Postado em 28/09/2018
Aos 14 anos, Pedro Hartung iniciou um trabalho voluntário numa associação de combate à fome infantil. Na mesma época, seus pais estavam se divorciando e a intervenção judicial na família acabou definindo os passos seguintes do adolescente. Advogado e pesquisador do Child Advocacy Program da Harvard Law School, Pedro Hartung já participou do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e hoje atua no Instituto Alana – organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança. “A criança ainda é vista como objeto da família e não como um ser que merece o mesmo respeito que é dado ao adulto. Então, é fundamental que a gente possa enxergar a criança como uma cidadã, um sujeito de direitos definitivamente”, ressalta. No Alana, ele é coordenador do programa Prioridade Absoluta, uma iniciativa que busca a visibilidade e efetividade do artigo 227 da Constituição Federal, que coloca as crianças em primeiro lugar nos planos e estratégias do Brasil. Uma luta pelo presente e pelo futuro de mais de 38 milhões de pequenos cidadãos, número levantado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) neste ano. Nesta entrevista, Hartung fala sobre o conceito de infância ao longo dos últimos séculos, a legislação atual voltada para crianças e adolescentes e os desafios que enfrenta esta nova geração.
Foto: Leila Fugii
Em que momento da história passa a haver um olhar de proteção à criança?
A invenção da infância como conceito social e cultural é pós-Idade Média, quando a gente começa a reconhecer a criança como indivíduo em desenvolvimento. Temos o avanço das Ciências Sociais, com a Pedagogia e a Psicologia, o que possibilitou o entendimento de que o ser humano não é igual desde o nascimento, ou seja, a criança não é um miniadulto. No século 20, um dos primeiros historiadores que trabalharam uma nova ideia sobre a infância foi Philippe Ariès. A criança passa, então, a ser considerada um sujeito em desenvolvimento. Mas essa é uma discussão longa que atravessou diferentes períodos. No período clássico do mundo ocidental, temos um conceito já diferente de adulto e de criança. O próprio Platão, no livro República, traz a necessidade de o Estado assumir a responsabilidade com o indivíduo. Depois do período clássico, podemos falar que os direitos de crianças e adolescentes começaram a nascer na modernidade. Janusz Korczak, médico, escritor e radialista polonês que durante a Segunda Guerra Mundial foi, em função do nazismo, levado para um gueto de Varsóvia, trabalhava em uma casa de cuidados de crianças. Lá nasceu a pedagogia democrática. Foi ele quem desenvolveu o conceito de que todas as crianças, independentemente do país e da família, têm direitos universais, devem ser encaradas como cidadãs e sujeitos de direitos. Para Korczak, uma pessoa não deve se abaixar até a criança, mas elevar-se a ela, e ao seu modo de ver e compreender as coisas. Mostrando a importância de uma relação democrática e de igualdade com a criança.
E quando vemos surgir uma legislação que protege, de fato, crianças e adolescentes?
Uma das primeiras legislações que proibiram o trabalho infantil foi a da Inglaterra. Com a industrialização, os países começam-se a criar legislações específicas que limitam o trabalho infantil e a exploração da criança em diversos âmbitos. A relação da criança com os adultos e com a vida social vai se modificando. Toda a evolução histórica dos direitos das crianças no mundo culminou num processo de codificação internacional que é a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), e que hoje em dia é um tratado assinado por todos os países, exceto os Estados Unidos. Isso porque lá, em alguns estados, é permitida a pena de morte para adolescentes, algo condenado pela convenção.
Mesmo assim a convenção mostra o peso desse olhar sobre a infância em todo o mundo. É muito interessante como se cria um consenso de que nosso desenvolvimento como seres humanos nestes primeiros anos de vida é importante. A neurociência tem apontado para isso: o desenvolvimento cerebral do ser humano entre zero e seis anos de vida é único e especial, gerando impactos diretos no indivíduo. É nesses primeiros seis anos que temos a maioria da produção neuronal no cérebro, o que chamamos de neurogênese. Um período importante para as relações sociais e desenvolvimento da linguagem – não há linguagem sem interação. A linguagem nasce desse fruto relacional, o que justifica a importância do meio ambiente, onde a criança está inserida, do meio físico e social e de estímulos. A nossa história é marcada por isto: a gente está onde está por causa dos estímulos e da diversidade de contatos que tivemos na infância.
O que mudou no conceito de infância nas últimas décadas? E de que forma a sociedade hoje interfere nesse período da vida?
