Postado em 29/11/2018
Com mais de 50 anos de carreira, o ator e diretor Antônio Abujamra imprimiu sua personalidade inquieta na TV, no teatro e no cinema
Foto: Acervo pessoal
O provocador Antônio Abujamra não era uma pessoa comum. Conhecido pela inventividade e pelo espírito ousado, foi incapaz de se acomodar a modelos, característica que o acompanhou até a morte, em 2015. Mesmo tendo a mente inquieta, em sua trajetória pouco convencional cultivou o contato humano, nas relações com colegas de cena, amigos e familiares.
“Era um bicho social, como gostava de dizer”, relembra Márcia Abujamra, diretora teatral e curadora da exposição Rigor e Caos (leia o boxe Vivência única), que apresenta a trajetória profissional de Abu. Para Márcia, que também é sobrinha do artista, o poder de agregar era uma de suas habilidades: “Juntava, reunia pessoas. Estava sempre rodeado de muitos atores, atrizes, autores, artistas e mesmo de curiosos. Todos eram bem-vindos. Isso lhe permitiu criar e participar de diferentes grupos e projetos”, comenta.
Nascido em 1932, em Ourinhos, no interior de São Paulo, Abujamra inovou ao levar para as produções de que participou os métodos criados pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht e pelo francês Roger Planchon. A graduação em Filosofia e Jornalismo (1957) foi feita no Rio Grande do Sul e abriu caminho para as primeiras experiências como diretor e ator no Teatro Universitário, passando por textos de Fernando Pessoa, Tennessee Williams, Eugène Ionesco e Georg Büchner.
Ao abrir o horizonte com as próprias mãos, viveu temporada em Madri, em 1959, para estudar língua e literatura. De lá, foi para a França, onde estagiou com o diretor Roger Planchon nas encenações de textos de William Shakespeare, Nicolas Gogol e Bertolt Brecht, no Théâtre National Populaire, em Paris. A vivência se estendeu a Berlim, onde acompanhou as montagens no Berliner Ensemble.
Retornou a São Paulo em 1961, diretamente para sua estreia no Teatro Cacilda Becker na direção da peça Raízes, de Arnold Wesker. No mesmo ano, também esteve no Teatro Oficina, com o espetáculo José, do Parto à Sepultura, obra de Augusto Boal. Com a produtora Ruth Escobar, trabalhou em Antígone América, de Carlos Henrique Escobar (1962), que daria início a uma parceria profissional como diretor de uma série de espetáculos.
Foto: Abul 13
Coube a ele, ainda nos anos 1960, a fundação do Grupo Decisão, em parceria com os realizadores Emílio Di Biasi, Antonio Ghigonetto, Berta Zemel, Wolney de Assis e Lauro César Muniz. O objetivo era claro: montagens de teatro político embasadas pela teoria de Brecht. O grupo permaneceu até 1963 em São Paulo e, entre 1964 e 1966, estendeu atividades para a cena cultural do Rio de Janeiro.
O conceito de política se expande em sua relação com a dramaturgia. Decidido, envolveu-se no projeto de recuperação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Nos anos 1980, renovou a energia com novas salas, novos atores e encenadores. Comandou as montagens de Os Órfãos de Jânio, de Millôr Fernandes (1981); Hamletto, de Giovanni Testori (1981); Morte Acidental de um Anarquista, de Dario Fo (1982); e A Serpente, de Nelson Rodrigues (1984). Destaque para Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, do italiano Dario Fo (1984), com a participação de Denise Stoklos. A montagem viajou para outros países, sendo muito bem recebida em festivais internacionais.
Foto: Acervo pessoal
A experiência de ocupar o teatro Dulcina, localizado na Cinelândia carioca, levou à criação da companhia Os Fodidos Privilegiados, no início dos anos 1990. De cara, Abujamra formou um elenco de mulheres, 40 atrizes. A inserção de atores se deu para as montagens de A Serpente (Nelson Rodrigues) e Infidelidades (Marcos Antônio Della Parra). Na movimentação da cena teatral, entre instabilidades e efervescência de montagens, o grupo ficou três anos sem sede. O retorno ao Dulcina foi em 1995, agora numa composição em que sobressaem jovens atores, de diferentes estilos e aprendizados. Nasce a identificação certeira dos atores em formação com Abujamra.
A companhia ainda está em atividade, com João Fonseca como diretor artístico. Segundo Fonseca, vários princípios norteiam a atuação da trupe, a partir do que Abujamra buscava, ou seja, o ator científico. Entre eles: “Estar preparado é tudo – como dizia Hamlet; ocupar seu espaço; enforcar-se na corda da liberdade; doar-se para o espetáculo – o espetáculo é soberano!; saber tudo e não usar”. Fonseca se diz formado na Universidade Abujamra. “Devo a ele tudo que sei”, declara.
