Postado em 15/01/2019
Texto: Bruno Lazaretti
Bolivianos no Belenzinho, ganeses e nigerianos em Guaianases, sírios no Cambuci, haitianos no Glicério, venezuelanos em Santo André, palestinos na Liberdade, congoleses e senegaleses no Brás. Ao longo da última década, São Paulo – e o Brasil todo – vem sendo um destino bastante procurado por imigrantes que fogem de desastres naturais (como o terremoto de 2010 que assolou o Haiti), guerras civis e perseguições políticas.
Apesar disso, mesmo na maior cidade do país, a estrutura de acolhimento e reinserção social ainda é tímida: os novos moradores precisam encontrar um lugar para morar, conseguir um emprego, resgatar o restante da família, aprender um novo idioma, tirar documentos e validar diplomas, não necessariamente nessa ordem. Aliás, ordem é algo que com frequência tarda a chegar na vida dos imigrantes, em especial dos refugiados.
Com tempo e apoio, porém, aos poucos a sobrevivência dá lugar à experiência. Firmadas raízes na cidade, as populações imigrantes ganham força e segurança e passam a manifestar suas culturas em sons, sabores e cores. Vemos restaurantes, feiras de artesanato, barbearias, festas, espetáculos de música e dança pontuando o mapa da cidade em pequenos e vibrantes lampejos – um bar de especialidades palestinas na Bela Vista, uma exposição de vídeos e artes visuais no Sesc Santo Amaro, cursos de língua portuguesa em unidades do Sesc, uma feira de produtos andinos na Vila Medeiros. Criam-se redes de amizades, pontos de encontro e instituições de suporte mantidas pelos próprios estrangeiros. E então, aos poucos, São Paulo agrega ao seu tecido cultural as expressões de uma nova geração de, por que não dizer, brasileiros.
O caminho rumo à integração é individual e muitas vezes solitário para o refugiado. Barreiras culturais, linguísticas, de costumes e valores, além da receptividade da sociedade brasileira, que na sua maioria reage com desconhecimento ou preconceito, são sentidas de diferentes formas. Mas essas situações difíceis podem ser amenizadas com mais divulgação e esclarecimento sobre quem é o refugiado e por que busca o Brasil como país de acolhimento.
Esses fatores, somados às circunstâncias de acolhida, ao tamanho da rede de compatriotas já estabelecidos e à condição financeira em que se encontram esses imigrantes na cidade irão determinar se suas manifestações culturais tomarão forma e se serão bem recebidas pelo restante da população. A mera presença de imigrantes, em resumo, não resulta automaticamente em um ambiente de intercâmbio cultural.
“A interculturalidade é a percepção de que o choque entre culturas se dá em um ambiente assimétrico e isso é um reflexo da nossa sociedade. Tem gente que diz: ‘Que bonito, tem muita cor nessa cidade’, mas precisa ter mais consciência do contexto”, explica Fabio Ando Filho, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo que trabalha como assistente de projetos no Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes de São Paulo (CRAI). Isso responde por que você provavelmente já comeu kebab ou outras delícias sírias inúmeras vezes, mas nunca provou a comida congolesa. “Há comunidades que são mais fechadas, e isso depende das condições e intenções de cada um. Comunidades mais antigas têm dinâmicas muito diferentes das mais novas”, conta.
Um trabalho pioneiro nesse sentido, de tentar facilitar as articulações necessárias entre quem chega e quem acolhe, é o Centro de Referência para Refugiados, da Cáritas, que se estabeleceu no Brasil na década de 1950 e vem desde então atuando para atender imigrantes em situação de refúgio. O trabalho da organização é dividido em quatro programas de atendimento: assistência social, que cuida das necessidades mais básicas de quem tenta se estabelecer no país; proteção legal, cuja principal função é auxiliar em trâmites burocráticos de asilo, bem como fornecer amparo em casos de violações; integração local, área que busca ajudar na busca a um emprego, no aprendizado da língua e na revalidação de documentos, entre outros exemplos; e saúde mental, uma vez que a migração forçada geralmente é acompanhada de uma série de problemas emocionais que necessitam de amparo psicológico.
A fim de fomentar esse programa de integração, o Sesc São Paulo mantém uma parceria com a Cáritas – que já dura mais de vinte anos – em diversas frentes. Uma delas são as aulas de português para refugiados ou solicitantes de refúgio que sejam encaminhados pela ONG. Atualmente, as unidades do Sesc no Bom Retiro, Carmo, Consolação, Campinas, Pompeia, Vila Mariana e 24 de Maio oferecem o curso. Além disso, o Centro também auxilia na emissão da carteirinha de Matrícula de Interesse Social, que dá direito a uma série de benefícios e serviços da instituição. Por fim, há uma cooperação entre as duas entidades para contribuir para a inserção de pessoas em situação de refúgio à sociedade brasileira.
