Postado em 29/11/2018
Como você costuma aproveitar o seu momento de lazer? E que restrições encontra para vivenciar esse tão desejado período? Essas são algumas das questões investigadas pelo organizador do livro Lazer no Brasil: Grupos de Pesquisa e Associações Temáticas (Edições Sesc São Paulo), lançado neste ano. Professor de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Lazer da USP (Giel-USP), Ricardo Uvinha pesquisa a importância e os impactos desse tempo dedicado ao não trabalho na sociedade contemporânea. Autor de diversos artigos e livros sobre a relação do turismo com administração, saúde e atividades físicas, o especialista atuou como presidente da Comissão Científica do Congresso Mundial de Lazer, que ocorreu no Sesc Pinheiros, em agosto. No evento, pesquisadores dos cinco continentes participaram de palestras, workshops e apresentaram trabalhos sobre as principais barreiras – físicas, socioeconômicas e simbólicas – que ainda dificultam o acesso ao lazer. Nesta entrevista, Uvinha fala sobre o conceito e os impactos do lazer desde o período que antecede a Antiguidade Clássica até os dias de hoje, quando a fronteira entre trabalho e tempo livre encontra-se cada vez mais tênue.
Foto: Leila Fugii
Como e quando se deu o nascimento do conceito de lazer?
A palavra lazer foi concebida como fruto da pós-Revolução Industrial. Mas a manifestação associada ao lúdico, à diversão, inclusive fora do ambiente de trabalho, já existia muito antes e é importante destacar esse fenômeno. Se analisarmos autores que estudam os aborígenes da Austrália, vamos encontrar registros de manifestações ligadas ao jogo, à diversão e até mesmo a guerras e lutas há 40 mil anos antes de Cristo.
Temos o período do Egito Antigo, da Pérsia, da Síria, da Babilônia, enfim, todas essas épocas, até mesmo na pré-Grécia Antiga já temos manifestações evidentes e das mais diversas, associadas ao jogo e à diversão. Na Grécia Antiga há o registro da chamada skole, e nela o espaço para os gregos refletirem e manifestarem o culto ao corpo e ao espírito, onde o ócio é muito valorizado. Tanto que o negócio é a negação ao ócio. Ou seja, o ócio era o momento mais importante da sociedade grega, permitida aos filósofos, ao passo que o negócio era algo considerado secundário, feito pelos imigrantes, pelos escravos. Na Roma Antiga, também há manifestações claras. São as chamadas licere: há uma permissividade para as pessoas se divertirem, principalmente pela política do Pão e Circo. As arenas de gladiadores que eram construídas serviam como espaço de manifestação desse ambiente do não trabalho. O negócio acaba sendo sobrepujado em detrimento ao ócio, principalmente a partir do cristianismo.
Os próprios rituais de celebração à natureza e à colheita podem ser vistos como lazer por serem festas e rituais alegres e com música?
Certamente podem ser ligados ao lazer porque dialogam com o tempo. Veja, estamos falando de tempo de trabalho e tempo de não trabalho. A Revolução Industrial marca um período muito forte de controle do tempo: do tempo cronometrado. Evidente que o relógio já existia, mas ele passa a fazer muito sentido nessa época. Então, você tem um tempo para trabalhar e um tempo para descansar desse trabalho. No período pré-Revolução Industrial há o que chamamos de tempo cíclico, diferente do tempo linear, que é da Revolução Industrial. Ou seja, o tempo rural: as pessoas trabalhavam em certas épocas do ano. No período de chuva, por exemplo, não se trabalhava. O mesmo no período de inverno rigoroso. Era o tempo das estações que davam o tom. A partir do momento da instalação da máquina, e o relógio é uma máquina importante, você tem de tal a tal horário para desenvolver seu trabalho. Não importa se chove ou se o inverno é rigoroso. Você tem que trabalhar. Assim, evidente que no tempo de trabalho as pessoas tinham controle do patrão, da indústria e tudo mais, mas o não trabalho, o tempo que se despendia para a atividade esportiva, para o bar ou para uma festa também tinha certo controle. Era importante saber como o trabalhador se divertia para ele recuperar a força do trabalho. Ou seja, para ele não estar ligado a vícios.
