Postado em 28/09/2018
A exposição a ambientes urbanos hostis e degradados, e o aumento da violência nas escolas e no ambiente familiar, dentre outros fatores, são considerados os principais responsáveis pelo aumento de transtornos mentais na adolescência. Estudos mostram que “problemas emocionais e de conduta atingem hoje em torno de 10% a 20% de todos os adolescentes no mundo”, destaca a médica Claudia de Souza Lopes, que participou de uma discussão sobre o tema no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, no ano passado.
Mas além desses fatores, mudanças sociais, que variam nas diferentes culturas, e hormonais geram um impacto relevante nas transformações corporais, emocionais e comportamentais nesse período da vida. “Manter um olhar acurado para tais mudanças é importante, pois os limites entre aquilo que é considerado ‘normal’ nessa fase e a presença de sintomas precursores de transtornos mentais podem ser difíceis de perceber”, complementa a médica, que também é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Somando a esse complexo quadro, o psiquiatra e professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Neury José Botega aponta uma maior dificuldade dos adolescentes e jovens para lidar com conflitos interpessoais, término de relacionamentos, vergonha ou humilhação e rejeição pelo grupo social. “A tendência ao imediatismo e à impulsividade implica maior dificuldade para lidar com a frustração e digerir a raiva. Perfeccionismo e autocrítica exacerbada, problemas na identidade sexual, bem como bullying, são outros fatores que se combinam para aumentar o risco”, complementa Botega, que publicou neste ano A Tristeza Transforma, a Depressão Paralisa (Benvirá). Sendo assim, como evitar as consequências desses transtornos? Quem mais apresenta esse quadro: meninos ou meninas? A fim de jogar luz sobre o tema, Botega e Lopes traçam análises, apresentam dados e levantam reflexões.
Como prevenir?
Neury José Botega
A ocorrência de vários suicídios de adolescentes em curto espaço de tempo não é um fenômeno restrito à atualidade. No século 18, um famoso livro, Os Sofrimentos do Jovem Werther, tornou-se um marco do Romantismo e uma febre entre os jovens. Nele conta-se a história de um adolescente que vive uma paixão impossível por uma mulher na casa dos trinta anos.
A estratégia adotada pelo autor do livro, Johann Wolfgang von Goethe – ele deixou para o exame do leitor as cartas trocadas pelo casal de amantes –, fez a narrativa parecer muito crível. Adolescentes passaram a se matar vestidos como nas ilustrações do livro, tendo-o em mãos e usando o mesmo método letal – um tiro de pistola. Ensinado nos cursos de Jornalismo, o Efeito Werther acabou por reforçar o tabu social de evitar o assunto, e nada se publicava sobre suicídio.
Os tempos mudaram. Nos dias atuais, a internet tornou-se a nova ameaça a angariar jovens para a morte. O suicídio é assunto nas redes sociais virtuais e seriados [de um dos maiores serviços de streaming de vídeos no mundo], caso do 13 ReasonsWhy, que gira em torno do suicídio de uma adolescente. Mas, com certeza, a natureza do suicídio juvenil da atualidade muito se distancia dos suicídios românticos [no quesito literatura] de três séculos atrás. O que estaria acontecendo? Como compreender melhor esse fenômeno? Como evitar que jovens vulneráveis o cometam?
Precisamos conversar sobre isso, pois a mortalidade por suicídio vem crescendo no Brasil. Diariamente, 32 pessoas tiram a própria vida, segundo estatísticas do Ministério da Saúde. De 2005 a 2016, de acordo com os últimos dados oficiais disponíveis, o suicídio de adolescentes entre 10 e 14 anos aumentou 31%; e entre aqueles que estão na faixa dos 15 aos 19 anos o aumento é de 26%. Na população indígena, há uma tragédia silenciosa: metade do elevado número de suicídios é cometido por adolescentes.