Redes
A formação de polos de imigrantes em diferentes bairros da capital segue uma dinâmica imprevisível. Às vezes, parece fruto do puro acaso. Otávio Melo, estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que recentemente fez uma pesquisa sobre restaurantes africanos na região dos Campos Elísios, explica: “Eles foram morar lá porque é um lugar barato, que não exigia documentos, que tinha moradia ilegal, e que estava próximo dos empregos no Centro. Não tem um lastro histórico e cultural, é só uma questão prática”.
Essa relação prática na constituição de aglomerados de imigrantes também explica o boom de nigerianos e haitianos em Guaianases (zona leste de São Paulo), onde o som das igrejas com missa em francês, crioulo e inglês enriquece a trilha de fundo aos domingos. O bairro, aliás, é popular também para bolivianos, peruanos e paquistaneses. Todos atraídos por aluguéis baratos, flexíveis e que não requerem fiador.
Em outros casos, a localização de instituições de apoio a imigrantes é um determinante definitivo na formação desses polos. É o que explica a profusão de haitianos na região do Glicério (centro de São Paulo), próximo à Missão Paz – instituição filantrópica de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados. Com relação aos sírios, o bairro de maior concentração é o Cambuci (no centro de São Paulo), onde ficam a Mesquita Brasil e a Sociedade Beneficente Muçulmana (SBM). Neste último caso, em especial, a presença de refugiados da Síria no bairro é consequência direta de um trabalho de acolhida extenso feito por uma comunidade já bem estabelecida em São Paulo. A SBM oferece aos recém-chegados um imóvel mobiliado com as despesas pagas por um ano inteiro. Ao todo, são 40 residências no Cambuci. “Como temos a Sociedade e ao lado a Mesquita, e damos aulas de português, a gente pensa que a pessoa tem que morar perto daqui. Assim ela consegue estudar, praticar a religião, e frequentar aulas com o sheik”, explica Mohamad Sabouni, gerente de marketing da instituição.
Apesar disso, o Cambuci está longe de parecer um “bairro árabe”, porque outro fator no estabelecimento de raízes e espaços de expressão cultural de imigrantes é o tempo e a natureza da imigração. As comunidades e negócios libaneses e sírios que caracterizam a região da 25 de Março e o Brás, por exemplo, são reflexo da primeira onda árabe, de 1880, que foi diferente do caso dos sírios de hoje, voluntária. Ou seja, ingressando na cidade com capital e estrutura, os libaneses criaram indústrias têxteis, armarinhos e os restaurantes que encontramos até hoje espalhados pela região.
Mesmo os bolivianos que embalam, aos domingos, as feiras da praça Kantuta, no Pari, e da rua Patujú, na Vila Medeiros, ou, aos sábados, a da rua Coimbra, no Brás, são provenientes de uma onda migratória de jovens entre os anos 1980 e 2000. Os peruanos que fixaram restaurantes na rua Aurora – como o Riconcito Peruano e o Tierra Madre – são reflexo de uma onda migratória da década de 1990 e representam um ponto focal de “solidariedade étnica” para as novas gerações de imigrantes desse país. São nesses antigos restaurantes que alguns dos novos imigrantes peruanos encontrarão seus primeiros empregos, renovando a colônia e sedimentando ainda mais a região como nó na rede de seus conterrâneos. “Nos estudos migratórios, a gente entende isso por migração com funcionamento em redes. Tem gente que chega e cai do nada, claro, mas geralmente você tem alguma informação antes de chegar, ou um contato”, diz Fabio Ando Filho.
Diversidade, aliás, é o que define a Orquestra Mundana Refugi, grupo idealizado por Carlinhos Antunes e Cleo Miranda que tem entre seus integrantes pessoas de vários países: França, Cuba, Palestina, Síria, Congo, Haiti, Irã e, claro, Brasil. A Orquestra busca promover trocas culturais entre seus integrantes, dentro e fora dos palcos.
Em novembro de 2017, a Orquestra Refugi lançou um álbum digital pelo Selo Sesc. As composições e arranjos são tão plurais quanto o seu conceito, e trazem instrumentos mais tradicionais como o piano e o violino, mas também outros menos convencionais, como a cítara de martelo e o kanun, instrumento de cordas típico do Oriente Médio, deixando claro que não há mesmo fronteiras dentro do universo musical.