O que significa lazer no século 21?
Essa palavra já esteve bastante associada ao período pós-Revolução Industrial como um tempo liberado das obrigações. Esse é um conceito que foi difundido fortemente pelos autores da linhagem norte-americana e inglesa. Ou seja, o lazer é ligado a um direito do trabalhador. Isso perdurou durante um bom tempo em termos de discussão. Hoje temos o lazer, sem dúvida, associado ao chamado tempo livre das obrigações, mas ficou muito difícil a gente separar o lazer do trabalho. Em muitas atividades, você fica em dúvida se é lazer ou se é trabalho. Percebemos, após uma pesquisa recente e a realização do Congresso Mundial de Lazer, neste ano, que o lazer está presente em diversas culturas. A forma como ele se manifesta depende muito das relações que se estabelecem com o meio societário, com as questões ligadas à economia daquela cultura, daquele país. Ou seja, nesse sentido o lazer acaba sendo um produto muito importante de manifestações de valores culturais dos mais diversos. Sejam eles esportivos, sejam eles turísticos, sociais, entre outros vários elementos.
Ter mais capital por conta do excesso de trabalho
não significa ter MAIS qualidade de vida
Em que momento o ócio começa a ser condenado em função do negócio?
Principalmente com o surgimento do capitalismo. Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, explora muito bem essa questão. Essa racionalidade do trabalho que é valorizada pelo surgimento do capitalismo a partir da burguesia, da valorização do capital, prejudica o não trabalho. Porque o que honra o homem é o trabalho. Então, o não trabalho acaba sendo uma dimensão desprivilegiada, um vício a ser combatido. Nesse sentido, um ocioso remete à vagabundagem, à preguiça, a algo que deve ser combatido. E a Igreja acaba controlando esse tempo de não trabalho. É no período da Revolução Industrial que se começa a refletir mais propriamente sobre esse papel do não trabalho.
Foto: Leila Fugii
O que estudiosos pensaram a respeito naquela época?
Entre os autores que se referem a essa época, em especial Paul Lafargue [ativista político, jornalista e escritor socialista, 1842-1911], genro do Karl Marx, que escreveu O Direito à Preguiça, faz uma reflexão a respeito desse controle do não trabalho. Outra referência é Thorstein Veblen [economista e sociólogo norte-americano, 1857-1929], que mostra que esse tempo de lazer também vai ser importante para o consumo. Veblen nomeia o consumo conspícuo, que é algo a ser ostentado. As pessoas passam a ostentar sua condição de classe no tempo liberado de trabalho, no modo como se vestem, como se comportam à mesa, os lugares que escolhem como destino de viagem. Tudo isso é consumo de ostentação, no tempo fora do ambiente do trabalho. Veblen acaba assumindo uma importância singular para a análise desse período.
Como se dá a centralidade do trabalho na vida das pessoas?
O trabalho ainda tem uma centralidade importante para as novas gerações. Em termos hierárquicos, quando olhamos para dimensões da vida, como segurança, saúde, educação e trabalho, o lazer não é considerado, em geral, como a mais importante dimensão da vida. O trabalho acaba tendo esse destaque. Essa centralidade no trabalho não pode ser ignorada e em nenhum momento estou dizendo que deva se centralizar tudo no não trabalho. Mas o que a gente pensa é que o trabalho pode ser mais humanizado. Ou seja, um ambiente em que as pessoas possam trabalhar de forma colaborativa, sentir-se pertencentes àquele ambiente. Onde a carga de pressão, que provoca ódio, possa ser minimizada. Como em empresas do Vale do Silício: a pessoa consegue trabalhar melhor – repare que é um discurso bem funcionalista – se ela estiver num ambiente mais convidativo. E, como são empresas de tecnologia e por isso demandam muita criatividade, o ambiente de trabalho deve ser altamente convidativo. Agora, sabemos que é muito difícil um ambiente desses dentro de uma fábrica, por exemplo.
