Postado em 29/08/2018
A Cia. Dança sem Fronteiras acredita que todos podem dançar e acolhe as singularidades de diferentes corpos. Foto: Ricardo Teles.
Primeiro um zumbido. Depois o silêncio e a sensação de que algo parecia fora de lugar. Um acidente de moto aos 20 anos transformou a vida do rapper paulista Billy Saga. Só que depois da fase que ele chama de “chá com bolacha”, em que amigos e parentes o visitavam dando palavras de incentivo, o músico se agarrou à criatividade para se reinventar. “Com certeza a arte foi um lastro que me ajudou a ter mais força para seguir em frente”, conta. Saga ainda é publicitário, artista plástico e presidente da Movimento SuperAção – ONG criada em 2003 com o objetivo de promover a inclusão de pessoas com deficiência em diversos âmbitos da sociedade, entre eles, a cultura. Munido de letras e batidas do rap, Saga se junta a outros artistas que comprovam que não há limites ou regras para a criação e fruição da arte.
Do outro lado do globo, o finlandês Marko Vuoriheimo também passou o mesmo recado. Primeiro músico surdo do mundo a assinar contrato com uma gravadora internacional, Signmark, como é conhecido artisticamente, esteve em São Paulo em julho passado, quando se apresentou no Sesc Belenzinho. Na ocasião, contou à imprensa que não deixou que colegas do colégio e, mais tarde, da faculdade, tolhessem o sonho adolescente de fazer música. Seguiu adiante e, em 2006, de maneira independente, gravou o próprio DVD de rap.
Depois disso, o artista foi lançado mundialmente no festival de canção Eurovision, transmitido pelo canal de televisão europeu de mesmo nome. Desde então, Signmark não para mais na terra natal. No palco, acompanhado pela banda, o músico interpreta, dos pés à cabeça, letras de amor e de superação: “Always kept my head up/ few times got knocked down/ but my pride made me get up” (Sempre mantive minha cabeça erguida / algumas vezes fui nocauteado / mas meu orgulho me fez levantar – em tradução livre).
O rapper Billy Saga.
Assim como Saga e Signmark, o dançarino Marcos Abranches também não acredita em limitações. Sua corporeidade única pela presença de deficiência física contribui com seu trabalho na coreografia e interpretação do espetáculo Corpo em Tela. No tablado, Abranches faz um pas de deux de dança e artes plásticas – influências artísticas do padrasto e da mãe, respectivamente. Afinal de contas, quem e o que define quem pode ou não pode dançar?
A mesma pergunta instigou a bailarina, educadora e pesquisadora Fernanda Amaral a criar movimentos para diferentes corpos. “Estudos mostram haver novas propostas de trabalhos direcionados para pessoas com deficiência que vêm sendo desenvolvidas com a finalidade de explorar e respeitar cada corpo. Hoje temos diversas companhias e bailarinos profissionais em São Paulo e em diversas outras cidades do Brasil”, observa Amaral, que possui vários títulos internacionais em dança e teatro, incluindo certificados em DanceAbility [método de dança que utiliza a improvisação de movimento para promover a expressão e a troca artística entre pessoas com diversas habilidades, idades e origens, com e sem deficiência].
Fundadora da Cia. Dança Sem Fronteiras, a coreógrafa trabalha há mais de 25 anos com bailarinos (com e sem deficiência) em espetáculos e ações educacionais em que promove o exercício de ampliação dos horizontes sociais, para além de rótulos e a favor da diversidade. “Muitas vezes não precisamos falar sobre sermos diferentes, simplesmente mostramos que somos e o público reconhece isso. Acredito que quanto mais diverso é o meu elenco, mais possibilidade de criação teremos. Não consigo mais imaginar trabalhar com um elenco em que todos são muito parecidos”, explica.
Entre alguns dos espetáculos do grupo, Olhar de Neblina reflete sobre vislumbrar outras perspectivas. Baseada nos textos filosóficos do fotógrafo cego esloveno Evgen Bavcar (leia boxe Ir além...), a coreografia trabalha o ato de ver e não ver o que existe à volta. “Buscamos uma dança para todos, de todas as cores, tamanhos, idades, com e sem deficiência porque acreditamos que atribuir um lugar predeterminado aos corpos é retirar-lhes sua potência de vir a ser”, complementa Fernanda.