Pluralidade
Quem sobe o segundo lance de escadas rolantes da Galeria Presidente, na rua 24 de Maio, no centro da cidade, encontra um dos aglomerados culturais mais notáveis de angolanos, congoleses e nigerianos da capital. Restaurantes, bares e principalmente cabeleireiros e barbearias tocados por imigrantes africanos tornam o terceiro e quarto pavimentos da galeria um polo cultural onde o português raramente é falado ou escrito, e o arroz com feijão dá espaço à banana frita e ao peixe assado.
Locais e eventos onde há articulação militante e apoio de ONGs ou esferas do governo têm mais propensão ao diálogo entre culturas. A Copa dos Refugiados, idealizada pela ONG de imigrantes África do Coração e apoiada pelo Sesc, Cáritas e ACNUR, é um exemplo. O campeonato de futebol reúne 16 equipes de imigrantes representando seus países natais. A quarta edição, encerrada em 2017, teve sua final no Estádio do Pacaembu, apoiado pela Virada Esportiva, evento da Prefeitura de São Paulo, e viu a equipe nigeriana vencer os marroquinos por 9 a 4. “Queríamos fazer uma Copa dos Refugiados, onde o refugiado tem protagonismo na organização total do evento”, sublinha Jean Katumba, refugiado da República Democrática do Congo que fundou a África do Coração. “Queremos mostrar o dia a dia dos refugiados e ter um espaço de expressão onde o refugiado possa divulgar a cultura dele, o conhecimento dele para apoiar o crescimento do Brasil.”
A pluralidade também pode acontecer em espaços comerciais. É o caso do bar e restaurante Al Janiah, fundado em janeiro de 2016 por refugiados palestinos residentes da ocupação Leila Khaled, na rua Conselheiro Furtado, região central da capital paulista. O bar, que serve pratos árabes como o charuto de folhas de uva, espetos de carne servidos com coalhada e homus, e falafel – acompanhados de cerveja e drinques como o Palestina Libre (à base de arak) –, encontrou uma clientela fiel entre jovens paulistanos.
Mas o relativo sucesso comercial não foi o ponto final para a integração da casa no tecido da cidade. O espaço promove debates, shows e festas para articular imigrantes e militâncias. Tornou-se o epicentro de lançamentos de livros, exposições, palestras e apresentações de diversos grupos imigrantes, de congoleses a bolivianos – além de brasileiros, claro.
A articulação de diferentes grupos de migrantes e refugiados também torna o projeto Visto Permanente um dos mais prolíferos da região metropolitana da cidade. Criado em janeiro de 2015 pelo português Miguel Dores e pela luso-brasileira Cristina de Branco, a iniciativa começou a mapear artistas imigrantes e a registrá-los em vídeos curtos em uma espécie de mosaico digital disponível no site do grupo (www.vistopermanente.com). “Quando o Visto surgiu, a cena imigrante estava começando a se consolidar, mas de maneira separada. O Visto foi esse grande articulador. A partir dessa visibilidade [promovida pelos vídeos], os artistas conseguiram galgar outros espaços. Temos uma boa acolhida na comunidade brasileira e estrangeira”, conta Juan David Segura Rubio, colombiano que faz parte da cúpula do coletivo.
O “mosaico” já conta com mais de 60 vídeos de artistas imigrantes de 27 nacionalidades. Os eventos organizados pelo grupo também promovem o diálogo não só entre diferentes etnias, mas também de grupos sociais diferentes. Foi o caso do evento “Migrantes na Periferia”, que ocorreu em setembro de 2017 no Centro Cultural Cidade Tiradentes, onde foram promovidas rodas de conversa e apresentações de filmes, músicas e manifestações artísticas de imigrantes.
O sucesso do Visto Permanente também é resultado do apoio obtido por meio de editais públicos de fomento à arte conquistados por seus artistas. Sem incentivo, as expressões culturais perdem força e se tornam esporádicas, divididas e, muitas vezes, fechadas – o que, por sua vez, permite o surgimento de visões hostis, alimentadas pelo medo e falta de comunicação. É a contramão, enfim, da cultura imigrante que criou São Paulo. Como resume Juan David: “Vários dos preconceitos que são formados surgem pela falta de integração e visibilidade. O legal é criar essa troca e ir convidando a todos, criar vínculos com brasileiros e brasileiras que moram nesta cidade. Porque no final é isso: somos todos imigrantes”.