Podemos afirmar que o lazer está invadindo o espaço de trabalho?
O trabalho tem sido mais lúdico, associado a um espaço do jogar, do prazer. E digo isso justamente por conta da porosidade do tempo de trabalho e do tempo de não trabalho. Hoje é praticamente impossível dizer que há uma fronteira clara como já houve no período da Revolução Industrial. O trabalho invade nossa vida nos finais de semana. Então, eu diria duas coisas importantes a respeito desse cenário. Uma é essa flexibilidade entre lazer e trabalho, uma conexão cada vez mais frequente. Outra é o aspecto lúdico levado para o trabalho, uma forma de vê-lo ligado ao prazer, ao relaxamento. As pessoas estão chegando a um consenso de que a saúde mental, algo que temos explorado muito no contexto do lazer, vem sofrendo muito como consequência do excesso de dedicação ao trabalho. Ainda que estejamos numa sociedade capitalista, ter mais capital por conta do excesso de trabalho não significa ter mais qualidade de vida.
E o que dificulta o acesso ao lazer? Poderia dar exemplos?
O eixo central do Congresso Mundial do Lazer 2018 foi Lazer Sem Restrições. Discutimos sobre barreiras de acesso ao lazer. Por exemplo: o fato de muitas pessoas enfrentarem restrições de ordem econômica e simbólica. Neste último caso, a pessoa não se sente convidada a entrar num determinado equipamento de lazer, como um museu ou um espaço esportivo, ainda que sejam gratuitos. Ela não se sente pertencente àquele espaço. A pesquisa que fizemos, envolvendo sete universidades e financiada pelo Ministério do Esporte, teve como tema o Lazer do Brasileiro.
Quais foram os parâmetros utilizados para essa pesquisa?
Usamos as categorias do Joffre Dumazedier [sociólogo francês, pioneiro nos estudos do lazer e de formação] de conteúdos culturais do lazer. Para organizar e sistematizar as respostas, consideramos seis categorias de lazer: artísticas (ir ao teatro, cinema...), intelectuais (leitura como atividade ligada ao lazer, seja de jornal, revista ou livro, jogar xadrez, entre outras); manuais (artesanato, transformação de objetos, a capacidade de manipulação); sociais (busca por relacionamentos, como bares, cafés, festas, bate-papo, dança); físico-esportivas (esportes dos mais diversos, sem nenhum conteúdo ligado ao trabalho); turísticas (viagens). Adicionamos ainda o ócio, ou seja, o não fazer nada. Muitas pessoas falaram que ficam em casa sem fazer nada. E captamos essa resposta. Entrevistamos 2.400 pessoas de todas as regiões do país com perguntas sobre o que faziam no tempo livre e o que gostariam de fazer se não tivessem nenhuma restrição [ao lazer].
E quais os resultados obtidos?
Aparece como destaque a questão da viagem: as pessoas gostariam de viajar no tempo livre, mas a questão econômica, no caso a falta de dinheiro, também aparece fortemente. Questões de ordem simbólica também surgiram. Para os gestores de espaços onde muitas pessoas não se sentem convidadas a entrar, este é um enorme desafio: como incluir essa gente? Também percebemos disparidades quanto ao uso do tempo livre. Ou seja, as pessoas bastante dedicadas ao trabalho formal, quando têm tempo livre, pegam um segundo emprego para complementar a renda familiar. Então, o trabalho informal acaba sendo associado a esse contexto. Para os homens, no tempo livre, o contexto físico-esportivo aparece com destaque. E, para as mulheres, surgem atividades sociais, ações dedicadas ao relacionamento face a face, como cafés e bares. Isso tudo num contexto geral no Brasil.
Também há estudos que mostram que o lazer diminui as taxas de violência numa cidade. Isso, de fato, acontece?