A aparência marcante e a personalidade forte se tornaram queridas pelo grande público, principalmente na teledramaturgia. “É impossível não falar do bruxo Ravengar, personagem de sucesso na novela Que Rei Sou Eu? [de 1989]”, cita Márcia. O filho do ator, André Abujamra, também recorda esse marcante trabalho de seu pai para a televisão. “Quando lembro da figura dele no palco, vêm à mente muitos personagens que ele interpretou e dirigiu. O mais emblemático na TV com certeza foi o Ravengar. Ele estava maravilhoso naquele papel. Até hoje sou chamado com muito orgulho de filho do Ravengar”, conta. Entre suas atuações festejadas no cinema estão as realizadas nos filmes Festa, de Ugo Giorgetti (1989); Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, de Carla Camurati (1995); e Concerto Campestre, de Henrique de Freitas (2005).
A faceta de diretor de Abujamra também teve espaço na TV. Entre os muitos programas sob a sua batuta, está o memorável Maysa – Estudos, gravado em 1975. A seu pedido, a cantora tentou manter certa frieza na expressão, externando um contraponto ao temperamento instável e aos dramas reais da biografia da intérprete. O resultado é um programa que está na memória como uma das mais bem filmadas performances musicais da TV. Antes dessa passagem, Abujamra dirigiu O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), na extinta TV Tupi. Duas lendas juntas: o diretor e o personagem de José Mojica Marins, referência no cinema de terror nacional.
Já o programa de entrevistas Provocações, exibido pela TV Cultura, é um capítulo à parte na carreira do mestre e lembrado por diferentes gerações. Sua estreia, em agosto de 2000, um dos maiores sucessos da emissora. Bom papo, filosofia e o quadro Vozes da Rua, retratando a opinião dos brasileiros sobre diversos assuntos. Abujamra instigava seus entrevistados a revelar “seus pensamentos, expectativas ou frustrações e de forma às vezes provocativa, às vezes doce, mas sempre informalmente, conversava e debatia com eles”, descreve Márcia. “Esse seu jeito era capaz de aproximar o espectador dos entrevistados, provocava interesse nas discussões.”
Artista e sinônimo de diálogos memoráveis
Atriz e bailarina, Mariana Muniz trabalhou com Abujamra no espetáculo Mephistópheles (2003) e relembra a maneira única de abordar os entrevistados, o que vimos muitas vezes durante Provocações, exibido pela TV Cultura nos anos 2000. “Com sua aproximação inteligente, tínhamos, nós espectadores, a oportunidade de fazer contato com as contradições poéticas dos entrevistados”. Ela destaca as conversas com Denise Stoklos e Laura Cardoso como excelentes “do ponto de vista da amostragem do caráter da trajetória de ambas as atrizes”. Relembre alguns diálogos marcantes.
Clodovil (2003)
No ano da entrevista, Clodovil Hernandes exercia o mandato de deputado federal. Da trajetória na moda ao trabalho na televisão, as provocações rolaram das duas partes, num duelo clássico: Se você não sabe o que é a vida, invente, desafiou Abu.
Denise Stoklos (2007)
Convidada quando o programa já estava em seu sexto ano, Denise foi identificada por Abujamra como parte de uma relação sem limites, na qual existiu tudo, “menos sacanagem”. Uma das introduções mais calorosas feitas pelo apresentador a um entrevistado.
Rubem Alves (2011)
Teólogo e escritor, foi chamado por Abujamra de provocador, o intelectual que travava um embate com as ideias retrógradas que “atrapalham a educação e a cultura do país”.
Laura Cardoso (2014)
Abordando a maturidade, a passagem do tempo e a situação dos jovens atores brasileiros, a conversa da dupla reforçou a importância da dramaturgia nacional.
Exposição homenageia Antônio Abujamra, ao contemplar sua experiência na atuação e na direção
A trajetória nada óbvia do ator e diretor Antônio Abujamra pode ser vista na exposição Rigor e Caos, até 17 de março de 2019, no Sesc Ipiranga. Uma mostra concebida com o objetivo de identificar montagens teatrais, participações na televisão e no cinema, entre outros trabalhos do camaleônico artista.
Na curadoria da exposição, a sobrinha e filósofa Márcia Abujamra, com cenografia de André Cortez. “Foram mais de 50 anos de uma carreira repleta de sucessos e fracassos, o que atesta seu talento e a paixão pelo teatro, seja na direção ou na interpretação, a qual se agregou à televisão”, conta Márcia.
O acervo multimídia que compõe a exposição disponibiliza vídeos que contemplam a carreira e a experiência de Abujamra em Provocações, programa exibido pela TV Cultura nos anos 2000, no qual ele entrevistou importantes nomes das artes e da política, dentre os quais seu próprio filho, o multiartista André Abujamnra. “Eu tive a experiência inesquecível de ter sido entrevistado e responder ao meu pai: ‘André, o que é a vida?’, ‘A vida, papai, é uma causa perdida’”.