Postado em 28/09/2018
Patrimônio Cultural Imaterial,
a Literatura de Cordel
peleja com o tempo
e celebra a resistência
Eles navegaram além-mar, bulindo com as ondas e pelejando com os trovões até aportarem no Brasil. Produzidos desde o século 17 na Europa, os folhetos portugueses que chegaram ao Brasil após a vinda da corte real, em 1808, deitaram raízes. Foi assim que os cordéis (referência aos cordões ou barbantes onde eram colocados para a venda em terras lusitanas) começaram a ganhar adeptos, embora tenham se popularizado apenas na década de 1890, em Recife, Pernambuco. “A origem da nossa literatura de cordel pode ser localizada na Europa, nos séculos após a invenção da imprensa. Livrinhos a preços acessíveis para a população pobre urbana e rural eram produzidos a partir do século 17 na França (onde eram chamados ‘littérature de colportage’), na Inglaterra (‘chapbooks’), na Espanha (‘pliegos sueltos’), em Portugal (‘literatura de cego’) e certamente em outros países”, explica o pesquisador e escritor Braulio Tavares.
No Brasil, o paraibano Leandro Gomes de Barros, morto em 1918, é considerado o pai da literatura de cordel. Com a publicação de seus primeiros poemas em 1893, foi o responsável pela autoria e produção dos primeiros folhetos com temas e personagens locais e pelo nascimento do cordel brasileiro, a exemplo de O Boi Misterioso.
Foto: Tiago Lima
O cordel está vivo
Passa o boi, passa o matuto, passa a donzela, passa o tempo… E a Literatura de Cordel celebra o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro entregue pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no mês passado. Além disso, o cordel pode ser inserido no currículo obrigatório das escolas públicas, segundo proposta da Academia Brasileira de Literatura de Cordel e do Ministério da Cultura levada ao Ministério da Educação (MEC) em agosto. Argumentos que, somados à ebulição de novos cordelistas, provam vida longa à essa expressão artística.
Hoje, os novos autores ainda imprimem folhetos e livros, participam de eventos literários e promovem saraus. No entanto, outros fatores contribuem para que o cordel ganhe longevidade. “Na atualidade, nos deparamos com um fenômeno interessante: homens e mulheres que publicam seus folhetos, muitas vezes, sem o intermédio de uma editora”, observa o curador do Encontro com o Cordel: Homenagem a Leandro Gomes de Barros, evento realizado em agosto no Sesc 24 de Maio, Marco Haurélio.
Fora isso, essa expressão artística ganhou popularidade e repercussão na televisão e, principalmente, nas redes sociais. “Elas servem como meio de divulgação. A digitalização ainda ajuda a preservar os textos, e o fato de que os poetas podem compor seus folhetos no computador é uma ajuda a mais. O cordel se adapta. Qualquer nova tecnologia é instantaneamente aprendida e colocada a serviço da poesia popular”, observa Braulio Tavares.
São muitos os nomes da nova geração, segundo Marco Haurélio. “Em Salvador, Antonio Carlos Oliveira Barreto, por meio de seu selo, cujo nome mais parece um trava-línguas – Edições Akadikadikum –, já lançou centenas de folhetos. Em Fortaleza, há uma geração consolidada, como os irmãos Klévisson Viana (criador da Tupynanquim Editora) e Arievaldo Viana”, esclarece.
E complementa: “Outra família de poetas é a Silva, com Antônio Carlos (conhecido como Rouxinol do Rinaré), Evaristo Geraldo e Godofredo Solon. Além deles, Julie Ane Oliveira, filha de Rouxinol, mostra um processo de continuidade e é uma das vozes femininas do cordel brasileiro. O Brasil, inclusive, tem exportado poetas para Portugal, como o pernambucano Thomas Bakk e a cearense Josy Maria”.
