Postado em 31/07/2018
Adjetivado por José Saramago, em 2007, como um “tsunami literário”, o angolano Valter Hugo Mãe, 46 anos, é um dos escritores mais importantes da atualidade. Autor de O Remorso de Baltazar Serapião (2006), A Desumanização (2013), entre outras ficções e poesias reeditadas pela Biblioteca Azul, ele já foi vocalista de banda de rock e editor de livros e revistas. No entanto, foi na escrita que se destacou, principalmente por abordar temas como a morte em obras cujas personagens foram desenhadas com a mesma sensibilidade com que se dedica à ilustração de muitos de seus livros, caso da reedição de
O Paraíso São os Outros (2014). De passagem pelo Brasil em junho, a convite da Sétima edição do Festival Literário de Araxá e do Sesc São Paulo, Valter Hugo Mãe participou de um bate-papo no Sesc Vila Mariana em que falou sobre sua trajetória, processo criativo e inspiração.
Foto: Nelson Aires
Errar, acertar, publicar
Acho que fiz muita coisa, como toda gente é obrigada a fazer. A gente vai tentando, vai explorando, precisa pagar a conta. Claro que se me tivessem perguntado se a qualquer momento eu poderia ter virado exclusivo de alguma coisa, teria querido, imediatamente, ser escritor e editar livros, o que também não é boa ideia.
Meus primeiros livros são muito maus. Foram excelentes naquela altura, motivadores e importantes. Foram das coisas mais importantes que aconteceram na minha vida, por isso é tão triste ver hoje que eram tão maus. Eventualmente a vida também tem isso. Com quantas pessoas já ficamos, que foram tão importantes e pensamos: “Caramba, como eu pude amar essa pessoa? Que patologia aconteceu naquela altura para que eu estivesse completamente na mão daquele amor?”. E os livros também têm muito isso, sobretudo os iniciais.
Entendo a ansiedade da publicação e até entendo o quanto ela pode motivar o amadurecimento, mas admiro muito as pessoas que são capazes de amadurecer quietas, sossegadas na casa delas. Precisar publicar seis livros para poder publicar alguma coisa boa é muito triste. Gosto de ter envelhecido. É um prazer indescritível a gente, de repente, entender algo que é mais complexo. Como o fato de entender uma equação matemática que aos 19 anos não entendemos e eventualmente ela está reservada para ser entendida aos 50.
O tempo da escrita
Posso passar anos conectado com um livro. Buscando o livro, cercando o livro. Tenho um pouco a sensação de que é um processo de caça. Porque é tão fácil que fuja, que não dê certo. A gente pressente o livro num determinado ponto mental, quase físico, porque é uma coisa tão forte, tão intensa, que dá quase a impressão de que vamos estender a mão e tocar num discurso, mas ele é muito volátil e por isso posso ficar anos rondando até que o livro se deixa um pouco seduzir, como se quisesse se corresponder. Então, nesse processo, quando chego ao ponto que tenho a impressão de que puxei um fio e consegui agarrar alguma coisa concreta, aí posso escrever um livro em três meses. Escrevo muito em busca de uma coisa plástica, do visual, então, acho que estou um pouco pronto para a oficina da escrita quando eu próprio estou a ver, mesmo que eu não saiba, o que vai acontecer. Preciso daquela presença, de poder encarar a personagem e um lado interior dela. Dessa intimidade quase sem palavras porque não temos palavras para tudo.
Escolher temas
Normalmente vou ao encontro daquilo que me incomoda profundamente num determinado momento. Acho até que muitos temas vou guardando, adiando. E os que se impõem me parecem tão urgentes que não consigo mais adiar. No caso de O Filho de Mil Homens (Biblioteca Azul, 2016), é muito paradigmático porque eu estava rondando outro livro e achando que era o momento certo para chegar àquele assunto e, subitamente, percebi que a grande fratura da minha vida era outra. No fundo, o livro foi escrito a partir dessa lucidez de ter entendido o que me preocupava. E é um pouco isso: um misto de estar irritado com querer protestar. A maior parte das vezes, protestar comigo mesmo por não ter antes ponderado sobre determinadas questões. Não que eu queira ser chato, nem azucrinar o ouvido do leitor, há nos livros uma espécie de convocação à ação. A verdade é que, desde os meus 16 anos, os autores que mais causam impressão em mim são autores muito fortes, violentos. Devo admitir que não tenho muita paciência para livros que sejam amenos, nem obras que sejam só decorativas. Acho que escrevo para não ficar passivo. E muitas das vezes, o que sinto nas pessoas que me leem é uma vontade de agir.
Mais real que a ficção
O Crisóstomo [nome do protagonista de O Filho de Mil Homens e do cachorro do escritor] veio depois do livro. Fiquei com uma relação tão forte com a personagem do Crisóstomo, senti tanta necessidade da companhia dele, que foi tão importante para me apaziguar com tanta coisa na vida, que eu não queria que ele fosse uma personagem e que acabasse. Queria saber mais sobre ele, que fosse mais presente, então inventei aquele cachorro porque ele é lindo, é generoso. A gente grita com ele e ele só ama de volta, não sabe fazer valer os seus direitos, não tem instrução para se defender. Às vezes eu sinto pena dele e falo: “Crisóstomo, a avó – é minha mãe e eu sou o tio, ninguém é pai – está a gritar contigo, mas não está certa. Grita de volta. Não tenhas medo, não te escondas. Tens que encarar a avó, senão ela não te dá espaço”. Mas não tenho nunca a intenção de usar expressamente a factualidade da minha vida nos meus livros. São sempre as personagens que usurpam a minha vida. Quero fazer ficção, projetar a vida dos outros, imaginar a vida dos outros e, de vez em quando, há personagens cuja vida parece coincidir com a minha. É quase como ler um livro que não escrevemos: de repente, há uma passagem, ou há toda uma personagem que foi feita para nós – parece que vem direto da nossa vida para dentro daquela ficção.