Postado em 29/08/2018
Como artista e educadora, minha experiência sempre passou pelos meus sentidos. Desde cedo, perceber o mundo por meio de cores, temperaturas, sonoridades, sabores e aromas era fonte de descobertas e encantamento. Foi principalmente na arte que encontrei o veículo de minha subjetividade e aos três anos de idade, já adorava desenhar garatujas de todo tipo de gente na parede, em giz de cera e depois em tinta guache.
Convivi e brinquei com crianças diferentes de mim na escola e com alunos de minha mãe – pedagoga em educação inclusiva. Porém, percebi que os obstáculos eram maiores para elas na sede por desbravar o mundo. Não era incomum que elas fossem para salas ou escolas especiais, específicas, e não as víssemos mais no cotidiano. Não era mera coincidência; é muito recente a evidência social dos direitos desta população.
Na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) – 2008 evoca-se a dimensão biopsicossocial do sujeito com deficiência (física, visual, auditiva, intelectual, múltipla). A pessoa com deficiência passa a ser lida em sua completude e singularidade em contraponto a um pensamento anterior, caritativo, em que era vista somente pelo viés assistencial ou médico – seu corpo era visto fragmentado: o corpo que não tem, que não ouve, que não enxerga, em suma: o corpo que “não é”.
Este indivíduo é alguém com desejo, personalidade, subjetividade, anseio de viver e que, para além das definições, é complexo, em constante mudança. Alguém que se expressa e se comunica a partir do que é, sem a necessidade de ser “completado” ou “corrigido”. Para além de rampas e elevadores, a mais forte catraca é relacional e social, resumida em uma palavra: o capacitismo – forma de preconceito que julga a pessoa unicamente a partir da deficiência, sem considerar sua totalidade, habilidades e potencialidades.
E foi pela arte como instância de identidade, em um laboratório ético-poético, que achei um lugar propício para o encontro entre deficiência e potência criativa. Na heterogeneidade de linguagens e materialidades da arte há um lugar certamente democrático e possível. Constatei isso como artista e arte-educadora e em salas de aula, exposições, oficinas, espetáculos, vi e senti: a alegria de uma aluna cega ao desenhar pela primeira vez e reconhecer seu traço, a explosão poética de um bailarino com deficiência física no palco, a pulsão nos gestos efervescentes das mãos surdas, a essencial sinceridade das pessoas com deficiência intelectual ao gostar ou desgostar de uma obra de arte, entre outras memórias.
Aprendi que o engenho criativo não se encerra em uma única particularidade. Que ter tempo para a escuta das pessoas é ouro. Que todo organismo existe subjetivamente, transforma-se para além de seus contornos, gerando um léxico de novos desenhos, caminhos poéticos e oportunidades criadoras. Aprendi que há vários e vários jeitos de ser artista, criador, inventor, propositor...
Hoje a produção estética empresta da percepção da pessoa com deficiência novos signos, temporalidades e espacialidades. A arte ganha com a diversidade destes corpos que chega e se apropria. Em sintonia, que possamos retribuir às pessoas com deficiência o respeito e o lugar de expressão que demandam crescentemente. Pluralidade, sensibilidade, acessibilidade: são rimas que se assemelham e são valores essenciais a uma sociedade que contemple as pessoas com deficiência como agentes de melhoria do mundo que queremos viver conjuntamente.
Lígia Helena Ferreira Zamaro é graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e
Artes da USP e mestranda na mesma instituição. Especialista em
Acessibilidade em Ambientes Culturais pela UFRGS/UFRJ/MinC.
É assistente em Acessibilidade na Gerência de Educação
para Sustentabilidade e Cidadania no Sesc São Paulo.