No espectro do comportamento autoagressivo, o suicídio é a ponta de um iceberg. Estima-se que o número de tentativas de suicídio supere o de suicídios em pelo menos dez vezes. O grau variável da intenção letal é apenas um dos componentes da tentativa de tirar a própria vida. O ato também representa uma comunicação, que pode funcionar como denúncia, grito de socorro, vingança ou a fantasia de renascimento. Por isso, ideias, ameaças e tentativas – mesmo aquelas que parecem calculadas para não resultarem em morte – devem ser encaradas com seriedade, como um sinal de alerta a indicar sofrimento e atuação de fenômenos psíquicos e sociais complexos. Não devemos banalizá-las.
O mundo psíquico de um adolescente está em ebulição, ainda não atingiu a maturidade emocional. Há maior dificuldade para lidar com conflitos interpessoais, término de relacionamentos, vergonha ou humilhação e rejeição pelo grupo social. A tendência ao imediatismo e à impulsividade implica maior dificuldade para lidar com a frustração e digerir a raiva. Perfeccionismo e autocrítica exacerbada, problemas na identidade sexual, bem como bullying, são outros fatores que se combinam para aumentar o risco.
Um adolescente pode ter centenas de likes na rede social virtual, mas pouquíssimos, ou nenhum, seres humanos reais com quem compartilhar angústias. O mundo adulto, como um ideal cultural alcançável por pequena parcela de vencedores, fragiliza a autoestima e a autoconfiança de quem precisa encontrar o seu lugar em uma sociedade marcada pelo individualismo, pelo exibicionismo estético, pela satisfação imediata e pela fragilidade dos vínculos afetivos.
Quando dominados por sentimentos de frustração e desamparo, alguns adolescentes veem na autoagressão um recurso para interromper a dor que o psiquismo não consegue processar. Quando o pensar não dá conta de ordenar o mundo interno, o vazio e a falta de sentido fomentam ainda mais o sofrimento, fechando-se assim um círculo vicioso que pode conduzir à morte. Nos suicídios impulsivos, a ação letal se dá antes de haver ideias mais elaboradas capazes de dar outro caminho para a dor psíquica. O ato suicida ocorre no escuro representacional, como um curto-circuito, um ato-dor.
Há, também, os suicídios que se vinculam a transtornos mentais que incidem na adolescência, como a depressão, o transtorno afetivo bipolar e o abuso de drogas. Diagnóstico tardio, carência de serviços de atenção à saúde mental e inadequação do tratamento agravam a evolução da doença e, em consequência, o risco de suicídio.
Pensamentos suicidas são frequentes na adolescência, principalmente em épocas de dificuldades diante de um estressor importante. Na maioria das vezes, são passageiros; por si só não indicam psicopatologia ou necessidade de intervenção. No entanto, quando os pensamentos suicidas são intensos e prolongados, o risco de levar a um comportamento suicida aumenta.
Estão listados a seguir alguns sinais que alertam sobre a provável existência de risco de suicídio. Muitos desses sinais são inespecíficos, pois também aparecem quando do surgimento de alguns transtornos mentais que podem ter início na adolescência (esquizofrenia, depressão, drogadição e transtorno afetivo bipolar).
Sinais de alerta em relação a risco de suicídio em adolescentes
• Mudanças marcantes na personalidade ou nos hábitos
• Comportamento ansioso, agitado ou deprimido
• Piora do desempenho na escola, no trabalho, em outras atividades que costumava manter
• Afastamento da família e de amigos
• Perda de interesse em atividades de que gostava
• Descuido com a aparência
• Perda ou ganho inusitados de peso
• Mudança no padrão usual de sono
• Comentários autodepreciativos persistentes
• Comentários negativos em relação ao futuro, desesperança
• Disforia marcante (combinação de tristeza, irritabilidade, acessos de raiva)
• Comentários sobre morte, sobre pessoas que morreram, interesse por essa temática
• Doação de pertences que valorizava
• Expressão clara ou velada de querer morrer ou de pôr fim à vida
Prevenção do suicídio entre os adolescentes não quer dizer evitar todos os suicídios, e sim uma só morte que possa ser evitada, a do adolescente que está ao seu lado. O que fazer? De modo simplificado, sugerimos três passos. Memorize o acrônimo ROC: reparar no Risco, Ouvir com atenção, Conduzir para um atendimento.
