Postado em 29/08/2018
Na recepção aos calouros do Curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP), em 2007, o material que anunciava o início das atividades dava destaque à aula magna ministrada por Antonio Candido. Os novatos se reuniram no local indicado, mas foram recebidos com uma espécie de trote. Não, o professor não recepcionaria... os calouros naquele dia; porém, estaria presente em toda a graduação daqueles jovens, por meio da sua extensa obra, de leitura obrigatória para o conhecimento da cultura brasileira.
Foto: Antonio Candido.
O caso ilustra a importância de um dos principais intelectuais nacionais, em especial na faculdade onde estudou Ciências Sociais – que na época (anos 1940) chamava-se Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências – e onde construiu grande parte da sua trajetória. Começou como assistente de Sociologia do professor Fernando de Azevedo, de 1942 a 1958, enquanto cursava Literatura Brasileira e concluía o doutorado em Ciências Sociais nos idos de 1954. Como professor em carreira solo, sua primeira experiência em literatura se deu na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, entre 1958 e 1960.
Um ano depois estava de volta à USP, agora como professor de Teoria Literária e Literatura Comparada, departamento que criou. “A aula de Antonio Candido continua em nosso espírito. Destaco traços de sua atuação na universidade fazendo-me cronista, posto que essas marcas se prendem a momentos que, sendo sua aluna, vivenciei”, recorda a pesquisadora Telê Ancona Lopez, professora emérita do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), que teve Candido como seu orientador.
Relembra também o curso de especialização que acompanhou em 1962, dedicado ao personagem Quincas Borba, do romance homônimo de Machado de Assis, no qual a crítica literária tangenciava o cinema e a pintura. As aulas garantiam voz aos alunos e a quem mais se aproximava. “Eram alunos de outras áreas e pessoas que levantavam questões interessantes: Lygia Fagundes Telles, Paulo Emílio Salles Gomes, que de vez em quando nos dava aula. Éramos estudantes loucos para saber de tudo”, relata.
Antonio Candido. Foto: André Gomes de Melo.
Antonio Candido nasceu no Rio de Janeiro, em 1918, mas logo se mudou com a família para Minas Gerais. Definia-se como “um intelectual paulista que é mineiro nascido no Rio de Janeiro”. O movimento em direção a São Paulo se mapeou pelo interior do estado, em Boa Vista. Em 1937, já estava na capital, onde frequentou os cursos de Direito e Sociologia.
Na faculdade também conheceu Gilda de Mello e Souza (1919-2005), filósofa e professora de estética. Foram muito amigos por um período e por volta de 1943 começaram a namorar e logo se casaram. A amizade permaneceu um forte laço, em meio a opiniões que nem sempre coincidiam. Na política, por exemplo, ela era social-democrata e ele, socialista. O casal teve três filhas: Laura de Mello e Souza, Marina de Mello e Souza e Ana Luísa Escorel.
Laura esteve presente na homenagem ao centenário do professor realizada no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (leia boxe Personagem Principal) compartilhando lembranças do pai, que segundo ela estava lúcido e independente até a morte, em maio de 2017. “Ele nunca se interessou por informática e nunca utilizou internet”, afirmou. Usava apenas a máquina de escrever e “tinha dificuldade para achar as fitas negras que a faziam funcionar”.
A filha historiadora destacou a vertente de contador de histórias do pai. Conforme as filhas cresciam, as fábulas narradas por ele iam desaparecendo da vida cotidiana e livros ganhavam seu lugar. “Com grande discrição, ele sugeria, vez ou outra, que lêssemos alguma obra. No meu caso, a indicação de leituras e conversas sobre elas se tornaram uma espécie de substitutivo quando, em 1965, frequentei a escola por poucos meses e só retornei no ano seguinte. Foi nessa altura que o contador de histórias cedeu lugar ao crítico, e desde então dividimos algumas manias comuns, eloquentes quanto ao seu ecletismo mental”, contou.
Foto: Antonio Candido.