O finlandês Signmark foi o primeiro músico surdo do mundo a assinar contrato com uma gravadora internacional. Foto: Junior Pacheco.
Para Viviane Sarraf, fundadora da Museus Acessíveis – empresa social voltada para a mudança cultural do cenário da acessibilidade no Brasil –, é possível afirmar que desde o início do século 21 ocorreu um grande crescimento da oferta de ações culturais acessíveis em espaços de todo o país. “E também a conscientização de gestores e profissionais da área em relação à importância da promoção da inclusão cultural das pessoas com deficiência e dos benefícios que a acessibilidade cultural proporciona aos demais públicos usuários dos equipamentos e projetos culturais”, descreve em artigo publicado na Revista do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, em junho passado.
Um dos avanços da acessibilidade é a audiodescrição – recurso de acessibilidade que amplia a compreensão e a participação das pessoas com deficiência visual, ao transpor em elementos visuais em palavras. A produção da audiodescrição em filmes, por exemplo, vem crescendo principalmente depois das instruções normativas 116 (2014) e 128 (2016) da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que estabelecem que todos os filmes financiados com recursos públicos federais deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e libras (língua brasileira de sinais).
Quem acompanha a evolução nessa área é a pesquisadora e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Lívia Maria Villela de Mello Motta, pioneira no campo de audiodescrição no Brasil. “Meu primeiro encontro com a audiodescrição foi em 2003, quando passei um semestre na Universidade de Birmingham, Reino Unido, durante meu doutorado. Ao visitar uma loja do Royal National Institute of Blind People, lá encontrei vários filmes, ainda em VHS, com video description, o que chamou muito minha atenção. Procurei materiais teóricos sobre o recurso e comecei a ler e a me informar a respeito”, recorda.
Ao retornar ao Brasil, Lívia mergulhou em estudos e experimentações até que em 2005 criou um projeto de acessibilidade cultural no Teatro Vivo. Em 2006, preparou voluntários do Instituto Vivo para fazer a audiodescrição da peça O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, que fazia parte de um projeto para alunos da rede pública. No ano seguinte, Andaime, de Sérgio Roveri, seria a primeira peça comercial brasileira com audiodescrição.
De lá para cá, Lívia trabalha em diversos projetos como audiodescritora, entre eles no ParaTodos! do Sesc Santana, que promove ações de acessibilidade em atividades artísticas, incluindo pessoas com deficiência.“Poder ser os olhos do outro, transformando imagens em palavras é algo que me apaixona, motiva. Coisa boa poder fazer chegar a esses espectadores a magia da arte, em peças teatrais, espetáculos de dança, circo, musicais, shows, filmes e outros. As histórias de amor, vingança, a graça das comédias... Fazer com que tudo isso seja conhecido e compreendido”, relata.
Progressos à parte, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que mais de 45 milhões de brasileiros com deficiência – número do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010 – possam ter direito à fruição assim como oportunidade para criação artística. “As barreiras enfrentadas por artistas com deficiência são as mesmas barreiras enfrentadas por qualquer cidadão com deficiência. Por isso, minha música e minhas letras ficaram mais focadas na defesa de direitos dessa causa. E com certeza a minha arte foi algo que embasou muito e fez com que de certa forma eu seguisse em frente mesmo diante de tantos obstáculos”, arremata o rapper Billy Saga.
“Todo ser humano tem o direito
de participar livremente da vida cultural
da comunidade, de fruir das artes e
de participar do progresso
científico e de seus benefícios”
Artigo 27 da Declaração
Universal Direitos Humanos
O fotógrafo esloveno Evgen Bavcar, 71 anos, criou uma maneira própria de registrar cenas a partir de sons, e do contato com objetos fotografados. Evgen ficou cego aos 12 anos, quando um galho de árvore perfurou seu olho esquerdo e a explosão de uma mina afetou o olho direito.Em junho do ano passado, o Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque Ibirapuera, exibiu alguns dos trabalhos de Bavcar na exposição Educação como Matéria-Prima.
Criadas em Chicago (EUA), na década de 1980, os Slams ou batalhas de poesia falada conquistaram espaço no Brasil há dez anos. E foi nessa expressão artística que o poeta Edinho Santos ganhou destaque nacional. Em dezembro do ano passado, no Sesc Pinheiros, Edinho foi o primeiro finalista surdo da principal competição de poesia falada do Brasil, a Slam Br. O Slam é hoje uma das manifestações culturais nas quais a presença do público surdo vem se ampliando e criandonovas poéticas que mesclam língua portuguesa e libras, a língua brasileira de sinais.