O primeiro passo é a própria suspeita do Risco de ocorrer um suicídio. Isso é muito perturbador, fere devoções e expectativas; a repulsa é automática. Se houver sinais – e nem sempre eles são dados – não os reconhecemos como tais. Em uma conversa franca, pergunte ao adolescente sobre ideias de suicídio. Ao Ouvir a resposta, ouça com atenção e respeito, sem julgar ou recriminar, não se apresse em preleções morais ou religiosas. O terceiro passo é Conduzir o adolescente até um profissional de saúde mental, ou seja, não ficar paralisado. Uma pessoa fragilizada e sem esperança, como ocorre com quem se encontra deprimido, não tem a iniciativa espontânea de buscar ajuda.
A prevenção do suicídio, ainda que não seja tarefa fácil, é possível. Não podemos silenciar sobre a magnitude e o impacto do suicídio de adolescentes em nossa sociedade. Não todas, mas considerável porção de mortes pode ser evitada.
Neury José Botega é psiquiatra, professor
titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e diretor da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção
do Suicídio (Abeps). É autor dos livros Crise Suicida:
Avaliação e Manejo (Artmed, 2015) e A Tristeza
Transforma, a Depressão Paralisa (Benvirá, 2018).
Transtornos mentais: dados e desafios
Claudia de Souza Lopes
A adolescência e sua transição para a idade adulta são consideradas fases de grande mudança na vida das pessoas. Além das mudanças sociais, que variam nas diferentes culturas, mudanças hormonais têm impacto importante nas transformações corporais, emocionais e comportamentais nesse período da vida. Não é à toa que muitos pais se referem aos filhos adolescentes como “aborrecentes”. Entretanto, manter um olhar acurado para tais mudanças é importante, pois os limites entre aquilo que é considerado “normal” nessa fase e a presença de sintomas precursores de transtornos mentaispodem ser difíceis de perceber.
Sintomas como ansiedade, tristeza, inapetência, irritabilidade, isolamento social e dificuldades no sono, entre outros, podem ser interpretados como normais da fase, atrasando cuidados que poderiam ajudar muito esses adolescentes e impedir o desenvolvimento de quadros mais graves, com impacto na vida escolar e social. Além disso, problemas de saúde mental são altamente persistentes, fazendo com que uma parcela importante desses adolescentes tenha algum prejuízo na idade adulta.
A exposição a ambientes urbanos muitas vezes hostis e degradados e o aumento da violência comunitária, nas escolas e mesmo no ambiente familiar, dentre outros fatores, podem gerar situações e/ou pressões muitas vezes difíceis de serem suportadas pelos jovens. Tais fatores têm sido considerados como os principais responsáveis pelo aumento na prevalência de transtornos mentais na adolescência, com estudos mostrando que problemas emocionais e de conduta atingem hoje em torno de 10% a 20% de todos os adolescentes no mundo.
O impacto de tais transtornos pode ser mais bem entendido a partir de estudo sobre a carga global de doenças em adolescentes e jovens de 10 a 24 anos, que mostrou que, mundialmente, as três principais causas para anos de vida perdidos por incapacidade nessa faixa etária são, respectivamente, os transtornos neuropsiquiátricos (45%), as lesões não intencionais (12%) e as doenças infecciosas e parasitárias (10%).
No Brasil, o Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (Erica), considerado o mais amplo levantamento sobre a saúde de jovens já feito no país, mostrou que um em cada três adolescentes apresentava algum grau de sofrimento psíquico. O estudo foi conduzido entre 2013 e 2014, com dados representativos de 75 mil estudantes entre 12 e 17 anos de 1.247 escolas públicas e particulares de 124 municípios com mais de 100 mil moradores.
O principal objetivo do estudo foi avaliar os principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, incluindo obesidade, hipertensão, tabagismo e transtornos mentais. Os resultados mostraram que os transtornos mentais comuns (TMC) foram bem mais frequentes nas meninas (38,4%) do que nos meninos (21,6%) e entre os adolescentes de 15 a 17 anos (33,6%), em relação àqueles de 12 a 14 anos (26,7%). Tais prevalências, portanto, aumentam com a idade para ambos os sexos, sendo, entretanto, sempre maior entre as meninas (variando de 28,1% aos 12 anos até 44% aos 17 anos), do que entre os meninos (variando de 18,5% aos 12 anos até 27,7% aos 17 anos).