A infância acompanha todos os movimentos mundiais. Ela está relacionada com o advento das tecnologias, com os grandes movimentos sociais, a exemplo do feminismo e o sufrágio universal. Podemos traçar a história da infância com esses grandes movimentos. Em relação ao consumo, o sociólogo Neil Postman fala do desaparecimento da infância na modernidade. Ele diz que a mídia digital, a televisão e o entretenimento, de certa forma, borram o acesso à leitura do mundo – porque a imagem fala com todos, indistintamente, e porque antes o que delimitava o mundo adulto do mundo da criança era a leitura. Dessa forma, conseguir ler frases e palavras proporcionava acesso a elementos e segredos do mundo adulto. Com a televisão, a imagem é vista por todos e isso acaba borrando essa distinção entre adulto e criança. Ou seja, para Postman este é um desaparecimento do conceito de infância. Isso traz consequências; entre elas, os produtos de entretenimento para a massa, que impactam o público adulto e ao mesmo tempo o infantil. Como resultado, Postman aponta uma adultificação ou erotização precoce, além de consumo. Quando a criança é vista como um consumidor presente e futuro, você a fideliza desde o berço. As empresas passaram a entender a importância da criança na relação familiar não só como consumidor, mas como “promotor de vendas” ao influenciar a família. Então, o mercado voltado para a criança é gigantesco. Essa é uma discussão no Alana, especificamente do programa Criança e Consumo. Falamos sobre a ilegalidade do direcionamento de publicidade ao público com menos de 12 anos.
Foto: Leila Fugii
Atualmente a legislação em relação a essas propagandas está mais rígida. Quais são os avanços?
Por exemplo, a Resolução 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), do qual fui conselheiro nessa época, detalha o conceito de abusividade do Código de Defesa do Consumidor, que descreve nos artigos 36, 37 e 39: utilizar-se da falta de experiência e julgamento da criança para uma prática de convencimento – no caso, publicidade – é uma ação abusiva e, portanto, ilegal. O que temos hoje em dia é uma maior pacificação por parte do Judiciário, que tem recebido as denúncias feitas por diversas entidades, inclusive pelo Alana, e agora essas denúncias chegam aos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem declarado nas ações julgadas ser realmente abusivo o direcionamento de publicidade ao público menor de 12 anos. Porque a criança não entende a publicidade como tal. Ela não difere conteúdo de programação de conteúdo de publicidade e não entende o caráter persuasivo da propaganda. Além disso, a publicidade é capaz de acarretar uma série de problemas sociais, como a obesidade infantil. Não vemos publicidade de verduras e legumes na TV, rádio e internet. O que vemos são alimentos de alto teor de sódio, açúcar e gordura. Não é à toa que no Brasil, e no mundo, temos, a cada três crianças, uma delas com sobrepeso e obesidade. Essa é uma epidemia com gastos sociais de saúde pública gigantescos.
Com o universo digital, como se dá esse controle da publicidade?
Fica mais difícil porque o acesso à criança é muito mais fácil. É mais difícil termos esse controle e por isso é injusto colocar a culpa exclusivamente nos pais e nas mães. Na verdade, na nossa sociedade machista, é colocada mesmo na mãe. A culpa pela má educação, porque é a mãe que não está olhando, é ela que tem obrigação disso e daquilo. Mas todos nós temos responsabilidade. O processo de elaboração da Constituição Federal, que completa 30 anos em 2018, foi um dos processos mais bonitos da história recente democrática do Brasil porque foi de extrema participação social, inclusive do setor de infância. As crianças foram ao Congresso Nacional fazer “lobby” com Ulisses Guimarães para pedir que elas tivessem um tratamento especial na Constituição. E isso aconteceu com a aprovação do artigo 227, por meio de uma emenda popular.
Juntaram-se 2 milhões de assinaturas numa época em que não havia Avaaz [rede para mobilização social global por petições online]. Esse artigo diz: é dever da família, da sociedade e do Estado garantir com absoluta prioridade os direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Nós já temos na Constituição, desde 1988, um dever constitucional de colocar o interesse da criança e adolescente em primeiro lugar na preocupação de todos nós como família, sociedade e Estado, na elaboração de políticas públicas e sociais para destinação privilegiada de orçamento público. É nosso dever colocar a criança em primeiro lugar, a responsabilidade é compartilhada, e cada um tem que fazer sua parte. Inclusive as empresas que fazem publicidade infantil. É injusto colocar a responsabilidade somente nos pais. Até no ambiente digital, que foi a sua pergunta, as empresas não poderiam utilizá-lo para o convencimento de crianças para o ato de consumo. Aliás, se a responsabilidade é dos pais e mães, então por que não direcionar a propaganda para eles? O que a gente pede não é o fim da publicidade, mas o redirecionamento de toda publicidade para os pais.
Podemos afirmar que no país, a partir da Constituição de 1988, houve um maior investimento na infância e na adolescência dos brasileiros?