Outro nome que desponta é o da sergipana Izabel Nascimento. Autora independente, com numerosa produção, ela fez do mais popular aplicativo de conversa (WhatsApp) inspiração e mote:
Esse de tal de Zap Zap é negócio interessante
Eu que antes criticava, hoje teclo a todo instante
Quase não durmo ou almoço,
E quem criou esse troço tem uma mente brilhante
Quem diria que um dia eu pudesse utilizar
Calculadora, relógio, câmera de fotografar
Tudo no mesmo aparelho, mapa, calendário, espelho
e telefone celular
E agora a moda pegou pelas redes sociais
É no Face ou pelo Zap que o povo conversa mais
Talvez nem saiba o motivo que este tal aplicativo
é mais lido que os jornais
(...)
Pra quem meu verso rimado acabou de receber,
Compartilha essa mensagem que finaliza a dizer:
Viva a vida intensamente porque é pessoalmente
que se faz acontecer
Foto: Divulgação
No mundo físico e no digital
No papel ou na tela do computador,
a memória do cordel encontra-se preservada
Para galopar nos causos da literatura de cordel não é preciso ter acesso à versão impressa. Há diversas iniciativas que já digitalizaram muitas das pelejas, casos de amor e de personagens fantásticos de livretos históricos e contemporâneos. A Academia Brasileira de Literatura de Cordel, fundada em 1988 no Rio de Janeiro, disponibiliza na internet alguns dos mais de 15 mil livretos de seu acervo. Caso de O Sabido sem Estudo, do cordelista paraibano Manuel Camilo dos Santos (1905-1987). Já na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), o arquivo preservado bate recordes de visitação dos internautas, segundo informações da página do Ministério da Cultura. Acesse:
• Academia Brasileira de Literatura de Cordel
www.ablc.com.br
• Fundação Casa de Rui Barbosa
www.casaruibarbosa.gov.br/cordel
• Fundação Joaquim Nabuco
digitalizacao.fundaj.gov.br
Do nordeste para o mundo
Oficinas, debates e outras atividades jogam luz sobre obras, estilos, mestres e jovens autores
A Literatura de Cordel ganha uma programação especial neste ano. Em 2018, celebra-se o centenário de morte de Leandro Gomes de Barros, reconhecido como mestre por outros mestres da escrita. A exemplo do folclorista Luís da Câmara Cascudo, que o retratou como “caboclo entroncado, de bigode espesso, alegre, bom contador de anedotas”, na obra Vaqueiros e Cantadores (1939), ou do escritor Carlos Drummond de Andrade, que lhe deu a alcunha de “príncipe dos poetas”.
“Leandro era um homem do povo. Lia jornais e livros e procurava sempre se manter informado sobre fatos de grande interesse jornalístico, grandes desastres e também sobre os bastidores da política, sendo um satirista implacável”, conta o pesquisador e cordelista Marco Haurélio, curador do Encontro com o Cordel: Homenagem a Leandro Gomes de Barros, realizado em agosto no Sesc 24 de Maio.
Na programação, artistas e pesquisadores falaram sobre a riqueza temática, a complexidade das rimas e influência exercida pelo cordel sobre outras expressões como as artes visuais, o cinema, o teatro e a música. Participaram o cordelista e xilogravurista Jota Borges, o bailarino, músico e poeta Antonio Nóbrega, além de outros protagonistas da cena. Até dezembro, outras atividades vão reverenciar a feitura desses emblemáticos folhetos. Confira um dos destaques da programação de outubro:
Foto: Augusto Sampaio
SESC BELENZINHO
Workshop de Xilogravura
(De 2 a 4/10)
Em três encontros, a oficina ministrada pelo artista Romildo Rocha faz um breve passeio histórico e aborda aspectos teóricos da xilogravura, com foco principal na produção desse tipo de gravura. A técnica, originalmente chinesa, ganhou força no Nordeste brasileiro, tornando-se uma expressão ligada à literatura de cordel. Ainda hoje, as imagens e escritos reproduzidos a partir de uma matriz de madeira são utilizados.