Nos anos 1940, formou-se o grupo de amigos e intelectuais responsáveis pela revista Clima. Os participantes eram estudiosos e críticos por excelência, como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Rui Coelho, Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado. Segundo declaração de Candido, a sua geração poderia ser definida com a expressão “Críticos, críticos e mais críticos”, tendo em vista o espírito reinante e a atuação do grupo. Ele também afirmava que seus contemporâneos se iniciaram na escrita pelo artigo de crítica, assim como os intelectuais da geração anterior (os anos 1930) começavam pela poesia.
Entre os poetas maiores de gerações anteriores à sua, foi próximo dos modernistas Mario de Andrade, a quem via com mais frequência, pela afinidade e por ser tio de Gilda, e Oswald de Andrade, que apelidou os então rapazes do grupo Clima de “chato-boys”. Candido escreveu ensaios primorosos que contribuíram para o estudo da obra desses autores e do modernismo brasileiro.
Posteriormente, no jornal O Estado de S.Paulo, Antonio Candido foi responsável pela criação do Suplemento Literário, no ano de 1956. O suplemento foi idealizado a convite de Júlio de Mesquita Neto. Ficou sob a direção de Décio de Almeida Prado. A intenção era produzir uma revista literária de impacto nacional. As subdivisões temáticas abrangiam: literatura estrangeira, resenhas bibliográficas, contos, artigos sobre literatura brasileira, crônicas, seções dedicadas ao cinema, música e teatro, além de desenhos e gravuras.
A professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) Walnice Nogueira Galvão comenta esse período para Candido. “Sua vida intelectual era dupla. O professor de sociologia se desdobrava como crítico de literatura desde os anos 1940, tanto em jornais como na revista Clima. E já tinha livros publicados nessa especialidade”, enfatiza.
O maior crítico literário brasileiro manteve cadernos com anotações até um ano antes de sua morte. O hábito foi um conselho da mãe e, desde os 10 anos de idade, juntavam-se os cadernos com anotações de suas leituras. Ao todo, são 126 cadernos. Sua biblioteca pessoal, composta por 7 mil obras, passará a fazer parte do acervo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os livros são contáveis, já o legado de Antonio Candido é difícil de botar no lápis. “Inspiração marxista, sociologia crítica, engajamento social e análise literária sensível se combinam, sem alarde, nos principais estudos críticos de Candido”, exemplifica o pesquisador Rodrigo Martins Ramassoti, doutor em Antropologia Social pela Unicamp e estudioso da obra do professor.
Foto: Antonio Candido.
Tese de sociologia defendida pelo autor em 1954, o livro estuda a obtenção dos meios de vida e as formas correlatas de sociabilidade dos caipiras paulistas, a partir de rigorosa e sensível pesquisa de campo realizada em terras da Fazenda Bela Aliança, situada na área rural do município de Bofete (SP).
O volume reúne as principais reflexões teórico-metodológicas do autor a respeito das intrincadas correlações entre literatura e sociedade, ao lado de estudos de panoramas histórico-literários de grande interesse e repercussão.
Um dos principais volumes de ensaios de Candido, a publicação reúne, entre outros, os célebres Dialética da Malandragem (1970) e De Cortiço a Cortiço (1993), além de registrar em seu prefácio os fundamentos do método crítico do autor, cristalizados no conceito de “redução estrutural”.
Fonte: Rodrigo Martins Ramassoti, doutor em Antropologia Social pela Unicamp. Pós-doutorando no Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), onde está vinculado ao Coletivo Artes, Saberes e Antropologia (ASA).
Em 2018, quando Antonio Candido completaria 100 anos, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc homenageou o crítico com um ciclo de palestras abordando seu legado acadêmico e humano, voltando-se para aspectos de sua contribuição para a cultura e sociedade brasileiras.
As mesas-redondas evidenciaram seu importante papel como professor e intelectual, a interação com personalidades e instituições, a militância socialista – recortes relevantes para entender a envergadura do crítico e de sua presença em nosso tempo. O seminário compõe o projeto 3 vezes 22, em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo. O evento foi realizado durante o mês de julho.