no Rio de Janeiro. “A série do antropólogo Claude Lévi-Strauss, da década de 1930, representa a fotografia do século 20, caracterizada pela câmera de pequeno formato, usada para capturar imagens da cidade de São Paulo de um ponto de vista mais pessoal”, contextualiza Burgi.
Em 1994, imagens capturadas em preto e branco no interior do país foram reunidas no livro Saudades do Brasil, um relato não menos afetivo de sua experiência brasileira, com toda a riqueza de análise antropológica. Em 1996, o volume Saudades de São Paulo concentra impressões do antropólogo sobre o desenvolvimento da metrópole, onde o gado convivia com os carros e os prédios iam, aos poucos, alvorecendo.
“Longe de ser o pensador monolítico apresentado pelos detratores do estruturalismo, Lévi-Strauss era esteta e cientista, surrealista e hiper-racionalista, bricoleur e engenheiro ao mesmo tempo ou, melhor dizendo, em tempos distintos”, descreve o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. “Apaixonadamente obcecado pelo caráter contingente da história, mas afirmando a precedência racional da estrutura sobre o acontecimento.” Aí está um belo retrato.
De personalidade inquieta e movido pela curiosidade,
Lévi-Strauss atuou em diversas frentes de trabalho e conhecimento
Fotógrafo
Lévi-Strauss explicou diversas vezes o valor de rápidos passeios por uma cidade estranha, a condensação de impressões, surpresas significantes que a retina virgem do viajante apressado armazena. Acompanhado por sua Leica, fez registros históricos de São Paulo e do interior do país, fotografando o cotidiano dos índios bororos e cadiuéus.
Viajante
Brasil, Estados Unidos, Índia, Bangladesh e Japão foram alguns dos lugares que fascinaram o espírito viajante do antropólogo. Em 1977, foi pela primeira vez ao Japão, acompanhado da esposa, Monique Romam, e do etnólogo japonês Atsuhiko Yoshida. Visitou o país mais cinco vezes até 1988. O Japão se tornou para ele nesse período “a face oculta da Lua” e reuniu a velhice zen com uma infância afetiva “nipônica”.
Professor
Nos anos 1930, o estágio prático da licenciatura em Filosofia era realizado antes mesmo da aprovação no concurso. Claude Lévi-Strauss vê-se assim, com Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Um dava aula depois do outro. Simone menciona esse episódio em suas memórias e escreve a respeito de Lévi-
-Strauss, seu contemporâneo exato (ambos nasceram em 1908): “Ele me intimidava por sua fleuma”. Quanto a Lévi-Strauss, tinha na memória “a imagem de Simone de Beauvoir nessa época: jovenzinha, com uma pele fresca, de camponesa”. Vinheta encantadora em prelúdio a alguns duelos intelectuais vindouros.
*Fonte: Lévi-Strauss (Emmanuelle Loyer, Edições Sesc, 2018)
Biografia acompanha realizações de um
dos antropólogoS MAIS IMPORTANTES do seu tempo
Mais do que uma viagem pela trajetória de Claude Lévi-Strauss, a biografia do antropólogo lançada este ano pelas Edições Sesc São Paulo revela ao leitor o contexto do século 20, importante período para a formação das ciências humanas no Brasil. Autora de Lévi-Strauss, a historiadora francesa Emmanuelle Loyer nasceu em 1968, quando o professor já havia publicado algumas de suas grandes obras, como Tristes Trópicos (publicado em 1955) e O Pensamento Selvagem (lançado em 1962).
Segundo Loyer, o projeto da biografia está estreitamente vinculado à abertura dos arquivos pessoais de Claude Lévi-Strauss. “São 261 caixas de papelão depositadas no departamento de manuscritos da Biblioteca Nacional da França, que formam o núcleo referencial deste livro, constituindo seu tesouro – ainda que outros arquivos tenham sido consultados: como os do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, bem como, no Brasil, os rastros deixados pela universidade francesa em São Paulo e pelas expedições etnográficas realizadas ao Mato Grosso”, relata.
O lançamento contou com um bate-papo realizado no Sesc 24 de Maio, com a presença da autora e das professoras Fernanda Arêas Peixoto e Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de São Paulo, além do reitor da USP, Vahan Agopyan, do diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, e da adida de Cooperação Cultural do Consulado-Geral da França em São Paulo, Perrine Warme-Janville.