Produzidos pela Caleidoscópio Comunicação & Cultura (foto), os espetáculos O Grande Viúvo e Acorda, Amor! exploram o formato Teatro Cego, no qual o público, em escuridão total, é convidado a acompanhar a trama guiado por outros sentidos: olfato, paladar, tato e audição. A proposta é estabelecer um ambiente inédito no teatro, abrindo um novo campo de trabalho para atores, produtores e técnicos, priorizando o trabalho de pessoas com deficiência que atuam ou tenham intenção de atuar nessa área.
Criada no bairro de Campo Belo, em São Paulo, a Circodança Suzie Bianchi é uma companhia formada por artistas com e sem deficiência. "O trabalho de expressão corporal e artístico independe de condições físicas ou mentais", descreve a professora e diretora Suzie Bianchi, que fundou o grupo no ano de 1984. Nos espetáculos, uma amálgama de elementos de dança, circo e teatro.
Diminuir as barreiras para o acesso a espetáculos, peças, exposições, filmes e atividades culturais tem sido um dos desafios dos últimos anos. E a arte, segundo a assistente técnica em acessibilidade no Sesc São Paulo Lígia Helena Ferreira Zamaro, é um território democrático que oferece meios, suportes e interações diversos, permeáveis à diversidade de quem ali se manifesta. “A acessibilidade é um binômio estético e ético, que convida corpos plurais e suas percepções, temporalidades e naturezas sensoriais para elaborarem sentidos poéticos, coletivamente. Promover acessibilidade implica entender as diferenças, deficiências e neurodiversidades como cores, signos e gestos novos para criações estéticas, uma sintaxe que se amplia”, detalha.
Partindo desse cenário, no mês de setembro, o Sesc São Paulo realiza atividades que promovem acessibilidade cultural em diversas frentes. Entre alguns destaques, o Slam do Corpo com o grupo Corposinalizante, no Sesc Vila Mariana, e a Jam de Dança para Todos com a Cia. Dança Sem Fronteiras, no Sesc Belenzinho. “A Jam para Todos é uma prática democrática de dança que busca, entre alguns objetivos, desenvolver a escuta do corpo, de suas necessidades e vontades de expressão”, explica a bailarina Fernanda Amaral.
O grupo de pesquisa e produção de arte Corposinalizante – aberto a surdos e ouvintes que se interessam por libras –, promove o sarau Slam do Corpo – o primeiro no país que aproxima poetas surdos e ouvintes, poemas em língua de sinais e em língua portuguesa. O slam parte de duplas de poetas – um surdo e um ouvinte – que traduzem e apresentam textos nas duas línguas simultaneamente.
Foto: Divulgação.
Vivência realizada com um grupo convidado, formado por poetas surdos, ouvintes e intérpretes, que vão transcriar alguns poemas para libras em um curto tempo. Como resultado desse laboratório será realizado um sarau experimental onde o grupo apresentará ao público o resultado dos poemas traduzidos em libras.
Ministrado por Daniella Forchetti e Shirlei Caetano, o curso parte de experiências práticas em que serão abordados conceitos sobre audiodescrição voltados para o campo das artes cênicas. No último encontro haverá uma performance com recursos de audiodescrição.
Nesta oficina, a metodologia da Cia. Dança sem Fronteiras enfatiza o potencial expressivo com o foco na criatividade e igualdade. A companhia trabalha com o processo de improvisação na dança e utiliza técnicas de consciência corporal, improvisação, dinâmicas de dança-teatro e DanceAbility.
Estabelecida como lei em 2000, a acessibilidade garantiu direitos mínimos a certos grupos e comunidades. Por isso, nos últimos anos, há uma série de discussões sobre o que pode ser “acesso” e “acessibilidade”. Para falar sobre o assunto, a psicóloga Cibele Lucena e a arquiteta Joana Zatz trazem referenciais teóricos e práticos nos campos da filosofia, da tradução e da arte para aprofundar e ampliar a noção de acessibilidade.
História de tradição oral, O Espelho Mágico é narrado em português e em libras simultaneamente por Mirela Estelles e Amarilis Reto para o público. Durante a narrativa, os participantes são convidados a interagir com a prosa, ajudando a desvendar um segredo guardado por um espelho mágico que pertence a uma princesa.