Em relação às macrorregiões do país, não foram encontradas diferenças importantes. Entretanto, quando as análises levaram em consideração sexo, faixa etária, tipo de escola e macrorregião, o subgrupo com maior prevalência de TMC foi o de meninas entre 15 e 17 anos de escolas privadas da região Norte (53,1%), seguidas daquelas de escolas públicas da mesma região (44,9%).
Os resultados do Erica são inéditos, não havendo nenhum outro estudo sobre a saúde mental de adolescentes brasileiros com representatividade nacional. Entretanto, o achado de que 30% dos adolescentes apresentava TMC foi semelhante àquele observado em estudo de base-populacional conduzido entre adolescentes de 15 a 18 anos residentes em Pelotas, município de médio porte no Sul do Brasil, que encontrou uma prevalência de 28,8%. O estudo também mostrou uma prevalência maior entre as meninas (37,2%) do que entre os meninos (19,9%).
Inquérito conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com apoio do Ministério da Educação (PeNSE – Pesquisa Nacional de Saúde Escolar), entre escolares da nona série do ensino fundamental, que já teve três edições (2009, 2012 e 2015), mostrou em sua última edição que 22,3% das meninas e 10,2% dos meninos relataram sentimentos de solidão na maioria das vezes ou sempre nos últimos 12 meses. Além disso, 15,4% das meninas e 6,9% dos meninos relataram perda de sono também frequente nos últimos 12 meses. Entretanto, o PeNSE não teve como objetivo avaliar transtornos mentais, mas apenas alguns sintomas que pudessem ser investigados como possíveis proxies de tais transtornos.
Comparações com estudos internacionais são ainda mais difíceis, tanto pelas diferenças culturais e sociais quanto pelas diferenças de métodos, tipos de transtornos e de faixas etárias investigadas nos estudos. Entretanto, revisão de resultados de inquéritos de base-populacional conduzidos em diferentes partes do mundo mostra que, a despeito de tais diferenças, os estudos têm mostrado maiores prevalências de transtornos de ansiedade e humor entre as meninas, enquanto os meninos apresentam maiores prevalências de transtornos de conduta.
Os achados encontrados no Erica chamam a atenção, já que vários estudos e especialistas da área concordam que, embora o uso de instrumento de rastreamento não permita o diagnóstico psiquiátrico, ele pode indicar manifestações precoces de transtornos mais graves, indicando a necessidade de acompanhar com mais atenção os jovens sob maior risco.
Estudo conduzido em São Paulo (São Paulo Megacity Mental healthStudy) mostrou que a idade média de início de transtornos psiquiátricos é mais precoce para os transtornos de ansiedade (13 anos) e transtornos do controle de impulsos (14 anos), quando comparados aos transtornos de abuso de substâncias (24 anos) e transtornos do humor (36 anos).
Os transtornos mentais constituem hoje um dos maiores desafios a serem enfrentados pelos serviços de saúde. Apesar da elevada prevalência de tais transtornos entre adolescentes e adultos jovens, o seu reconhecimento e o acesso a cuidados especializados ainda são bastante incipientes em nosso país, principalmente em regiões menos favorecidas e fora das grandes metrópoles. Estudo conduzido em quatro municípios de quatro regiões brasileiras entre crianças e adolescentes de seis a 16 anos mostrou que apenas um quinto daquelas que apresentavam transtorno psiquiátrico haviam tido acesso a algum especialista em saúde mental nos 12 meses anteriores.
Em resumo, acreditamos que a continuidade de estudos que investiguem mudanças nos padrões atuais, a identificação dos principais fatores de risco e o acesso a cuidados especializados, são fundamentais para fornecer subsídios para políticas públicas voltadas para os subgrupos de maior risco. Contudo, é importante que professores e gestores escolares estejam atentos para manifestações precoces de tais transtornos, para que possam identificar potenciais fatores de risco e indicar cuidados especializados voltados para a saúde mental dos adolescentes.
Claudia de Souza Lopes é médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em Epidemiologia pela University of London. É professora associada e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).