Quando a gente fala de projeto de país e de sociedade e a gente coloca a criança e o adolescente em primeiro lugar, isso é estratégico para todos nós. Há pesquisas como a do norte-americano James Heckman, prêmio Nobel de Economia em 2000, que apontam: a cada dólar investido na primeira infância, a gente tem um retorno de oito dólares. Um resultado maior do que qualquer outro investimento. Porém, infelizmente, as pessoas não têm consciência disso. E o governo, o Estado, o poder público têm tomado atitudes contrárias à Constituição. Como a aprovação da emenda constitucional 95, que limita gastos em saúde e educação. Quem vai ser impactado primeiro: crianças e adolescentes. E na saúde? Há uma projeção séria apontando que vamos ter, no mínimo, 10% de aumento de mortalidade e morbidade infantil. Países que adotaram políticas de austeridade semelhantes, como a Grécia, em cinco anos aumentaram em 43% a mortalidade infantil. Quando falamos de criança, achamos que não vamos falar de economia, política, modelo de desenvolvimento ou modelo econômico do país. Porque são esses os indivíduos mais vulneráveis e, quanto menos entendemos isso, mais eles são afetados e mais prejudicamos nosso futuro, que depende deles. Falando a linguagem da economia: se não tivermos uma força produtiva bem-educada, como eu mantenho a estabilidade do desenvolvimento econômico e social de um país? Por isso é estratégico investir em saúde e educação. Parafraseando a educadora Gabriela Mistral, crianças são seres do presente.
Por que vemos esse cenário se perpetuar? Quais são essas resistências?
Elas são múltiplas. A primeira é o desconhecimento: para requisitar direitos é preciso conhecê-los. Temos uma pesquisa, feita pelo Datafolha, que aponta: mais de 81% da população não conhece o artigo 227 da Constituição. Contudo, quando foi feita a leitura do artigo para os entrevistados na pesquisa, mais de 94% o apoiou. Também há uma questão cultural: como é que a gente enxerga a criança na sociedade? Apesar do reconhecimento da criança como sujeito de direitos, em muitas relações sociais, ela ainda é considerada um objeto: objeto da família, objeto de posse. Não à toa, o Brasil é um dos países onde mais se pratica a violência doméstica contra as crianças. Os números relacionados a castigos corporais e abuso sexual por familiares também são os mais altos do mundo. De todas as relações na sociedade, a mais desigual não é a de classe, de gênero ou etnorracial, mas a do adulto com a criança. Quem diz isso é o sociólogo argentino Eduardo Bustelo. Porque as crianças são vistas como posse dos adultos e não como seres que têm liberdade e desejos. Quantos de nós ouvimos verdadeiramente uma criança dentro da família? Seja para ouvir suas opiniões para tomada de decisões na família, ou na elaboração de políticas públicas. É um direito da criança ser considerada em assuntos que lhe dizem respeito. Também há a dimensão institucional, que é como a gente organiza as instituições públicas para lidar com a criança. Infelizmente, temos um alto nível de violência institucional – instituições do Estado violando o direito de crianças e adolescentes, como, por exemplo, a violência policial, o modo como crianças são tratadas em abrigos ou em instituições que deveriam cuidar delas. Temos muitos desafios para mudar esse olhar sobre a criança.
Foto: Leila Fugii
A violência que atinge crianças e adolescentes é um escândalo para o país. O que fazer?
O Brasil é o segundo país que mais mata adolescentes em número absoluto no mundo. Só perdemos para a Nigéria. Então, é muito sério. Existe realmente um processo que muitos chamam de genocídio, muitos ativistas do movimento negro chamam de genocídio. Estão matando nossos jovens, mas principalmente jovens negros e periféricos. Estamos comprometendo nosso país. E um país prova realmente seu valor na forma como ele cuida ou não de suas crianças e adolescentes. Infelizmente, temos muitos desafios em relação à violência. Inclusive fazemos parte de uma coalizão pelo fim da violência contra crianças e adolescentes, seguindo a meta 16.2 do ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), criado pela ONU com governos, sociedade civil e outros parceiros em especial. Coalizão que apresenta uma série de estratégias de políticas públicas efetivas para a redução das violências contra esse público colhidas no mundo todo. Ela diz: “Acabar com abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças”. Conseguimos inclusive, recentemente, que o Estado brasileiro se comprometesse no âmbito internacional para o cumprimento dessa meta. É fundamental que a gente se mobilize. Esse tema é urgente.
De que forma a sociedade, governantes e outros agentes do poder público devem atuar para mudar esse quadro?
A forma como um país trata suas crianças e adolescentes é um indicador de desenvolvimento. Quando a gente fala de projeto de país e de sociedade, a gente coloca a criança e o adolescente em primeiro lugar. Isso é estratégico para todos nós. No fundo, temos esse projeto como sociedade e, se perguntarmos sobre isso a qualquer pessoa na rua, a população quer um governo que garanta políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente, um sistema de Justiça que trate de forma especial esses indivíduos e um Legislativo que não permita retrocessos. Agora, como traduzir isso na prática é um dever de todos nós. Seja no âmbito das nossas famílias, seja no nosso cotidiano, esse é o passo mais difícil. Lembrar todos os dias que temos um dever moral e constitucional não só com nossos filhos, mas com os filhos dos outros e os filhos de ninguém. É nosso dever cuidar de todas as crianças.