Postado em 31/07/2018
Criadora e diretora da Cia. Sansacroma analisa
a atual diversidade da dança e seu lugar
de fala na periferia de São Paulo
Foto: Mônica Cardim
Gal Martins é dançarina e diretora da Cia. Sansacroma, grupo de dança em atividade desde 2002, cujo ponto de partida é a criação de poéticas e políticas do corpo negro. Sempre viveu na Zona Sul de São Paulo e não tira da cabeça modos de democratizar a arte e a cultura. A dança entrou em sua vida aos 19 anos, ao participar de oficinas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde cursou Artes Cênicas. Nesse encontro com a dança, não se sentiu tocada. “Percebi que essa linguagem não chegava até mim, até a minha comunidade”, afirma. Hoje, porém, Gal acredita no trabalho de grupos que estão construindo uma nova história da dança paulistana. Nesta conversa, ela compartilha referências e sua experiência de vida.
Pontos de partida e chegada
Tenho muitas referências que, infelizmente, não são diretamente ligadas à dança. Augusto Boal, o pensador que revolucionou a forma de pensar teatro no Brasil, de olhar politicamente para as complexidades do país, e de como o teatro pode ser uma ferramenta popular de transformação. Ele, com o Teatro do Oprimido [metodologia que reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais, criada nos anos 1960], mostra que o teatro é para todos. Está no palco, está na rua, mas pode estar na cozinha, na fábrica, no campo de futebol. Boal evidencia que o teatro cabe em todos os lugares. Essa relação é muito forte para mim.
Paulo Freire é outra forte referência. Os pensamentos dele se tornam cada vez mais contemporâneos, tendo a educação como ponto de partida para a resistência, o que gera potência. Vai além da educação, com sua Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra) [o livro, publicado pela primeira vez em 1974, propõe a pedagogia com uma nova forma de relacionamento entre professor, estudante e sociedade] e, principalmente, com sua Pedagogia da Indignação (Paz e Terra) [formada pelas cartas pedagógicas, compiladas em livro no ano 2000], ele nos traz possibilidades de explorar as teorias da educação em diversos segmentos, assim como eu me inspiro na dança. Inspirei-me diretamente na Pedagogia da Indignação para criar a Dança da Indignação, pesquisa feita na Cia. Sansacroma. A pesquisa foi publicada em 2017, no livro A Dança da Indignação (Gal Martins, Djalma Moura e Rodrigo Reis, Papel Brasil Editora), trazendo a história da companhia desde seu nascimento, há 15 anos, no Capão Redondo, na periferia sul de São Paulo, e os espetáculos criados: Negro por Brasil (2002), Orfeu Dilacerado (2006), Solanidade (2007), Solano em Rascunhos (2008), Angu de Pagu (2010), Marchas (2012), Máquina de Fazer Falar (2012), Outras Portas, Outras Pontes (2012) e Sociedade dos Improdutivos (2015).
Poesia do corpo
O encontro com a poesia de Solano Trindade [poeta negro do começo do século 20, também folclorista, compositor e artista visual] foi um divisor de águas na minha vida, como mulher negra, e renovou o meu olhar para minha produção artística. Sua obra é contemporânea e me afeta todos os dias, assim como a produção de sua filha, dona Raquel, que conseguiu manter vivo o que o pai construiu. Pensar o lugar do negro com autonomia, abordar a questão racial com maestria: com luta, mas com muito amor e festa! Há também o legado de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1948. Ela foi precursora do balé e da dança afro no Brasil. Uma companheira de caminhada, pois também considero meus parceiros de trabalho como referência artística e criativa.
Ver e ser vista
O espelho é necessário, sempre me questionei sobre referências que contemplassem a minha necessidade e o meu estado no mundo, desse corpo que é preto, gordo, periférico. Nessa minha trajetória de 20 anos de dança, deparei-me com poucas referências que me contemplassem. Por isso costumo dizer que nada me cabia, tanto nos meus processos de formação quanto em minhas pesquisas iniciais, meus anseios e como eu queria me expressar com a dança. Hoje enxergo outras referências e espelhos de uma galera que vem produzindo dança de qualidade, somada a um conhecimento teórico que traça uma nova história da dança paulistana, com uma visão plural. E pensar o plural é importante como forma de encontrar diversos caminhos em dança, os quais contemplem o corpo negro, o corpo feminino, o corpo periférico, o corpo gordo. Agora vejo espelhos em vários grupos e companhias em São Paulo e posso criar afetos, afetos para além do carinho, afetos para afetar, afetos que me afetam e que meu trabalho também afeta. Dessa forma, posso citar exemplos: Nave Gris Cia. Cênica, Fragmento Urbano, um grupo mais novo que surgiu de forma muito potente na cidade, com uma pesquisa muito interessante, além de vários artistas que, com a Cia. Sansacroma, estão repensando e construindo uma nova história, uma história mais plural em dança na cidade.