Não vamos caracterizar o lazer como a salvação dos problemas de segurança pública. No entanto, é muito forte a correlação entre privação de acesso ao lazer e violência. Na Zona Leste de São Paulo, uma região com 4,5 milhões de habitantes, é forte o contexto da violência, como também é forte a dificuldade de acesso a equipamentos de lazer. Assim, quando se olha para o lazer, muitas vezes o aproximamos de atividades associadas a práticas físico-esportivas, como se distribuir quadras poliesportivas em todos os pontos de São Paulo fosse uma solução. Não se pergunta para a população o que ela gostaria de ter. Nem se pergunta se uma biblioteca seria algo significativo, ou mesmo um espaço para oficinas de artesanato. Um exemplo bacana é o de Medellín, na Colômbia, que sofreu muito com o crime organizado e com a violência urbana. Lá, o lazer foi fundamental para a diminuição da violência. As bibliotecas escolhidas pela população é que impulsionaram esse novo cenário. Não estou dizendo que o lazer salva, mas ajuda a atenuar a violência. Na Zona Sul, a exemplo do Jardim Ângela, uma região também violenta, ou na Cidade Tiradentes, na Zona Leste, temos toda uma questão da valorização do lazer da comunidade, a instalação de ruas de lazer, que funcionam aos domingos, cuja ideia é convidar as pessoas para ajudar a montar uma programação.
O trabalho tem sido mais lúdico,
tem sido muito mais associado a esse
ambiente do jogar, do prazer
Como pensar o lazer a partir do aumento da expectativa de vida?
Defendemos uma educação para o lazer e para esse momento da aposentadoria. O fato é que, por conta da centralidade do trabalho, as pessoas acabam sem saber o que fazer depois. Se pensarmos no que os britânicos chamam de life long learning, ou seja, um aprendizado para toda a vida, o lazer também faz parte desse contexto. De alguma forma, a possibilidade de usufruir do lazer, ainda que as possibilidades socioeconômicas não sejam privilegiadas, não significa ter que ficar em casa. Nisso entra uma atratividade necessária para que se possa usufruir de um lazer pensado para o momento da aposentadoria. Algo fundamental e que deve ser pensado previamente. As pessoas que, de alguma forma, foram sensibilizadas sobre o período de lazer no momento da aposentadoria, experimentam esse tempo sem culpa. Na USP temos, na Universidade Aberta da Terceira Idade, um contingente significativo de idosos e idosas e este é um exemplo de educação para lazer. Pessoas vêm para fazer cursos dos mais diversos. A ideia é que homens e mulheres convivam com a variedade e com o acesso diferenciado de atividades culturais nesse ambiente do não trabalho. Geralmente, são as idosas que mais procuram essas atividades. O homem aposentado ainda tem muito essa centralidade do trabalho, acha que é bobeira o lazer e fica em casa procurando um trabalho porque não consegue conviver com o não trabalho. Há uma culpa por haver tempo livre. Então, com esses homens, a gente tem feito a ação de mostrar a importância do lazer, de uma atividade cultural.
O lazer pode ser uma ferramenta importantíssima
para entender o papel das tecnologias nos vários contextos
Como as tecnologias influenciam o tempo de lazer na sociedade?
O lazer pode ser uma ferramenta importantíssima para entender o papel das tecnologias nos vários contextos. Desde aquelas que envolvem aplicativos e equipamentos culturais de lazer, caso dos museus, por exemplo, que vêm alterando a programação para oferecer mais conectividade e interatividade com os visitantes. A questão é: como usar a tecnologia a nosso favor? Elas vieram mostrar essa porosidade do tempo de trabalho e do não trabalho. E a tecnologia acabou sendo uma ferramenta, uma mediadora desse imbricamento. Deixar de responder um e-mail por 24 horas parece algo que não deveria acontecer. Mas o imediatismo que a tecnologia trouxe é algo inexorável. Cabe a nós refletir sobre como usar a tecnologia a nosso favor para valorizar, inclusive, o lazer como direito social.
Foto: Leila Fugii